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publicado dia 11 de outubro de 2022

4 pontos para entender os impactos da pandemia na primeira infância no Brasil

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Os efeitos da pandemia e da crise econômica e social na primeira infância são múltiplos e desiguais, atingindo fortemente os mais vulneráveis, isto é, as crianças já atravessadas pelos desequilíbrios de raça, gênero e territorialidade no Brasil.

É o que diz a pesquisa Desigualdade e Impactos da Covid-19 na Atenção à Primeira Infância, divulgada em agosto pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, em parceria com o Itaú Social e o UNICEF, e com apoio da UNDIME e do CONGEMAS.

Os resultados encontrados – de acordo com o documento produzido a partir de dados públicos por mais de 40 pesquisadores e especialistas em primeira infância e políticas públicas – são devastadores. 

Indicadores como o de mortalidade materna mostraram crescimento preocupante de 89%, assim como o de crianças abaixo do peso, que aumentou 54% entre março de 2020 e novembro de 2021 e revela o avanço da fome no Brasil. No campo da educação, a Educação Infantil saiu da pandemia afetada pela evasão e pela queda no número de matrículas nas creches. De forma geral, as populações historicamente minorizadas no Brasil foram as mais afetadas, o que reitera a importância de políticas calibradas nos aspectos raciais, de gênero, classe e região. 

A pesquisa é robusta, analisando e comparando os resultados de diferentes levantamentos realizados durante o período, e sublinhando  diagnósticos e sintomas a serem enfrentados pelos educadores, comunidade escolar e gestores públicos. Além disso,  o estudo aponta para a necessidade de priorização do planejamento, fortalecimento e implementação de políticas públicas para recompor os direitos e garantir o desenvolvimento integral da primeira infância. 

Entender as desigualdades e consequências deste período torna-se extremamente necessário diante das consequências vislumbradas a médio e longo prazo. “As crianças que estão no final da primeira infância hoje (6 anos de idade) passaram mais de um terço de suas vidas sob a influência e as restrições do período pandêmico, incluindo cerca de dois anos sem poder frequentar uma creche ou pré-escola. Outras que nasceram em 2020 passaram praticamente toda sua vida nesse período”, explica Marina Fragata Chicaro, Diretora de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. 

Além dos desafios, a pesquisa traz também, ao final, possíveis prioridades e caminhos para enfrentar o cenário e fortalecer os direitos das crianças afetadas pela pandemia. 

Conheça, a seguir, quatro pontos de atenção levantados pela pesquisa:  

1) Infância, uma janela de oportunidades 

A primeira infância, fase entre zero e seis anos de idade, é considerada por especialistas como uma janela de oportunidades para investimentos educacionais. Do ponto de vista neurológico e do desenvolvimento, trata-se de um período-chave, no qual as habilidades cognitivas, motoras e socioemocionais se consolidam. 

“Segundo o Nobel de economia James Heckman, cada dólar investido nesta fase da vida equivale a sete dólares de retorno no futuro. O investimento feito nessa etapa é o mais efetivo para a sociedade. Por isso, o poder público, ao investir em uma primeira infância bem vivida, reduz investimentos em saúde, educação e segurança lá na frente”, enfatiza Marina Fragata Chicaro, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Justamente por se tratar de uma etapa tão relevante, a exposição a fatores de risco ou à violação dos direitos causados pela pobreza, insegurança alimentar, violência, falta de acesso a serviços de qualidade nas áreas de saúde, educação e assistência social, pode impactar negativamente o desenvolvimento das crianças. “Trata-se de uma agenda de direitos que deve ser assegurada com absoluta prioridade à criança e aos adolescentes”, defende

2) Impactos de gênero e raça: Mortalidade materna é maior entre mulheres negras 

Insegurança alimentar, aumento da mortalidade materna e queda das matrículas em creches e pré-escolas são alguns dados preocupantes visibilizados pelo levantamento. 

A mortalidade materna aumentou vertiginosamente durante a pandemia: 89,3% em todo o país. A infecção por covid-19 foi a principal responsável pelos óbitos: 53,4%.  

O que é Razão de Mortalidade Materna (RMM) ? 

A mortalidade materna é monitorada por um indicador chamado Razão de Mortalidade Materna (RMM). Ele é calculado pela divisão do número de óbitos maternos pela quantidade de nascidos vivos durante o ano em determinado espaço geográfico, multiplicado por 100 mil. No Brasil, nem todo óbito materno é registrado corretamente no SIM. Por isso a RMM é calculada pelo Ministério da Saúde utilizando fatores para correção de subnotificação

As mulheres negras foram as mais afetadas: 194 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos em 2021, 71 mortes a mais na comparação com as mulheres brancas. Já entre as indígenas, a RMM observada foi de 140 óbitos/100 mil nascidos vivos.  De acordo com os autores do estudo, os resultados revelam os impactos do racismo e da desigualdade racial histórica no Brasil. 

Para além dos números frios, o impacto dessas mortes nas famílias e comunidades não pode ser desconsiderado. “É preciso pensar que, quando uma mãe negra morre, as implicações dessa morte são sentidas na criança, e também nas avós e avôs cuidadores dessas crianças”, reflete a socióloga, educadora e coordenadora executiva- adjunta da ONG Ação Educativa, Ednéia Gonçalves. 

“Pensar na criança negra é pensar na população negra, entender o lugar da mulher negra, a principal mantenedora dessa criança, e nos impactos tanto da covid quanto do empobrecimento dessas famílias.”, analisa. 

Outro dado analisado pela pesquisa foi a taxa de mortalidade infantil (TMI), historicamente mais acentuada nas regiões Norte e Nordeste do Brasil – um efeito do menor acesso aos serviços de saúde e atenção social nessas regiões. 

