Perfil no Facebook Perfil no Instagram Perfil no Twitter Perfil no Youtube

publicado dia 22 de abril de 2021

Historiador Célio Turino lança livro sobre pontos de cultura da América Latina

por

Há quase 40 anos, o Vichama Teatro trabalha com alfabetização intercultural na Villa El Salvador, no Peru. A história deste ponto de cultura se interliga com a das lutas comunitárias do território, e seus espetáculos. Construídos junto com a comunidade, celebram a potência da cultura como transformadora concreta de realidade. 

Atravessando as fronteiras amazônicas que separam Peru e Brasil, outro ponto de cultura também têm na força comunitária o pilar para a construção de práticas de resistência. A organização Thydêwá une diversos povos indígenas do Noroeste do país em ações afirmativas e de proteção a estas populações. É em redes que eles lidam com momentos de crise, como a pandemia de Covid-19.   

Estas e outras histórias de pontos de cultura são contadas no livro Por Todos os Caminhos: Pontos de Cultura na América Latina (Edições Sesc São Paulo, 2020), escrito pelo historiador Célio Turino. Durante anos, Turino coletou histórias de territórios sul-americanos onde a força organizacional engendra novas formas de ver o mundo. 

“Ponto de cultura é um ponto de potência que se encontra em todas as comunidades [aqui é possível citar uma diversidade delas, como museus, quilombos, comunidades indígenas, casas de cultura em contexto urbano]. Os formuladores de políticas públicas sempre trabalham a ideia de carência, daquilo que a população não tem. O ponto de cultura é o inverso disso. Ele busca encontrar as capacidades de transformação da realidade dentro das próprias comunidades e articula isso em uma rede de cultura viva”, elucida Turino.

O Vichama Teatro, no Peru, trabalha com alfabetização intercultural. Os espetáculos são construídos junto com a comunidade / Crédito: IberCultura Viva

No início dos anos 2000, quando secretário de Cidadania Cultural no extinto Ministério de Cultura (MinC), Turino formulou o programa Cultura Viva e implementou 3.500 pontos de cultura em 1.100 municípios. Bem-sucedida, a política inspirou formulações e reconhecimento em outros territórios do mundo. Desde 2010, Turino visitou mais de 50 pontos de cultura internacionais. 

A plataforma Educação e Território conversou por telefone com o historiador sobre o que esses pontos de cultura, diversos mas amalgamados sob os signos de compartilhamento, podem ensinar sobre a produção de conhecimento nos diversos territórios e inspirar práticas e políticas para o porvir da pandemia. 

Educação e Território: Célio, por que você escolhe percorrer os pontos de cultura da América Latina e Central? Quais são as convergências e diferenças que nos unem enquanto porção sul do continente americano? 

Célio Turino: A América Latina é o único continente do planeta em que você pode ir de ponta a ponta e se fazer entender. Há muita proximidade linguística entre nós. Saindo do México até a Terra do Fogo na Argentina, nós conseguimos nos compreender. 

Esse continente também é marcado por um episódio determinante que é o do colonialismo e da colonialidade. Colonialismo é a imposição de um Estado, de uma cultura para a outra. Colonialidade é o que fica depois. Mesmo no pós-independência sobrevive a colonialidade, nas relações de poder, na ideia de que se deve pensar com a cabeça do colonizador. É preciso lembrar que, para haver uma empreitada colonial bem sucedida, foi necessário aniquilar culturas muito sofisticadas. E muito poderosas. Mas ainda existe resistência

Nessa jornada pela América Latina, vou atrás de culturas como as ameríndias, que habitam os Andes e produzem Bem Viver, ou em quechuá sumak kawsay. Aqui no Brasil, escutei os guarani-kaiowá, que tem a Tekoa Porã, casa boa de viver. No sumo dessas culturas fui buscar soluções e caminhos para um mundo de melhor convivência, não só entre humanos, mas humanos, demais seres e natureza. 

ET: O que é um ponto de cultura? Por que essa política pública se espalhou para além das fronteiras do Brasil? 

Célio Turino: Ponto de cultura é um ponto de potência que se encontra em todas as comunidades. Os formuladores de políticas públicas sempre trabalham a ideia de carência, daquilo que a população não tem. O ponto de cultura é o inverso disso. Ele busca encontrar as capacidades de transformação da realidade dentro das próprias comunidades e articula isso em uma rede de cultura viva.

Por que esse conceito se espalhou e se ramificou de forma tão natural e orgânica? Por que ele é um conceito matemático. Ele vem de uma aforismo de Arquimedes, matemático grego: Dá um ponto de apoio e uma alavanca e eu moverei o mundo. O ponto de cultura é este ponto matemático, de apoio, que faz com que as comunidades movam a sua realidade. 

