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publicado dia 20 de março de 2023

Paulo Freire, Fernão Dias e a disputa pela memória das cidades

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O governo do Estado de São Paulo anunciou no último dia 14 de março a mudança do nome de uma nova estação da linha verde-2 do metrô de Paulo Freire para Fernão Dias. A troca do nome do educador pelo bandeirante – questionada por parlamentares e especialistas –  foi vista como um aceno à camada mais conservadora da sociedade paulista e reacendeu o debate sobre a memória da cidade em um contexto ainda de polarização e desinformação em torno da figura de Paulo Freire.

A informação, revelada pela Folha de S.Paulo, motivou um abaixo-assinado contra a decisão, articulado pela vereadora Luana Alves (PSOL) que circula online e já soma quase 30 mil inscritos. 

Paulo Freire, Fernão Dias e o direito à memória na cidade
O educador Paulo Freire (1921-1997) e o bandeirante Fernão Dias (1608-1681) representados, respectivamente, em um mural na lateral de um prédio, e em uma estátua na capital paulistana. Imagem: Reprodução/Instagram @esperanzar/WikimediaCommons

Para aprofundar a discussão sobre o direito à cidade e à memória e analisar como o processo de nomeação de espaços urbanos se relaciona com a trajetória de invisibilidade de determinadas populações, a plataforma Educação e Território entrevistou a pedagoga e educadora popular Cássia Caneco, pesquisadora do Instituto Pólis nas áreas de Juventude, Cultura e Participação. 

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“A cidade de São Paulo, em específico, mas também as cidades brasileiras de forma mais ampla, são peritas em contar as mesmas histórias”, alerta a especialista e coordenadora da pesquisa Patrimônio, Memória e Diversidade: um Olhar Antirracista sobre Monumentos da Cidade de SP. 

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Educação & Território: Como você analisa a decisão do governo de São Paulo de mudar o nome do metrô de Paulo Freire para Fernão Dias? De um educador para um bandeirante? 

Cássia Caneco: Primeiro, é importante saber como foi feita a pesquisa e considerar que algumas situações podem justificar esse tipo de troca, como não saber quem é Paulo Freire, ou, ainda, um posicionamento político. Por que optam por reverenciar a mesma história de um bandeirante? Uma história tantas vezes contada no estado de São Paulo?

Outra questão é que o educador Paulo Freire representa uma pedagogia política, crítica, provocativa, convidativa a questionar a ordem das coisas. Isso, de fato, incomoda. Precisamos levar em conta também que governos como o de Tarcísio de Freitas elegeram Paulo Freire como inimigo, justamente pelos motivos citados. Há um medo do que essa homenagem ao educador possa causar. Há um medo de que a população reivindique seus direitos e se aproprie da sua história. 

Essas coisas estão intimamente ligadas porque nomear um lugar, uma rua ou uma estação é instituir o seu poder. Quando nomeamos, dizemos qual narrativa será valorizada. A cidade de São Paulo, em específico, mas também as cidades brasileiras de forma ampla, são peritas, por assim dizer, em contar essas mesmas histórias. 

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Elas se orgulham desses cartões postais de opressão e sujeição. Então, não é de espantar que o governo que habita o Palácio dos Bandeirantes tenha essa atitude. O nome da casa legislativa da capital, que é a Câmara Municipal de São Paulo, é Palácio Anchieta. Essas homenagens [aos bandeirantes] são feitas o tempo todo. 

Por outro lado, há pouquíssimas homenagens ao Paulo Freire, por exemplo. Isso causa um grande frisson e é importante que essas discussões aconteçam. 

E&T: Como essa discussão se relaciona com o caráter educador das cidades? 

CC: Se considerarmos que São Paulo, como signatária da Carta das Cidades Educadoras, tem o compromisso de desenvolver integralmente os cidadãos que nela habitam, é possível ver que essa atitude do governo estadual é o contrário disso. E, com isso, a cidade não cumpre o seu papel [de educadora].  

