publicado dia 2 de fevereiro de 2017
Tempos e saberes da cultura popular: matrizes para um currículo do território
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 2 de fevereiro de 2017
Reportagem: Pedro Nogueira
Em Laguna (SC), uma criança via todos os dias, durante a época de pesca da tainha, seu pai voltando do mar com o barco carregado. Observava os pescadores limpando os peixes e pendurando um a um no varal, polvilhados de sal para secarem ao sol e manterem-se conservados por mais tempo – garantindo alimento para o ano inteiro. Em um esforço de entender e participar do mundo à sua volta, a criança armou seu próprio varal com linha e pequenos galhos e nele estendeu gomos de laranja, cortados e cobertos de farinha, reproduzindo o ritual do mundo adulto.
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Este fragmento de lembrança infantil foi relatado por uma professora durante uma formação ministrada pela educadora e pesquisadora de cultura popular Flora Barcellos, que vê nessa experiência um sentido exemplar sobre o papel da memória coletiva para a educação, o brincar e a cultura.
“Cultura é cultivo de conhecimento, é tudo que nos é ancestral, são nossas canções, comidas e famílias. E a cultura popular está intrinsecamente ligada aos ciclos da natureza, aos solstícios e equinócios, à mudança das estações e aos rituais de fertilidade e passagem que deles emanam”, explica a educadora, que vê no reativamento desses laços uma ferramenta importante no processo de ensino-aprendizagem. “Nós muitas vezes temos uma relação muito mórbida com a nossa criança interior. Se nos propusermos a brincar, que etimologicamente significa criar vínculo, você acessa essas memórias e fortalece o processo educativo. Não há nada mais universal que isso.”
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Ela ainda ressalta que o artista popular brasileiro é conhecido em muitas tradições como um “brincante”, reunindo a potência das histórias e narrativas do país para “abrir janelas”. “Escutar nosso contexto biológico e cultural é uma maneira maravilhosa de criar formas bonitas de contar e brincar. Isso é o mais precioso da cultura popular: transformar em beleza toda dureza da vida. Com alegria, com enfeite, com brilho e com muito pouco dinheiro. É a resistência por meio da brincadeira.”
Decifrar a cultura, descobrir o Brasil
Para o músico, pesquisador e fundador do Instituto Brincante, Antônio Nóbrega, a cultura popular é um conjunto de manifestações simbólicas que corresponde à uma linhagem formativa de nosso país, que pode ser desdobrada em diversas “configurações educativas”. “É como um soneto de Camões, que conforme você faz a escansão, decifra os sentidos, você encontra mensagens sobre um tempo e um povo. A partir da arte, da cultura, do que é gostoso, você educa em um sentido maior de ampliar a consciência sobre o curso do mundo.”
O processo criativo, que se vale de diversas estruturas formais de ritmo e narrativa, oferece, na cultura popular, “um manancial rico de parâmetros e estruturas de ideias”. Segundo Nóbrega, “para você consolidar essa ideia em uma rima, você mobiliza aspectos cognitivos que ajudam a organizar o pensar. A neurociência já mostrou que esse processo contribui com a criação de novas sinapses que nos fazem pensar melhor sobre o mundo.”
Isso é o mais precioso da cultura popular: transformar em beleza toda dureza da vida.
Flora projeta suas investigações no campo da cultura popular em seu trabalho no Brincantinho, um curso que acontece no Instituto Brincante, em São Paulo. Voltado para crianças de 3 a 6 anos e de 7 a 10 anos, o Brincantinho passa por um repertório de histórias, mitos, canções, músicas e danças da cultura brasileira, de modo lúdico e divertido. Durante a oficina, as crianças têm contato com as datas festivas tradicionais brasileiras – que orientam o calendário das aulas – e com manifestações da cultura popular brasileira por meio de suas matrizes fundadoras (indígena, européia e africana). A intenção é construir um lugar prazeroso de pertencimento e de identidade cultural.
Como exemplo, o artista pernambucano cita que, ao ouvir um batuque paulista de Piracicaba, uma pessoa vai se deparar com as estruturas sociais que fizeram e marcaram o país. “Essa memória antiga, que liga o batuque de tambor de criola do Maranhão com o interior de São Paulo, nos faz pensar sobre como o Brasil conseguiu disseminar formas tão parecidas e tão individuais”, avalia, recordando dos processos violentos de escravidão e colonização que desenharam o nosso patrimônio cultural.
“Se escutarmos isso, talvez entendamos muito do que vivemos hoje em dia, de tudo isso que foi marginalizado e contraditoriamente comparece na cultura”.
