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publicado dia 25 de outubro de 2022

Crédito consignado do Auxílio Brasil pode ser “tragédia” para famílias vulneráveis e economia

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Em março deste ano, o governo federal editou uma Medida Provisória (MP) 1106/2022 que estabelece a oferta de crédito consignado utilizando o Auxílio Brasil, programa de transferência de renda que substituiu o Bolsa Família em dezembro de 2021. Aprovado em julho pelo Senado Federal e com início em 10 de outubro, em meio à corrida eleitoral, estima-se que a Caixa Econômica Federal já tenha contemplado pedidos de 1,681 milhão de beneficiários, totalizando R$ 4,291 bilhões de empréstimo. O valor médio dos créditos está em R$ 2.552.

Especialistas alertam que o mecanismo criado para a concessão de crédito às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, em lugar de reduzir as desigualdades, deve gerar mais dificuldades para essa população. Além das consequências individuais, como o superendividamento, eles apontam para problemas econômicos que vão impactar o país como um todo. 

“Se os valores atuais são insuficientes para garantir uma vida digna, a possibilidade de comprometer até 40% desse valor com empréstimos condenará essas famílias ainda mais à miséria”, defendem mais de 300 entidades brasileiras em Nota em Defesa da Integridade Econômica da População Vulnerável.

De acordo com Maria Paula Bertran, professora na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e uma das autoras do documento, “o abaixo-assinado tem a adesão de economistas, juristas, políticos e até das instituições financeiras que haviam se negado a oferecer esses produtos por suas inúmeras inadequações”. Para a pesquisadora, “a população ultra vulnerável está recebendo um produto com fortes tendências políticas e com grandes prejuízos. Por que não esperar até novembro e garantir mais preparo e estudos?”, questiona.

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Lançado em agosto, o documento pede o adiamento da comercialização do crédito para o Auxílio Brasil e outros programas de transferência de renda e a elaboração de estudos e manifestação técnica de especialistas e da sociedade civil, o que não ocorreu.

Entre os mais impactados pelos prejuízos que o crédito consignado pode trazer no longo prazo, a professora Maria Paula cita crianças e idosos. “Boa parte das famílias brasileiras conta com a renda de mulheres idosas que, diante da crise econômica, para se sustentar, podem se sentir pressionadas a fazer o empréstimo.” Já as crianças sofrem especialmente com os impactos da desnutrição, em um país que vem atingindo índices recordes de fome e desemprego. “É uma tragédia”, resume Maria Paula. 

Impactos para o país

Estudos recentes, sobretudo nos Estados Unidos, mostram um ciclo: o aumento do endividamento das famílias necessariamente antecede uma crise macroeconômica. “Estudos bem específicos, que cruzam CPF com CEP nos EUA, mostram que as sociedades se fartam de créditos de forma impensada e as famílias, sobrecarregadas com as dívidas, não conseguem manter a rotina de consumo, o que causa uma recessão. Logo, são pátios de montadoras lotados de carros que não são comprados, produtos no mercado que não podem ser adquiridos, e aí começa o desemprego na indústria”, descreve a docente.

No Brasil, pesquisa realizada por Atif Mian e Amir Sufi sobre o endividamento das famílias e a recessão demonstram que esse foi o fenômeno identificado durante a recessão de 2014 a 2016. “É um padrão tão forte e comum que explica várias crises mundiais, como a do Japão nos anos 80, a Grécia, Espanha, Portugal e a crise de 29 nos EUA. A diferença é que nesses países as famílias se endividaram por financiamento imobiliário, estudantil, que vão trazer retornos depois. Aqui é pelo dinheiro da comida, do ônibus para ir trabalhar, do aluguel e da farmácia”, pontua Maria Paula.

Face a esse cenário, o professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, avalia que  o empréstimo consignado, significa, na melhor das hipóteses, um desvio de finalidade do Auxílio Brasil. “Quando o cidadão utiliza parte da sua renda básica para contrair um empréstimo consignado, na prática, ele reduz essa renda.”

Ximenes, que integrou a coordenação da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DhESCA Brasil), defende que está em curso “uma distorção em relação à ideia de que a renda básica é o mínimo constitucional para assegurar condições de vida digna para toda a sociedade brasileira”. Com juros de 3,5% ao mês ou 51% ao ano, as famílias que contraírem o empréstimo sofrerão uma perda significativa do benefício.

O endividamento por empréstimos é uma preocupação constante no país e no mundo. Em 2021, a Lei nº. 14.181/212 passou a responsabilizar também as instituições financeiras pelo superendividamento dos sujeitos. “Essa responsabilidade não pode ser protagonizada pelo indivíduo, é um erro em termos de planejamento público e de economia comportamental”, acrescenta Maria Paula.

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Historicamente, o crédito costuma ser encarado pela sociedade como algo positivo e oportuno para as famílias se prepararem para uma atividade de empreendedorismo, por exemplo. Mas essa perspectiva é excessivamente individualista e tecnicamente ultrapassada, porque coloca unicamente sob a responsabilidade pessoal a capacidade de decidir o destino que se dará ao recurso e o planejamento para pagá-lo posteriormente, explica Maria Paula. 

“Nos padrões de análise comportamental, todo mundo imagina que terá um futuro melhor do que tem hoje. É humano cuidar das necessidades imediatas – e no Brasil estamos falando de comida, farmácia e moradia – e minorar as consequências do futuro. Mas em termos estruturais e de políticas públicas, não há muita perspectiva de que o Brasil estará muito melhor no ano que vem e que essas pessoas terão esse comprometimento”, ressalta.

Assim, ao longo do tempo, o crédito diminui a capacidade das pessoas manterem seu ritmo de consumo convencional, sobretudo considerando a atual inflação próxima à casa dos dois dígitos e a previsão de que o valor do Auxílio Emergencial seja reduzido de 600 para 400 reais em janeiro de 2023.

Vazamento de dados 

Diante de todo o malabarismo eleitoral visando a reeleição no próximo domingo, 30, o governo Bolsonaro adotou uma série de medidas consideradas controversas por especialistas.  

Para além das graves consequências sociais que a medida pode representar, reportagem divulgada pela publicação ‘The Brazilian Report’ revela um possível vazamento de dados privados dos beneficiários do Auxílio Brasil, usados em análises de contratos por instituições financeiras. 

Segundo apuração da repórter Amanda Audi, as informações reúnem perfis completos das pessoas que vão desde os endereços a registros dos cidadãos na Caixa Econômica Federal e no Sistema Único de Saúde (CadSUS). Para especialistas, as especificidades dos materiais sinalizam que as informações podem ter sido vazadas pelo próprio governo por meio de órgãos como o Ministério da Cidadania e a Caixa Econômica, responsáveis pelo Auxílio Brasil, e o DataPrev, que gerencia os dados sociais do país. Estima-se que informações de mais de três milhões de pessoas, de 21 estados, tenham sido reveladas.

* Reportagem de André Nicolau e Ingrid Matuoka 

Atualizada dia 31/10, às 20h40.

 

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