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publicado dia 20 de novembro de 2017

Memória e resistência nos bairros negros da cidade de São Paulo

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O Bixiga, bairro central da cidade de São Paulo, nem sempre foi das tarantelas, mesas quadriculadas em branco e vermelho ou cheiro de molho de tomate. No período da República, de 1890 até 1950, fervilhavam em suas ladeiras jornais e associações de imprensa negra, como o Clarim D’Alvorada, que lutava fortemente pela defesa da cidadania e identidade negra. Esse território é hoje reconhecido como italiano porque a história da população negra que o ocupou e ainda ocupa sofreu sistemáticos apagamentos.

Recuperar a história desse e de outros bairros negros na capital paulista foi a empreitada do projeto Itinerários da Experiência Negra, do Coletivo Crônicas Urbanas. Contemplado pelo edital Redes e Ruas em 2016, o coletivo formado pela jornalista Fernanda Fragoso Zanelli e pelos historiadores Fábio Dantas Rochas, Lilian Arantes e Fernando Mafra pesquisa o direito à cidade sob a perspectiva racial.

“Pensamos a cidade construída por seus sujeitos. Por mais que você tenha uma cidade que expulse progressiva e historicamente os negros do seu âmago, queríamos mostrar a força da resistência que aconteceu e que ainda acontece no centro de São Paulo”, relata Fábio Dantas.

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Mais do que cartografar a São Paulo negra, o coletivo também tinha o desejo de conectá-la a uma juventude periférica que busca se reconhecer enquanto ocupante de territórios que lhes foram negados. Para fazê-lo, eles desenvolveram dois mapeamentos. Um é o histórico: redescobrir a cidade negra e retomar bairros embranquecidos. O outro é contemporâneo: mapear os aparelhos de resistência da periferia da Zona Oeste de São Paulo, articulando-os principalmente por meio do ativismo jovem. Por fim, utilizar o conhecimento cartografado e disseminá-lo em formações com universidades e a rede pública de educação.

O resultado desse mapeamento está na publicação Guia dos Itinerários da Experiência Negra: Um Passeio Histórico por São Paulo e também no website do projeto.

Os bairros negros de São Paulo: Bixiga e Liberdade

Se foi necessário todo esse concreto para abafar a presença negra, é porque ela sempre pulsou forte por aqui.

Muito antes de ganhar lâmpadas orientais, a Praça da Liberdade era chamada de Largo da Forca. Ali foram condenados, mortos e enterrados homens e mulheres escravizados que lutaram por sua independência. A Igreja da Nossa Senhora dos Aflitos, construção hoje escondida entre depósitos e padarias da travessa Rua dos Estudantes, está erguida sobre ossos dos resistentes e é o único vestígio físico de sua existência.

“As pessoas se esquecem que houve escravidão em São Paulo”, explica Dantas. “E pouco sabem que houve aqueles que lutaram fortemente contra ela, criando assim territórios de resistência e memória. A Praça da Forca é um deles”. Em 1821, foi o grito por liberdade do soldado negro condenado à forca Francisco José das Chagas uma das possíveis razões do nome atual do bairro.

No período pós-abolição, que tem seu início em 1888, a população negra vivia em casas e cortiços no centro da cidade; era naquela região que homens e mulheres sem acesso a direitos básicos como moradia conseguiam trabalho. Segundo a historiadora Cláudia Rosalina Adão no livro A Luta Contra o Racismo do Brasil, tanto a vinda de operários imigrantes como também os chamados trabalhos de melhoramentos da cidade – políticas de Estado para embranquecer e europeizar o centro – empurraram a comunidade pobre e também a negra para as periferias da cidade. “O negro não nasce nas periferias. É um processo de gentrificação que desloca as populações para os arredores da cidade.”

Conversa dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paissandú, São Paulo.
Conversa dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paissandú, São Paulo.

Foi justamente para entender como a população negra resistiu no centro do período de 1890 até 1950 que o coletivo Crônicas Urbanas pesquisou arquivos oficiais, como registros do 2º Tabelião de Notas, e acessou memórias de importantes militantes e ativistas do movimento negro, como José Corrêa Leite. Não foi um trabalho simples, como relata Fernanda: “Não é uma simples ida até um endereço ou a lida de uma biografia. Tivemos que cruzar fontes, porque não queríamos falar somente da militância, como da comunidade que lutava, dançava, sorria e morava.”

A historiadora Lilian complementa: “Muito do conhecimento sobre a história negra parte da memória, já que não houve uma documentação apropriada sobre seus tantos êxodos. E a memória é falha, muito transformada por aspirações e momentos políticos. Então foi um trabalho de costura entre relatos e documentos oficiais”.

A arquitetura antiga que sobrevive em concreto na região central é a materialização das conquistas do processo de gentrificação e apagamento empreendido pelo Estado pós-abolicionista. “Um exemplo disso é própria Igreja dos Aflitos. Erguida sobre os corpos de pessoas escravizadas, hoje ela contém uma placa proibindo o uso de velas coloridas, indumentária religiosa poderosa para as religiões afro-brasileiras”, relata Lilian.

expedição pelo centro da cidade de São Paulo.
Expedição pelo centro de São Paulo

Ao mapeamento de pontos como os jornais A Pátria – Órgão dos Homens de Côr ou locais como o Largo da Memória – Obelisco dos Piques, também se somam organizações que atuam até hoje no centro, herdeiras dos movimentos de resistência, como a Casa Mestre Ananias, espaço de resguardo da cultura negra, onde se pode aprender sobre samba e capoeira. São Paulo é uma cidade negra na manutenção de mais de 200 anos de aparelhos de presença e memória afro-brasileira, e a cartografia revela essa riqueza racial.