Cultura popular: subvertendo o centro
“O Bumba meu boi nasceu nos quilombos, dentro do nosso sentimento, e depois saiu pelo Brasil ganhando diferentes sotaques”, anuncia Tião Carvalho, que há mais de 30 anos mantém acesa a Festa do Boi no Morro do Querosene, junto com Grupo Cupuaçu, na zona oeste paulistana. A manifestação cultural toma as ruas do bairro com o Auto do Boi, um Auto dramático popular, celebrado em três ocasiões (no sábado de Aleluia é o nascimento do Boi, que é batizado no mês de junho, e morre no fim do ano, perto do dia de Finados).
O ‘Boi’, que tem muita força no Maranhão, mas cujos primeiros registros são de Pernambuco, é um exemplo forte de uma cultura popular viva, que se transmite e se transforma ao longo de todo o país, seguindo o rastro de migrantes maranhenses que levam, como conta Tião, “aquilo que tem de seu, que está no umbigo” para onde quer que estejam.
Existem algumas variações a respeito da lenda do boi. A história mais comum aborda a escrava Catirina (ou Catarina), grávida, que pede ao marido Chico (ou Pai Francisco) para comer língua de boi. O escravo atende ao desejo da esposa, matando o boi, e sendo preso a mando do dono da fazenda. Com a ajuda de curandeiros, o boi é então ressuscitado. Leia mais.
Longe da idealização folclórica da tradição popular, as temporalidades dessa cultura, defende Tião, “ajudam [algumas populações] a sobreviver nesse país, com essa abolição demorada e incompleta, fornecendo outras centralidades de tudo que é mais natural e simples. A cultura popular ensina ‘aprender a ser’, sempre com esse sentido coletivo muito forte.”
Carregando esses sentidos, as celebrações com o Boi podem ser encontradas em todo o país. Em Pernambuco é conhecido como Boi Bumbá; no Maranhão, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí, é Bumba meu boi. No Ceará e Espírito Santo, ganha a alcunha de Boi de reis. Na Bahia, Boi-janeiro; em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, é Folguedo do boi. O Espírito Santo o batiza de boi de reis e em São Paulo vira Dança do boi. No Amazonas, ganha sua expressão mais forte na Festa do Boi de Parintins, que opõe os bois Caprichoso e Garantido, mas também aparece em muitas cidades do Pará e Rondônia. No Sul, é mais conhecido como Boi-de-mamão.
Além dos lugares onde está estabelecido de maneira tradicional, o Boi continua a se espalhar encantado pela palavras dos mestres. Tião retoma os grupos em Goiás que surgiram nos últimos tempos para lembrar que ajudou a fundar grupos de boi em diversas cidades do Paraná. “Nosso trabalho em Londrina surgiu de uma conversa e se transformou em um projeto bonito em uma área vulnerável, que trouxe a secretaria de educação e a prefeitura para trabalhar com a criançada e a comunidade. Deu um baita adianto na questão daquela favela, abriu diálogos antes intransponíveis, no sentido de que um vai chamando o outro e as pessoas começam a enxergar que o jovem abandonado é filho do ‘maior’ abandonado.”
Valorizar as culturas afro-brasileiras
Para a educadora Flora Barcellos, há uma recorrência da figura do boi de maneira mítica em diversos lugares do mundo. No caso do Brasil, ela corrobora com a ideia de que o boi acompanha o desenvolvimento do território brasileiro, assumindo contornos específicos em cada local e trazendo inúmeras possibilidades de se contar as histórias dos povos subalternizados do país. “O boi representa a luta e a resistência mesmo nas condições de vida mais extenuantes.”
Com 14 anos recém-completos, a Lei 10.639/03, que institui o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nas escolas do país, ainda enfrenta enormes tensões, desafios e resistências para ser implementada, que vão da falta de subsídios para a formação docente até a oposição de parlamentares vinculados à bancadas religiosas de matriz cristã.
“As escolas precisam abrir os olhos para o Brasil e ver como lidar com a cultura e a história africana. Isso forma a gente, e a tendência é ter medo e discriminar aquilo que não conhecemos. Saber lidar com a nossa arte, não só com o boi, mas com a capoeira, com o jongo, com toda a multiplicidade das expressões negras, é encarar que é preciso falar da gente a partir de nossos símbolos, da nossa dignidade. A gente tem sim muita coisa bonita para falar”, dispara Tião Carvalho.
“Isso tudo tem a ver com o prazer da vida, do cotidiano, das pessoas. Se a gente bobear, o sistema vai tirando a alma, a cultura, aquilo que há de mais humano. Assim, quando pensamos em educação, estamos pensando sobretudo nessa afetividade, nessa humanidade, nesse olhar para o outro. É para isso que serve educar. O papel do educador é também dar conta dessa história riquíssima que toda criança traz consigo, essa fertilidade cultural”. Leia mais em Vera Santana: Cultura local deve entrar na escola e ajudar a transformá-la.
