publicado dia 7 de julho de 2022
“Não conseguimos fazer educação de qualidade sem democracia”, ressalta educadora Givânia da Silva
Reportagem: André Nicolau
publicado dia 7 de julho de 2022
Reportagem: André Nicolau
Durante a década de 1930, no quilombo de Conceição das Crioulas, na cidade do sertão pernambucano de Salgueiro, um homem chamado José Mendes ganhou notoriedade entre os moradores por um gesto que transformaria a história da comunidade.
Com uma metodologia própria de alfabetização, já que nunca teve acesso à escola, José Mendes desenvolveu uma experiência educacional que buscava não apenas o ensino da leitura e da escrita, mas que tinha como foco a defesa do território através da organização coletiva.
De porta em porta, ele apresentava às famílias do quilombo um processo pedagógico em que priorizava o compartilhamento do saber, da ciência, da sustentabilidade, valorizando a memória e a identidade quilombola.
Quase cem anos depois, o legado deixado por José Mendes vive no trabalho de Givânia Maria da Silva, descendente de mulheres que trabalhavam nas plantações de algodão da região. Primeira de sua comunidade a cursar faculdade, graduou-se em Letras, tornou-se diretora da primeira escola de Conceição das Crioulas e concluiu mestrado em Políticas Públicas e Gestão da Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
À frente da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Givânia é hoje uma das mais proeminentes representantes da luta pela promoção da igualdade racial, que tem na educação a principal ferramenta de transformação.
No dia 28 de junho, Givânia foi uma das convidadas para o lançamento da “Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições de 2022”, realizado no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que contou com a participação de educadores, ativistas e candidatos e candidatas aos legislativos federais e estaduais.
Em entrevista ao Educação e Território, a especialista falou sobre a indissociabilidade entre educação e território, os desafios e perspectivas diante do atual cenário político da democracia no país, e as contribuições do movimento quilombola para se pensar educação no Brasil.
Educação e Território: Em um país como o Brasil, por que o território é algo relevante para pensar o direito à educação?
Givânia da Silva: O projeto de colonização no Brasil tirou a ideia de que o meu lugar interfere no seu lugar, o lugar que ocupo interfere no seu. Criou-se uma mentalidade de que, se moro no centro de São Paulo, não tenho nada a ver com o que acontece nas periferias. E isso não é verdade. Existe uma conexão, mesmo que isso não seja compreendido e, na perspectiva quilombola, não tem como pensar educação sem pensar em território porque a nossa luta se dá a partir do território.
Não existe pensar em educação, saúde, sem pensar em território e essa lógica também deveria ser pensada por toda a sociedade. Por isso, para mim, não existe educação sem associar ao território porque é nele e com ele que conseguimos estabelecer essa relação de pertencimento. Não posso deixar o território para poder estudar, porque essa educação tem que vir para o território para que esse conhecimento, que eu chamo de educação quilombola, seja entendido pela educação escolar e por esse território onde ela está, seja nos quilombos urbanos, rurais ou nas periferias. Então não tem como pensar educação a partir do centro de São Paulo sem pensar nas periferias de São Paulo.
Educação e Território: Em um contexto político de ataque e apagamento dos saberes dos povos afrodiaspóricos, quais são as principais pautas de luta da CONAQ neste momento? Os principais desafios e perspectivas?
Givânia: Deve ser a pauta de todos os brasileiros e todas as brasileiras retomar a democracia do nosso país. É uma frágil democracia, porque muitos dos cidadãos, principalmente a população negra, nunca experimentaram a democracia. Não existe democracia sem território, sem educação, sem trabalho, sem liberdade de ir e vir, então muitos dos nossos sequer experimentaram essa que existe aí. Mas mesmo sem essa ficará muito mais difícil.
A tarefa principal de todos os brasileiros, e a CONAQ como movimento nacional não podia ser diferente, é exatamente lutar pela retomada da democracia. Retomando, a gente precisa discutir o papel da educação e da saúde, porque a pandemia mostrou quem são os desprovidos, desacobertados, desprezados pelo Estado brasileiro: as pessoas negras, periféricas, indígenas e quilombolas. Eu costumo dizer que não luto por igualdade, mas por respeito, porque falar em igualdade de tratar todo mundo igual é exatamente o que encobre muitas das mazelas que o racismo e o sexismo têm plantado na nossa sociedade, inclusive pelos sistemas de educação.
“Não tem como pensar educação sem pensar em território”
Educação e Território: O que a educação quilombola informa sobre o Brasil? Quais elementos ela traz para pensarmos o país?