“A diversidade é inerente às cidades atuais e prevê-se que aumentará ainda mais no futuro. Por esta razão, um dos desafios da cidade educadora é o de promover o equilíbrio e a harmonia entre identidade e diversidade, salvaguardando os contributos das comunidades que a integram e o direito de todos aqueles que a habitam, sentindo-se reconhecidos a partir da sua identidade cultural”

– Carta das Cidades Educadoras 

Porque as pessoas têm o direito de se verem representadas na cidade, suas histórias serem contadas e eles precisam ser representados em potência e diversidade. Não há nenhum paralelepípedo assentado nessa cidade que não tenha a mão preta ou indígena ou a contribuição do povo nordestino, por exemplo. São histórias, a todo tempo, silenciadas, apagadas e encobertas por figuras como Fernão Dias. 

Essas nomeações acontecem desde nome de ruas e praças, palácios e também nomes de escola. Então, desde a mais tenra idade, as crianças da nossa cidade vão se encontrando com esses nomes que representam a violência. Homenagens a  torturadores e bandeirantes. Por outro lado, há um apagamento sistemático desses povos para a cultura e riqueza da grande cidade que é São Paulo. 

E&T: Levantamento realizado pelo Instituto Pólis mostrou que 23% dos monumentos em SP homenageiam figuras controversas, como pessoas ligadas à escravidão negra e indígena. Quais narrativas e/ou visões são privilegiadas simbolicamente no espaço público de SP? Que histórias, por outro lado, são invisibilizadas?

CC: A cidade de São Paulo é contada a partir de uma visão masculina e branca. Enquanto isso, mulheres, povos negros e indígenas são colocados em lugar de sujeição, silenciamento e apagamento. 

As mulheres, em São Paulo, só são melhor representadas em uma posição de personagens míticas ou religiosas. Então, o lugar reservado para as mulheres ainda é esse lugar da santa, da musa, mas não há grandes personalidades femininas sendo homenageadas na cidade. Só recentemente tivemos alguns monumentos erguidos, como Maria Carolina de Jesus e Madrinha Eunice, personagens que de fato existiam, e não são só uma representação genérica do que é uma mulher negra.  

“A cidade de São Paulo é contada a partir de uma visão masculina e branca. Mulheres, negros e indígenas são colocados em lugar de sujeição, silenciamento e apagamento”

Já no caso das indígenas, todas as figuras que prestam essa homenagem ainda estão em um lugar romantizado e folclórico: de um indígena ligado à práticas antigas. Os nomes são assim: “O índio caçador”. Não há, por exemplo, a menção correta nas placas das obras, de usar a expressão “povos indígenas” [em vez de índio]. 

Assim, São Paulo privilegia no seu simbolismo apenas um grupo, que ostenta essa violência. A estátua do Borba Gato, por exemplo, é uma figura armada de 13 metros, percebemos que são símbolos exaltadores de violência e de uma suposta virilidade. É sempre nesse lugar que o masculino é retratado. 

E&T: A justificativa oficial para a mudança do nome da estação do metrô foi uma consulta à população que vive no entorno, que teria optado em maioria pelo bandeirante. Chama atenção essa ter sido uma opção de escolha para a população, mas considerando que essa figura histórica do bandeirante está presente em outros monumentos, como o Monumento às Bandeiras e a estátua de Borba Gato, o que explica essa valorização no contexto paulistano? 

CC: Precisamos saber quem são as pessoas que responderam e o que elas queriam dizer, como foi organizada a pesquisa e quais os critérios considerados. Veja, a cidade já tem uma série de homenagens aos bandeirantes, então, é comum que se normalize a homenagem, mas ela é necessária ainda hoje?

Muitas vezes, esses monumentos são vistos como guardadores de um certo privilégio. São essas pessoas que ditam as narrativas da cidade, as herdeiras dessa história. 