Ao longo dessa viagem,  quis compartilhar essas experiências, de uma forma bem concreta, bem efetiva, para as pessoas verem que não é algo utópico, é algo que acontece. Ocorre que as instituições de Estado, os formadores de política pública, os organismos internacionais percebem pouco porque olham pouco para essas realidades. 

ET: Você pode trazer alguns exemplos de pontos de cultura? Eles parecem ser bastante diversos, espraiados em territórios também distintos. 

Célio Turino: Às vezes as pessoas confundem, acham que ponto de cultura é só para comunidades periféricas, ou só dentro delas, o que me dá muita gastura. O carente enquanto substantivo. Essas comunidades foram subtraídas de coisas, mas elas têm outras. Muitas potências e qualidades a apresentar. 

Pontos de cultura podem ser comunidades construídas dentro da universidade, companhias de teatro contemporâneo. Podem se dar em povos e comunidades tradicionais, que se agarram em culturas e fios de ancestralidade comunitária. 

Pontos de cultura também independem de paredes. Eles podem acontecer na sombra de uma árvore, desde que aquela sombra reúna pessoas dispostas a intervir na realidade, a construir narrativas, a puxar seu fio de história. 

Organização Thydêwá trabalha com diferentes povos indígenas do nordeste brasileiro / Crédito: Facebook

ET: A arte e a força de criar a partir dela me parecem pontos em comuns nesses tão diversos pontos de cultura. 

Num ponto de cultura, e a partir do conceito de cultura e arte, o que vai acontecendo é uma busca pela “reharmonização”, reencantamento do mundo. Feito a partir de gentilezas, pequenas e grandes. No capítulo Medellín: Fragmentos biográficos de uma cidade, falo sobre a cidade de Medellín, que foi a cidade mais violenta do mundo até o começo dos anos 1990, com uma média de 380 pessoas assassinadas por 100 mil habitantes. 

Como eles conseguiram enfrentar a questão da violência? Foi a partir da arte, da cultura. E também da realização de gentilezas para a população. Nas favelas e morros, o poder público construiu jardins, espaços de convivência e transporte por teleférico. Tudo permeado como arte e arranjos comunitários. Em 2014, a cidade foi considerada a mais inovadora do mundo. O índice de violência em Medellín foi reduzido a 19 homicídios por 100 mil habitantes, e isso veio sobretudo de ações políticas e culturais e de uma intervenção comunitária muito potente. 

Para vocês, que cobrem diretamente educação, trago mais um exemplo. A educação do povo Totonaca, do México. Para as Totonacas, as pessoas só encontram a felicidade a partir do seu dom, e todas elas devem descobrir seu dom para saber servir a comunidade. 

A educação totonaca é organizada em casas do saber: Casa da Pintura, Casa da Arte da Cura, a Casa do Mundo do Algodão são exemplos. Há também a arte dos voladores [Declarada Patrimônio Imaterial pela UNESCO, a dança acontece em troncos de árvores de mais de 30 metros, com os bailarinos suspensos no ar].  Quando os jovens descobrem o dom que eles têm, eles encontram a felicidade. 

Olhando para nossa forma de educação produtivista, mercadológica, a educação totonaca é o oposto. Nossa educação tolhe a capacidade uma criança e jovem de encontrar seu dom, adestrando pessoas para que não se percebam num ambiente comunitário, para que reprimam suas capacidades dentro de uma lógica produtivista. 

No livro, enquanto descrevo a caminhada que faço de casa em casa, mostro que há outras formas de educação, que são milenares mas que estão presentes até hoje. Uma escola em que fui tinha um forte cheiro de enxofre, porque em volta dela tem extração de petróleo que está destruindo o território dos totonaca. O que os indígenas fizeram foi abrir a escola para os não-indígenas. Porque o ambiente deles só pode ser harmonioso se o entorno for também. 

ET: Quais valores conseguimos pensar para esse mundo de pandemia e pós-pandemia? Nesses pontos de cultura parecem ter chaves importantes para se pensar um mundo mais colaborativo. 

Célio Turino: Nunca antes foi tão necessário esse aprendizado comunitário, tão espalhados nos pontos de cultura, quer ele assumam esses nomes ou não. O primeiro desses aprendizados diz de uma linha entre invenção e tradição. Entre memória e ruptura. Eles mantém contato com a ancestralidade mas sem receio de se colocar na contemporaneidade e de se reinventar. 

Essa capacidade se inventa e se reinventa em novos mundos, a partir de outros valores. São esses o de colaboração e de uma ideia não antropocêntrica do mundo. De que é necessário ter uma comunidade de convivência, necessidade de cuidado do planeta, e relações de confiança, porque no capitalismo somos convidados para a desconfiança, competitividade e ganância. Nestas comunidades que eu mostro, histórias profundas de violência se deram e se dão, e eles se superam a partir do lúdico, do jogo e da brincadeira. 

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.