No Brasil, este indicador caiu de 12,4 para 11,8 crianças por 100 mil nascidos vivos entre 2015 e 2021. No Norte, a comparação com os mesmos anos revela uma variação da TMI de 15,2 para 15,0 crianças por 100 mil nascidos vivos. Já na região Sul, a de menor taxa, a TMI era de 10,4 em 2015 e desceu para 9,4 crianças por 100 mil nascidos vivos em 2021. 

3) Insegurança alimentar e fome voltam a marcar a infância no Brasil 

A fome também passou a rondar os lares brasileiros, em especial os mais pobres, agravada pela pandemia e pela crise econômica. 

O percentual de crianças muito abaixo do peso, constante até 2018, assumiu trajetória de alta desde então, com o aumento de 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021, passando de 1,1% para 1,7%. 

Para Marina Chicaro, da Fundação Marília Souto Vidigal, a suspensão da ida presencial às creches e unidades de Educação Infantil durante a pandemia reduziu o acesso à alimentação escolar oferecida às crianças. Além disso, fora da escola, a inflação nos preços dos alimentos, a crise econômica e o desemprego afetaram de maneira significativa a renda das famílias, limitando suas opções de alimentação. 

A especialista detalha que a inflação de alimentos e bebidas atingiu mais fortemente as famílias com crianças de até 6 anos de idade. “Entre março de 2020 e dezembro de 2021, o preço da cesta básica para essas famílias cresceu 63%”, explica. No mesmo período, a inflação para a população em geral foi de 54%. 

Além disso, conta Marina, um levantamento realizado em 485 municípios mostrou que a demanda das famílias por apoio à alimentação nos serviços de assistência social aumentou de forma generalizada.  

Doutora em Antropologia Social pela Unicamp, Jaqueline Santos enfatiza que um cenário nacional marcado por fatores como encarecimento do custo de vida, empobrecimento da população e alta taxa de desemprego impactam diretamente na garantia de direitos fundamentais das crianças. 

“Trabalho e renda garantem vários elementos da dignidade humana e o primário é a alimentação”, explica. Ela destaca também o papel da escola no acolhimento das crianças mais vulneráveis e os efeitos da ausência deste espaço durante a pandemia: no espaço privado das casas as crianças mais vulneráveis também ficaram mais expostas às situações de risco, violência e trabalho doméstico. 

Para elucidar a questão, a especialista toma como referência outra pesquisa, que divulgou a existência de 33 milhões de pessoas passando fome no Brasil, exemplificando em números o abismo social vivido por uma parcela considerável da população. 

“Esse mesmo estudo indica que nosso grau de insegurança alimentar é tão grande nesse momento que, mesmo replicando todas as políticas de assistência social da primeira década deste século, como o Fome Zero ou priorizando o enfrentamento à fome, elas não serão suficientes para dar conta da insegurança alimentar dos últimos anos”, alerta 

4) Evasão escolar e queda no acesso à Educação Infantil 

No geral, a pesquisa afirma que a pandemia interrompeu o círculo virtuoso de expansão da Educação Infantil, com quedas expressivas nas matrículas da creche e desafios com relação à evasão escolar detectada no pós-pandemia. 

De 2019 a 2021, houve diminuição de quase 338 mil matrículas nas creches – retração de 2,8 pontos percentuais. Desse percentual, 2,5 pontos são referentes à rede privada de ensino – mais de 280 mil matrículas perdidas. Uma das hipóteses é que, pressionados diante da crise econômica, muitas famílias retiraram as crianças das creches, deixando-as em casa neste período. Trata-se de um ponto de atenção, diante da importância da inserção na Educação Infantil para o desenvolvimento e garantia de direitos na infância. Além disso, a vacinação para a faixa etária atendida pela creche e pré-escola avançou lentamente, o que afetou a volta das crianças para o espaço escolar.  

A queda no acesso foi observada também no restante da Educação Infantil, com  retração de 83,7% nas matrículas em 2021, ainda que esta seja considerada uma fase de matrícula obrigatória, de acordo com a legislação. De 2019 a 2021, a retração foi de 4,1 pontos percentuais, índice superior ao observado para as creches. Em números absolutos, a redução de matrículas foi de cerca de 315 mil entre 2019 e 2021, sendo 275 mil apenas em 2021. 

Para Marina, os dados referentes à queda de matrículas em creches e pré-escolas sinalizam como os impactos da pandemia na primeira infância estão correlacionados. “Outros dados como queda nas imunizações, redução nas notificações de violências e mortalidade materna, por exemplo, ajudam a compreender os desafios para garantia do direito ao pleno desenvolvimento e apresentam um chamado urgente para ação coordenada das políticas públicas federais, estaduais e municipais”, defende. 

Diante dos desafios, Edneia Gonçalves chama atenção para a atuação de grupos, coletivos e organizações da sociedade civil durante o período pandêmico. Para ela, os dados revelados pela pesquisa tornam-se mais potentes quando articulados às formas de atuação direta nos territórios. 

“Por exemplo, a mobilização das organizações sociais dos coletivos e das redes que têm se pautado, sobretudo, na presença nos microterritórios onde fome, luto, ausência de proteção social são muito mais fortes”, exalta a socióloga ao relembrar a contribuição desses grupos para o enfrentamento dos efeitos da pandemia em territórios vulnerabilizados. 

Edneia Gonçalves ressalta também o trabalho de escolas que, mesmo diante das restrições sanitárias e do acirramento da pandemia, abriram suas portas para atender às famílias em condição de pobreza e extrema pobreza. “É preciso colocar a escola como centro de uma mobilização de proteção do direito da criança”, problematiza a socióloga.

Saiba Mais
Pesquisa na íntegra | Desigualdade e Impactos da COVID-19 na atenção à primeira infância

 

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