Mapear é resistir

A segunda parte da experiência do Itinerários dá um salto temporal e se debruça no contemporâneo dos movimentos sociais negros. Como seria impossível mapear todos os coletivos e organizações de São Paulo que trabalham a temática racial, o Crônicas optou por olhar para a região periférica da zona oeste, em especial o distrito de Raposo Tavares.

A escolha foi intencional: Fernanda passou grande parte de sua infância na região, e sabe o quanto o jovem tem dificuldade de se orgulhar e se reconhecer como morador de bairros como João XXIII. Como explica ela em sua pesquisa Novos Fluxos na Busca por Oportunidades: Trajetórias de Jovens nas Periferias das Cidades, publicada pelo Instituto Itaú e Instituto Braudel: “Enquanto na Wikipédia, por exemplo, há uma detalhada cronologia da história de Capão Redondo, os bairros do distrito Raposo Tavares, como Jardim Arpoador, nem sequer têm uma página na rede colaborativa”.

Para Isabela, “coletivos da periferia da zona oeste não existem no cenário de outros coletivos. Zona sul tem o rap, zona Leste tem sua identidade, e nossa quebrada sofreu um apagamento muito forte, principalmente por estarmos cercados por uma região nobre. Então ficamos muito contentes quando o Crônicas Urbanas se propôs a mapear nossa região”.

O coletivo do qual ela participa ao lado de Georgia Prado, Vinicius Torres e De Queiroz foi fundado para atuar no Jardim João XXIII, refletindo sobre a questão racial por meio de atividades culturais e políticas. Ele foi um dos 94 aparelhos mapeados pelo Crônicas Urbanas. Temáticas raciais e de ocupação da cidade foram os denominadores comuns entre os grupos, instituições e equipamentos cartografados.

Os 10 jovens participantes do guia de Itinerários da Experiência Negra.
Os 10 jovens participantes do guia de Itinerários da Experiência Negra.

Desvelar a São Paulo negra

No dia 23 de setembro de 2017, 10 jovens das 94 organizações foram convidados a participar de uma expedição pelo itinerário negro de São Paulo. Ainda que não tenham conseguido visitar todas as localidades, foi possível começar desconstruir a noção de que bairros como a Liberdade é somente de imigrantes. São bairros com múltiplas identidades, incluindo a forte presença negra.

Queremos ocupar o centro, mas antes queremos trabalhar a identidade na periferia

Ter um mapa em mãos e caminhar por uma cidade descoberta é ver a memória tomar forma e senti-la debaixo dos pés. “A memória é onde a matriz africana compartilha suas histórias e lutas. É onde residimos, porque não estamos institucionalizados, não estamos registrados. Então foi demais conhecer o centro por meio desse mapa da resistência”, detalha Isabela. “É emocionante recuperar os símbolos do Vale do Anhangabaú, me deparar com a estátua de Zumbi dos Palmares (localizada na Praça Antônio Prado). A pesquisa científica é importante, porque a nós negros sempre foi negado o campo de produção de conhecimento”.

Após a visitação, o coletivo propôs aos dez jovens que produzissem conhecimento a partir da experiência. “Fizemos uma brincadeira de cápsula do tempo. Pedimos que eles se portassem como pesquisadores do futuro estudando o momento atual e fizessem um retrato sensível do que é ser negro agora”, conta Fernanda. Os resultados, que variaram desde fanzines até vídeos, foram apresentados no CEU Uirapuru, dia 30 de setembro.

O Quilombo XXIII criou um vídeo sensível e forte ao som de batuques, misturando personagens históricos como as amas de leite à violência racial presente cotidianamente nas periferias. “Hoje existe uma ocupação da cultura negra muito forte no centro, a partir de festas ou coletivos, como a Sarrada no Brejo ou Aparelha Luzia. “Nós do Quilombo XXIII queremos ocupar o centro, mas antes queremos trabalhar a identidade na periferia – e isso ficou ainda mais claro no processo com o Crônicas Urbanas. Somos o Palmares do futuro: primeiros nos fortalecemos no nosso polo, para depois atacar o centro, como o Zumbi fazia”, planeja Isabela.

Formações: disseminar a São Paulo negra

Hoje com site e publicação lançados, o Crônicas Urbanas tem uma preocupação: dar cor aos sujeitos para criar referências de vitória e resistência em ambientes de formação. “Uma das funções políticas do nosso estudo é que alunos negros percebam que há muito mais referencial do que simplesmente a escravidão. Temos que debater a resistência, movimentos culturais, os jornais pós-abolicionista e associações que existiram no período da República”, aponta Dantas. As formações estão acontecendo em universidades em São Paulo, tanto para acadêmicos quanto para professores da rede pública.

Um dos relatos que comoveu Fernanda foi a de uma jovem militante negra que, tendo vindo de Salvador, tinha dificuldade de reconhecer na capital paulista um lar. “Para ela foi importante circular por uma São Paulo negra e se reconhecer nos depoimentos de militantes e nos sítios geográficos que eles ocuparam. Após o passeio, ela falou: ‘Eu descobri uma São Paulo negra bem debaixo do meu nariz”.

Já para Isabela, a disseminação do conhecimento produzido tanto pelo passeio quanto nas formações é a prova de que a história e memória negra se fortalecem no compartilhamento de informações. Hoje com o mapa nas mãos, ela consegue retirar a grossa camada de apagamento a que foram submetidas às populações negras na capital paulista e no resto do Brasil, reconhecendo a história de seus antepassados. “Quem sabe minha tataravó não dançou nos bailes Black, quem sabe um primo de meu avô não datilografou em máquina de escrever a narrativa negra da minha cidade?”

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