publicado dia 25 de junho de 2024
Irene Rizzini: “Violência sexual contra meninas é de extrema gravidade, mas tema foi silenciado por séculos”
Reportagem: Nataly Simões
publicado dia 25 de junho de 2024
Reportagem: Nataly Simões
🗒️Resumo: Em entrevista, a diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI) Irene Rizzini analisa impactos do PL do Estupro (PL 1904/2024) para os direitos das crianças e adolescentes. Para a especialista, a proposta que propõe a proibição do aborto acima da 22ª semana de gestação para os casos previstos em lei impactará especialmente as meninas vítimas de violência sexual.
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o PL do Estupro (PL 1904/2024) reacendeu o debate sobre o aborto legal no Brasil. Em especial, jogou luz sobre as violações de direitos das meninas de até 14 anos, 60% das vítimas de estupro registrados no país em 2023, de acordo com o Atlas da Violência 2024, produzido anualmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Caso seja aprovada, a proposta impossibilita o acesso delas à interrupção legal da gravidez decorrente de violência sexual.
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Aborto legal
Atualmente, o Brasil permite a interrupção da gravidez decorrente de estupro, que represente risco de vida para a gestante ou quando há anencefalia diagnosticada no feto.
Pautado pelos parlamentares com urgência em junho deste ano, o PL do Estupro foi recebido com forte reação nas redes sociais e nas ruas, com protestos de mulheres registrados na última semana em São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Brasília (DF). Após as manifestações, a Câmara recuou e adiou a votação do projeto para o segundo semestre. De acordo com pesquisa Datafolha, 66% dos brasileiros são contrários ao PL 1904/2024.
Para Irene Rizzini, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI), a proposta pode agravar um cenário já bastante desafiador para as meninas brasileiras.
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Em entrevista concedida ao Educação e Território, em colaboração com a pesquisadora Carolina Terra (CIESPI/PUC-Rio), a especialista analisa as principais violações nos direitos de crianças e adolescentes observadas no Projeto de Lei e avalia a proteção das meninas vítimas de violência sexual no Brasil.
Educação e Território: Quais são as principais violações de direito de crianças e adolescentes observadas no Projeto de Lei que equipara a realização de aborto a homicídio?
Irene Rizzini: O Projeto de Lei 1904/2024 qualifica como homicídio o aborto a partir de 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro. O projeto afasta o excludente de punibilidade prevista na hipótese de aborto no caso de gravidez resultante de estupro, garantido pelo Código Penal brasileiro desde 1940.
Ao refletirmos sobre como esse PL afeta crianças e adolescentes, começamos por destacar que, de acordo com a Constituição Brasileira de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças e adolescentes são considerados sujeitos direitos, com absoluta prioridade. Todas as formas de violência se configuram como violações de seus direitos.
Essas violações constam de diversas notas públicas que vêm sendo veiculadas por organizações que atuam no campo da defesa dos direitos de crianças e adolescentes, como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e a Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes.
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Essas notas destacam que o referido PL impactará, em especial, pessoas de até 13 anos que representam mais de 61,4% das vítimas de estupro notificado no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, limitando seu acesso ao aborto legal quando mais necessitam de proteção e apoio.
EdT: Atualmente, a legislação brasileira possui mecanismos eficazes para proteger meninas vítimas de violência sexual?
Irene: Nas últimas três décadas, após a provação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), existem mecanismos para proteger meninas vítimas de violência sexual. Além do ECA, há a Lei 13.431 de 2017, a Lei Maria da Penha e a Lei do Minuto Seguinte.
Essas leis oferecem medidas preventivas e punitivas, além de políticas públicas de atendimento e acolhimento. No entanto, na prática, esses mecanismos enfrentam desafios significativos devido a falhas na implementação, falta de recursos e barreiras culturais e institucionais. Trata-se de um tema de extrema gravidade, mas que se manteve silenciado por séculos.
EdT: A obrigação de levar adiante uma gravidez resultante de estupro pode ter quais impactos na vida de meninas de até 14 anos?
Irene: O estupro e todas as formas de violência sexual contra crianças e adolescentes têm repercussões graves e duradouras para o seu desenvolvimento. As consequências dependerão de vários fatores, como a idade ou momento do ciclo de vida, em que condições ocorreu a violência, bem como fatores da subjetividade de cada pessoa.