É importante saber quem foi que escolheu [a troca do nome da estação]: se foi por não conhecer outras referências, por acreditar que não se deve homenagear o Paulo Freire ou se porque acreditam que não há grandes problemas em povos negros e indígenas lidarem, cotidianamente, no espaço público, com os algozes do seu povo no passado. Essas coisas precisam ser pensadas e discutidas. 

E&T: Nos últimos anos, na esteira de protestos antirracistas, estátuas e monumentos foram retirados nos EUA. Como está essa discussão no Brasil? Ainda há resistências em torno dessa questão da memória?

CC: Isso tem acontecido no Brasil. As nossas intervenções têm-se dado, nos últimos anos, não só a partir do que aconteceu com George Floyd em 2020, mas desde antes. 

Recentemente, numa aula da Escola da Cidadania, Ana Barone disse o seguinte: contestar monumentos é uma prática tão comum quanto construí-los. No Brasil, a discussão com os monumentos acontece pelo menos desde 2015. 

Mas já tivemos isso durante a Ditadura Militar, por exemplo: a homenagem a algumas figuras era coberta com plástico na cabeça [das estátuas], uma menção à tortura. 

Ou seja, não é uma prática tão recente, mas o debate está muito aquecido nos últimos tempos. Há ações diretas, de coletivos ou movimentos sociais, para incentivar o debate.E vemos também projetos de lei protocolados desde 2020. Cidades já aprovaram a proibição de homenagens a eventos históricos e personagens ligados à prática escravista, como Olinda (PE).

“Cidades já aprovaram a proibição de homenagens a eventos históricos e personagens ligados à prática escravista, como Olinda (PE)”

A institucionalização dessa pauta acontece agora porque pessoas que compunham movimentos sociais e representam povos negros e indígenas tem, cada vez mais, acessado os espaços de poder. 

E&T: O que a escolha de nomes de logradouros, estações de metrô e espaços públicos ensina sobre a história e a memória de uma cidade?

CC: Durante muito tempo, quem ocupava as casas legislativas e decidia as homenagens eram pessoas que representavam o poder hegemônico, branco e masculino, na cidade. 

Agora, cada vez mais, há candidaturas de mulheres, indígenas, negras e trans. Isso tem transformado a história da cidade. É óbvio que precisamos discutir outras estéticas de representação e memória, que não sejam exclusivamente dos monumentos. 

Resumidamente, é uma questão de poder, que vem sendo contestado. Por isso, há tantas resistências. O debate está aquecido com novas narrativas, divergentes da norma padrão, colocadas na arena de discussão e no espaço público. 

E&T: Na sua opinião, quais estratégias podem ser adotadas para que os espaços urbanos e seus elementos constitutivos sejam nomeados e reconhecidos a partir de processos de memória, valorização da diversidade e garantia de direitos? 

CC: É importante que esses monumentos, que não serão retirados agora, tenham mediação. Não é possível encontrar o Monumento às Bandeiras, por exemplo, como se ele estivesse inconteste. É importante que projetos educativos e ações performativas desloquem [esses monumentos] do lugar do heroísmo e sacralidade. Isso, cada vez mais, tem acontecido.

É importante que as ações educativas tomem o espaço da cidade e os territórios como lugares de aprendizagem. A cidade já está nos contando coisas  – e é importante assumir o compromisso educador da cidade, para que ela tenha a intenção de desenvolver as pessoas integralmente. 

E&T: Que exemplos você traria no Brasil?

CC: Os cortejos de memória, por exemplo. São feitos sobretudo por coletivos negros, como o Cartografia Negra. Outros coletivos transformam, por si só, os nomes das ruas. E há organizações como o Instituto Pólis, propondo atividades e processos formativos que convidem educadores e outros atores do território para pensar em ações coletivas e mapear histórias que costumeiramente são apagadas. Quando apagamos a história de um povo, tudo pode acontecer com ele. Um povo sem história é desconsiderado.

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