Givânia: Acho importante dissecar duas questões que são fundamentais: primeiro a existência do que nós chamamos de educação quilombola, que independe do Estado. Quando ela é afetada pelo Estado? Quando ela “desterritorializa” a comunidade, então ali ele interfere naquele processo diretamente. Essa é a educação que nós temos domínio, de contar nossas histórias para os nossos, ensinar como se planta, nossas vivências, a relação com a terra.
Além disso, há dez anos, o Conselho Nacional de Educação construiu e nós da CONAQ participamos intensamente na elaboração das diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola. O que esses dois lugares informam é que não precisa apagar a história dos sujeitos para fazer educação. A educação quilombola não anula a educação escolar quilombola e nem a educação escolar quilombola deverá anular a educação escolar, porque as duas devem se complementar.
É essa educação escolar quilombola que vai informar para a educação escolar que existem 6.500 quilombos, que estamos em mais de 2 mil municípios, que estamos em todos os biomas brasileiros.
Vai informar à sociedade que é necessário desconstruir essa ideia de quilombo, um quilombo único, que chega lá e tem a casa grande, que se procura não as pessoas e os modos de vida, mas as marcas da escravização.
Onde se procura muito mais os símbolos da escravidão do que a resistência, a luta e a história destes por essa orientação. Então, é nesse sentido que acho que elas são indissociáveis, porque a educação escolar quilombola subsidia a educação escolar.
Educação e Território: Como o Ministério da Educação lida com a educação quilombola? Como os saberes quilombolas integram a Base Nacional Comum Curricular?
Givânia: Não lida, desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2015. A Base Nacional Curricular tentou retomar algo que o brasileiro já vinha se livrando, que é essa ideia da educação uniforme para todo mundo. Enquanto a gente discutia a educação indígena, do campo, quilombola, para a diversidade, de repente, a BNCC surge dizendo que nós somos um só e o ensino será unificado, o que é mais um sinal de retrocesso na educação.
Inclusive, na nossa carta, sugerimos que seja revisto esse conteúdo da BNCC para que compreendam que a educação é diversa porque nós somos sujeitos diversos, estamos em biomas e lugares diferentes e nossa perspectiva de território é diferente.
Significa que os quilombos de São Paulo têm a visão deles, e não que estejam fechados nesse mundo, mas que a educação não pode ignorar esses lugares e esses saberes.
“Não precisa apagar a história dos sujeitos para fazer educação”
Educação e Território: Qual a contribuição da ancestralidade para a educação quilombola ?
Givânia: Os quilombos estão diretamente ligados ao fator ancestral. Precisamos falar sobre o quanto a desinformação desterritorializa a gente. Pensam que o quilombo só existe se eu tiver no quilombo, mas o que fazer se o Estado destruiu o quilombo? O mesmo Estado que questiona meu direito de incentivo à educação quilombola fechou a escola.
A educação quilombola está inteiramente ligada à questão ancestral porque a ancestralidade é mais que um subsídio, é a base para a gente pensar numa educação equitativa, respeitosa e diversa.
Seria impossível pensar na educação sem ter como referência a ancestralidade. Eu diria que o território é essa base ancestral, mas eu não falo sobre território geográfico e, sim, cultural e corporal. Nesse caso específico da questão quilombola, os quilombos se estruturam e se afirmam a partir das questões da sua relação de pertencimento ancestral.
Educação e Território: O que deve ser prioridade para o próximo governo na educação quilombola? O que pode contribuir para a manutenção e incentivo dessa modalidade?
Givânia: Acho que é importante falar sobre financiamento da educação, mas temos que pensar na diversidade. A carta-compromisso assinada por representações suprapartidárias diz muito sobre a questão da educação na retomada da democracia. É preciso entender que não conseguimos fazer educação de qualidade, a partir das realidades de cada sujeito e território, sem a democracia. Mas também não fazemos sem dinheiro. Enquanto a educação for pensada como gasto, não teremos uma política consolidada para o ensino.
Além disso, vários instrumentos que a sociedade construiu nos últimos anos foram abandonados: o plano nacional de educação, a própria constituição, que é um conjunto de questões que precisaremos retomar, mas é preciso começar pela democracia.
Destinada a candidatas/os à presidência, legislativos federais e estaduais e a governos, “Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022” contém 40 compromissos para garantir um financiamento adequado à educação nos próximos governos, além da construção de sistemas de educação pública fortes e a superação das profundas desigualdades raciais, sociais, de gênero e regionais.