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publicado dia 24 de fevereiro de 2021

As crianças negras brasileiras continuam vivas!

por

*Por Mighian Danae, doutora em Educação na área da Sociologia da Educação na FEUSP e professora na Unilab. 

 

Há cerca de três anos, defendi a tese de doutorado Mandingas da Infância: as culturas das crianças pequenas na Escola Municipal Malê Debalê, em Salvador (BA). Ela começava com a seguinte afirmação: as crianças negras estão vivas. Naquele momento, julguei ser oportuno levantar essa bandeira porque, se há mais de 100 anos, havia uma previsão, engendrada por uma política do estado racista brasileiro, de que a população negra diminuiria no país por conta da entrada massiva de imigrantes brancos no início do século 20, ter crianças negras vivas – e outras tantas chegando, todos os dias – era mais um sinal de que aquilo que combinamos, não morrer, como nos lembrou Conceição Evaristo , estava dando certo.

+Leia também: A violência como estratégia de inibição da participação social

Hoje, no tempo em que vemos, ouvimos e presenciamos crianças negras desaparecidas ou assassinadas de modo sistemático (ou será programado?) não apenas por aparelhos institucionais do Estado, mas por um modelo de sociedade que não acolhe a diferença, entendo que esta frase continua a ser um bom mote à reflexão sobre a importância que devemos dar às crianças e, em especial às crianças negras, pessoas estas que fazem parte da população brasileira.

A pesquisadora Mighian Danae apresentando sua tese / Crédito: Mighian Danae/Acervo pessoal

Parece óbvio dizer que as crianças são pessoas, mas não é. Isso porque a ideia de pessoa nos remete à alguém maduro, pronto, completo, o que em uma sociedade em que a adultez é o ápice, só aí pode ser alcançado. As crianças, neste modelo, serão pessoas um dia. Elas estão na fila aguardando quando poderão ser. Fico imaginando como deveria se chamar essa fila: “Fila de espera para ser, Fila de espera de quem cansou de não ser”. A fila, essa invenção que obedece a uma lógica de ordenação adulta, que reproduzimos na escola e ainda justificamos, como se as pessoas andassem assim pelo mundo.  “O que você quer ser quando crescer?” é, então, uma das perguntas que mais espelham a nossa certeza adulta de que elas ainda estão na fila.

O que dizer das crianças negras que, por fazerem parte de um grupo social/racial que ainda não alcançou um reconhecido status de participação social, poderão nunca serem vistas como pessoas, posto que não são vistas agora e não carregam consigo a potência de futuro, do tal vir a ser?

Gingas vivas da infância

Foram essas constatações que, de modo assistemático, realizadas durante quinze anos como professoras de crianças pequenas, instigaram a pesquisa que realizei com as crianças em 2017 e que deu origem à tese de doutorado Mandingas da Infância, defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Eu via como as crianças negras (não) eram vistas – e eu mesma tinha sido uma criança negra! – e isso me motivou a querer aprender com elas como reinventavam um mundo a partir do que tinham, a partir de suas experiências, e como lidavam com situações do cotidiano em uma sociedade onde não eram vistas a partir do ideal de futuro desejado.

Eu queria conversar com crianças negras pequenas e para fazer isso, pensei numa escola. Em parte, porque estive na escola como professora durante muito tempo e em parte porque uma escola pública seria o lugar onde as encontraria (quase) todos os dias. A escola era dentro da sede do bloco afro Malê Debalê, situado em Salvador, no bairro de Itapuã e passei quase um ano e meio lá, convivendo com crianças entre quatro e cinco anos. O interesse de ir para um território negro era por estar muito interessada em como as crianças escapam à logica do mundo racista – já tinha aprendido como elas poderiam sucumbir.

Todo mês a plataforma Educação e Território publica textos de pesquisadores que refletem sobre territórios educativos e educação integral. Para ver seu texto publicado aqui escreva para [email protected]

Estar com as crianças foi uma das coisas mais fantásticas que eu poderia ter feito durante toda a vida. Fiz isso como professora, mas como pesquisadora, a interação foi alterada e pude olhar para mim mesma de um jeito que nunca tinha conseguido antes. Ainda hoje, seis anos depois, me emociono quando lembro das formas como as crianças imaginavam o mundo e as relações entre pessoas, coisas, tempos e espaços, para garantir um respiro ante ao mundo adulto e tudo que nele contém: racismo, sexismo, machismo, misoginia, preconceito, discriminação. As crianças aprendem, imitam, reproduzem e reinventam, tal como nós. Não há garantias que essas reinvenções serão sempre eivadas de sentimentos como solidariedade, coletividade e acolhimento. É por isso mesmo que precisamos urgentemente repensar nosso papel enquanto pessoas adultas que colaboram para o estado de coisas em que estamos. É por isso que precisamos aprender a traçar caminhos mais horizontais nas relações com as crianças, levando em consideração o que elas expressam sobre o universo que as cerca.

As vivências com as crianças abriram espaço para a compreensão de que, de um modo muito especial e único, elas lançam mão de uma ginga própria para dar conta de viver num mundo onde há pouco espaço para ser criança de modo inteiro. Na pesquisa com as crianças, percebi que a linguagem da capoeira pode ser de grande valia para entendermos como as crianças negras se movimentam no mundo.

Chamei então de mandinga da infância o jogo jogado pelas crianças neste momento da vida, e de ginga, os manejos que fazem, dentro deste jogo – em que joga criança e gente grande! – para conseguirem, em alguma medida, tomar um pouco das rédeas da própria vida. Podemos perceber que estas gingas estão sendo praticadas dentro e fora da escola, quando as crianças, ao dizerem o que muitas vezes as pessoas adultas querem ouvir, ganharem alguma folga para fazerem o que desejam, em determinados momentos.

Essas constatações nos fazem perceber que, num mundo que valoriza apenas quem cresce, ser criança por dez, doze anos, parece muito tempo! E é por isso que as crianças, e especialmente crianças que não fazem parte do grupo visto como dominante – a saber, crianças brancas –  precisam encontrar modos de resistir, existir, ou seja, (re)existir sempre e é o que as crianças, e em especial aqui as crianças negras, fazem. Afirmo categoricamente que fazem porque estamos aqui.

Se estamos aqui, pessoas negras adultas, é porque nós conseguimos reinventar um mundo que ainda não é feito também para nós. Negociando e não apenas esperando crescer, nós seguimos. Descobri com elas – e com a criança que fui – que não devemos sucumbir ao mundo que nos oferecem e devemos/podemos continuar, no exercício da ginga, continuar sonhando com tempos mais inclusivos e de alegria. 

criança desenhando cadernos
Durante um ano, Migh observou atentamente como as crianças gingavam e brincavam para conseguir impor seu ritmo num universo adultocêntrico / Crédito: Mighian Danae/Acervo pessoal

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