Professor, um comunicador das crianças
Encontrar caminhos na cultura popular, em suas crenças, danças, artes, morais, ideias, linguagens, costumes e folclores, na opinião de Flora, é uma tarefa que não exige pretensão. “Meu trabalho surgiu com um olhar muito simples, de entender as histórias bonitas que constroem a identidade cultural e de pertencimento das crianças, e perceber como isso ressoa nos gestos, nas cores, nas brincadeiras e na alegria. É uma transformação do olhar para a nossa história.”
Em suas palavras, o professor é o “comunicador das crianças” e tem um papel fundamental no fortalecimento do processo identitário da infância brasileira, enquanto portador dessa rede de signos e significados e como perpetuador das manifestações culturais territoriais brasileiras.
“Isso faz parte de um esforço democrático. A educação formal muitas vezes foca demais na escrita e na leitura, mas existem pessoas – não só crianças – que aprendem mais escutando uma música ou vendo uma folha caindo. Quando você abre linguagens, o acesso à educação se expande e você permite que quem aprende possa trilhar o caminho que tem sentido, que dialoga com sua cultura, com uma vida não fragmentada, com esse percurso resistente da cultura popular”, conclui.
Pequeno Compêndio e Calendário da Cultura Popular
A cultura brasileira é tão vasta quanto o território do país e já foi inventariada por inúmeros pesquisadores, do calibre de Mário de Andrade e Câmara Cascudo. Para exemplificar alguns pontos elencados no texto acima, trazemos abaixo alguns exemplos da diversidade regional brasileira:
Folia de Reis: De origem cristã, mas sincretizando diversas outras matrizes religiosas e culturais, a Folia de Reis reencena a chegada dos Três Reis Magos e é realizada por todo o país – especialmente nas pequenas cidades da Bahia, Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Paraná, Goiás e Espírito Santo – entre o Natal e o dia 6 de janeiro. Em Pernambuco, recebe o nome de Cavalo Marinho, um dos maiores autos populares do Brasil. “Os festejos de reizado, o Cavalo Marinho, o Presépio da Bahia, misturam matrizes ibéricas nas métricas e melodias, com o batuque e o samba da matriz afro e os ornamentos e o belo da matriz indígena. Tudo ali é feito mirando o belo, o cuidar, que lembra algumas características da criança pequena”, relata Flora, que vê nos festejos de solstício de verão (ou inverno, no hemisfério norte) um símbolo da luz e do renascimento. “Na narrativa católica a vinda de um menino que vem refazer o amor e a esperança no mundo tem um sentido muito bonito e afeito à infância.”
Carnaval: O carnaval brasileiro adquire feições diferentes em cada região. Chegou no Brasil com as festividades do Entrudo. Caracterizada pelas marchinhas em São Paulo, Rio de Janeiro e no sudeste, onde também se encontram as festas de batuques paulista, como umbigada, jongo. A palavra “semba”, que deu origem ao termo “samba”, é de matriz africana e, segundo Flora, remete à rituais de fertilidade iorubá, onde “umbigavam os ventres”. No nordeste, o carnaval também é marcado pelo maracatu.
Cavalo Marinho: Assim como o Bumba-meu-boi, o Cavalo Marinho é um auto popular. Ele vai do ciclo natalino até a Festa de Reis na região da Mata Norte de Pernambuco. É composto de diálogos, danças e brincadeiras e conta com a participação do público, animado pela rabeca, pelo reco-reco, pelo ganzá e pelo pandeiro. “São 80 personagens que compõe diversos arquétipos sociais, animais e folclóricos. Como foi criado por cortadores de cana, o Cavalo que reproduz as posturas desse trabalho no bailado, ou seja, a postura corporal conta uma história e, cantando, eles transgridem a hierarquia social na brincadeira, relembrando em sua narrativa os dois negros fugidos que tomam conta do terreiro do patrão.”
Ciclo de São João: O ciclo de São João, ou as festas juninas, correspondem no Brasil ao solstício de inverno – o mesmo que marca o Natal e outras festividades no hemisfério norte. As quadrilhas são de inspiração das cortes portuguesas e francesas e ele também é marcado pela presença de “bois” em certas regiões. A fogueira pode tanto simbolizar as festividades indígenas, africanas e europeias (São João é simbolizado pelo fogo, assim como seu correspondente na umbanda, o orixá Xangô) e também atende à necessidade de calor. Elementos como o balão e os mastros representam a ligação entre a terra e o céu. As populares quermesses e barraquinhas remetem à época da colheita, quando cada família comercializava o que produzia em seu roçado. Os casamentos também fazem parte das festas juninas, especialmente no dia de Santo Antônio (13/6).
(A foto que ilustra essa matéria foi gentilmente cedida pela fotografa Julia Chequer. Confira o trabalho dela por aqui)