Alguns dos principais impactos registrados são ansiedade, depressão, síndrome de pânico, comportamento autodestrutivos, entre outros. Segundo a organização Childhood Brasil, otranstorno de estresse pós-traumático (TEPT), por exemplo, que causa sofrimento intenso e afeta várias áreas da rotina, como relacionamentos e trabalho, é desenvolvido por 57% das vítimas.
EdT: Como a questão do tempo para interrupção da gestação decorrente de estupro opera nos casos concretos que ocorrem no Brasil? Uma menina que sofreu violação consegue acessar esse direito com rapidez e facilidade?
Irene: Sobre a questão do tempo para interrupção da gestação decorrente de estupro, a legislação brasileira permite o aborto legal nesses casos, bem como quando há risco de vida para a mulher ou anencefalia do feto.
A Lei do Minuto Seguinte prevê atendimento imediato e integral às vítimas de violência sexual, incluindo a profilaxia de gravidez. No entanto, meninas que sofreram violação frequentemente enfrentam barreiras como desinformação, medo de estigmatização, falta de acesso a serviços de saúde especializados e burocracias que atrasam o processo, tornando o acesso a esse direito nem sempre rápido e fácil.
Uma vez que a menina ultrapasse todas essas barreiras, existem profissionais de saúde que, por razões pessoais, religiosas ou éticas, se recusam a realizar abortos, mesmo quando legalmente permitidos e após decisões judiciais. Essa recusa pode complicar ainda mais o acesso ao aborto legal, forçando-as a buscar outros profissionais ou instituições, muitas vezes a longas distâncias, o que prolonga seu sofrimento e aumenta os riscos associados à gravidez indesejada decorrente de estupro.
Em resumo, embora a legislação brasileira tenha mecanismos para proteger meninas vítimas de violência sexual, sua eficácia é comprometida por desafios na prática, falta de foco na prevenção e barreiras adicionais, que dificultam o acesso rápido e humanizado aos direitos garantidos por lei.
EdT: Na sua opinião, quais políticas e ações devem ser colocadas em prática para garantir os direitos das meninas de até 14 anos e que são vítimas de violência sexual?
Irene: Ações no campo da promoção da saúde básica, desde os primeiros anos de vida precisam ser implementadas de forma mais ágil e eficaz. As normativas tendem a focar mais no atendimento após a violência do que na prevenção. Embora existam programas e campanhas de prevenção, a maior parte dos esforços legislativos e de políticas públicas se concentra no cuidado e proteção das vítimas após o ocorrido, deixando uma lacuna significativa na educação, conscientização e prevenção da violência sexual contra meninas.
EdT: A proteção integral das crianças e adolescentes é uma prioridade estabelecida pelo ECA. Quais desafios o Sistema de Garantia de Direitos enfrenta nos territórios para assegurar de maneira integral a proteção das meninas vítimas de violência sexual?
Irene e Carolina: A proteção integral das crianças e adolescentes, conforme estabelecido pelo ECA, enfrenta vários desafios nos territórios. Cada território tem suas especificidades, que podem incluir variações culturais, socioeconômicas e de infraestrutura, afetando diretamente a implementação de políticas públicas eficazes.
Desafios comuns incluem a insuficiência de recursos, a falta de profissionais qualificados e a necessidade de uma maior integração entre as diversas instâncias do Sistema de Garantia de Direitos.
Dada a complexidade destes desafios, recomendamos que esta questão seja discutida com profissionais que atuam diretamente nos territórios, pois eles podem fornecer uma visão mais detalhada e baseada em experiências práticas sobre os obstáculos enfrentados e as possíveis soluções.
EdT: Na sua avaliação, por quais razões os direitos de meninas e mulheres estão em jogo neste momento no parlamento brasileiro? Quais interesses têm pautado essa discussão?
Irene: Vivemos um momento delicado, não apenas no Brasil, no que tange a ameaças à democracia. Forças conservadoras presentes no cenário político tendem a lutar contra avanços no campo dos Direitos Humanos de um modo geral.
A questão do aborto entra em disputa com frequência, sendo o controle sobre o corpo feminino uma prática de longa data. Mas é também uma oportunidade para se debater publicamente as questões em disputa, combater retrocessos e ressaltar as violações de direitos e os impactos sobre a população infantil e adolescente.
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