publicado dia 12 de dezembro de 2018
Ganhador do Jabuti, Mailson Furtado Viana transformou sua cidade sertaneja em literatura
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 12 de dezembro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Debaixo do açude Araras, na cidade cearense de Varjota, descansam os ossos dos antepassados do escritor Mailson Furtado Viana. Envelhecidos pelos beijos da água e pela lama vermelha do sertão, foram testemunhas de uma cidade erguida após uma inundação, com ruas cortadas à mão por seus moradores e uma cultura local que sobrevive graças aos bravios artistas independentes. Agora, testemunham Mailson retornar para casa com o Prêmio Jabuti na categoria “Livro do ano” pela obra “à cidade“.
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É quase sempre com um ofego que o escritor premiado responde as perguntas sobre a premiação do livro. É a sofreguidão de quem foi pego de surpresa pelo reconhecimento a uma obra feita de maneira totalmente independente, mas também a de quem desde jovem acredita na possibilidade de firmar-se como artista dentro do miúdo município, fortalecendo assim sua comunidade.
“Será que a gente não pode ficar aqui no sertão e fazer uma arte reconhecida ao longo de todo o Brasil como algo de qualidade, não meramente folclórico?”, desabafa Mailson. “Eu espero que esse prêmio possa abrir um pouco da discussão sobre o artista fazer arte e ser reconhecido no lugar onde está.”
“à cidade“ é um livro de poemas de versos curtos e ilustrações grenás, também de autoria de Mailson. Nele, fala de seu território e sobre como crescer naquela cidade inventada também inventou nele um poeta. Se o mercado editorial brasileiro enfrenta talvez sua mais grave crise, Mailson sempre escreveu em suas beiradas, imprimindo e vendendo seus próprios livros, realidade que ele diz compartilhar com a maioria dos conterrâneos artistas.
Em entrevista para a plataforma Educação e Território, o escritor, que também participa de uma trupe de teatro local e exerce a profissão de dentista, conta de suas leituras e de sua cidade, que mais do que um espaço urbano, é chão do sertão para sua poesia.
CE: Mailson, como começa sua relação com a escrita e quais são os textos que a alimentaram ao longo da vida?
Mailson Furtado Viana: Desde criança sempre fui aquele aluno que gostava de estudar, aquele CDF da escola. Na adolescência eu conheci uma turma de jovens. Todo mundo tem uma para chamar de sua e a minha foi muito bacana. Apesar de morar numa cidade no sertão do Ceará, bem pequenina, e ser uma das primeiras gerações da cidade, era uma turma que tinha apreço por arte, teatro, música e literatura. A gente se encontrava, conversava sobre livros e filosofia, tudo de uma forma bem amadora. Mas ainda é um negócio que me brilha os olhos ao lembrar.
“Eu espero que esse prêmio possa abrir um pouco da discussão sobre o artista fazer arte e ser reconhecido no lugar onde está”
Nesse mesmo período, eu inventei que queria fazer teatro, e descobri que podia escrever, fazer música. Estes escritos bem amadores, bem crus, foram convergindo para a literatura e poesia, e a partir desse momento e eu fui me aventurando, adentrando na leitura dos poetas.
Sempre fui uma pessoa super disciplinada na questão de leitura. Sempre lia os livros para a escola, os que era obrigado a ler. Mas o que veio me marcar primeiro, o primeiro poeta que eu li com vontade e disse ‘nossa, é isso que eu quero fazer’ foi o Paulo Leminski. O primeiro que eu encontrei na biblioteca, que me encheu os olhos. Meu trabalho de criação deriva muito da problemática e da poética desse autor, e de toda a geração dele, da poesia marginal dos anos 1970.
CE: Você cresceu e ainda vive em Varjota, cidade no sertão nordestino. Conte sobre ela, principalmente, da parte de ela ser inventada, meio como uma Macondo, cidade onde se desenrola Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.
Mailson: É verdade, é inventada. A cidade era só um povoado no século XIX. Por causa de alguns projetos políticos, aconteceu a construção de uma barragem. Esse açude, o de Araras, foi inaugurado em 1958 e inundou o antigo povoado. A cidade de Varjota foi fundada a partir da década de 1970. O meu pai é da primeira geração dessa cidade. É uma cidade bem pequena, bem nova, que transpira, mas que também encontrou grande prosperidade.
É uma cidade em construção, e eu cresci com ela, com sua participação política. O livro “à cidade“ traz muito disso: Tem uma parte em que eu falo das ruas, que meu pai inventou uma delas, cortando madeira e árvores. Interligo então o poema com a minha vida. É um lugar onde gosto muito de viver. Nunca pensei em sair daqui para produzir arte.
CE: Tanto na produção independente do seus livros, como também na realização da sua trupe de teatro, parece que te interessa muito a ideia de uma cultura local consumida e incentivada pelos locais.
Mailson: A trupe, que está junta desde o ano passado, tem feito um espetáculo que chama É tanto nós. Ele traz esse tema de que é possível acreditar na juventude e na arte, mesmo no sertão, mesmo no lugar de que de certa forma não dá nenhuma possibilidade, nenhuma visão de poder enquanto artista.
O engraçado é que esse prêmio [o Jabuti] veio de certa forma colocar o que meu texto fala, o que a peça apresenta. Parece que foi um filme que aconteceu. A gente [nordestino] não precisa sair daqui para fazer o nosso trabalho e de como a arte é importante.
CE: Como nasce e como é tecido o livro “à cidade“?
Mailson: Ele surge da vontade que eu tinha de escrever sobre a minha região, sobre o meu lugar. Da vontade de que quando as pessoas chegassem aqui, tendo lendo o livro, sentissem a sensação de “pô, eu já conheço esse lugar!”. Essa foi uma sensação que eu senti quando cheguei na Paraíba, depois de ter lido um livro do Ariano Suassuna.
Trecho do livro “à cidade“:
Tenho sangue de gente/tenho essa poeira laranja na cara/no peito/no sangue/sou metade gente/metade bicho/sou sertão da cidade/sou pedaço água/ferro/terra/sou rio/trilho/rodagem
Logo que tive essa experiência paraibana, voltei para casa com vontade de fazer algo do tipo. O meu trabalho, quase todo ele, é bem curto, poemas pequeninos. O à cidade também surgiu como um “poemazinho”, de uma página. Só que esse poema foi pedindo coisas.
Durante 20 dias, esse poema me rendeu como nada aconteceu na minha vida, no sentido de eu viver com ele, abraçado a ele, indo com ele comprar pão na padaria. Eu ia para a rua pensando no poema, e até conseguir terminá-lo, ele não me largou.
Foi uma experiência doida psicologicamente, 20 dias intensos. Foi desgastante e legal, não sei colocar adjetivo para isso. Foi uma experiência que até hoje não consegui repetir.
CE: E como Varjota e suas raízes se espraiaram para suas palavras?
Mailson: Entre 2013 e 2014, se deu uma pesquisa minha sobre a cidade. Me veio essa vontade, e eu não entendia o meu lugar: por que todo mundo tinha parente na beira da esquina e eu não tinha? Primeiro pesquise na internet, porque era mais fácil, e encontrei dados perdidos, montando uma espécie de quebra-cabeça. A partir dele, tentei encontrar pessoas, parentes mais próximos e mais velhos para me contar suas histórias. Consegui muita coisa legal, fui montando esse quebra-cabeça e me entendendo dentro dele.
Durante 20 dias, esse poema me rendeu como nada aconteceu na minha vida, no sentido de eu viver com ele, abraçado a ele, indo com ele comprar pão na padaria. Eu ia para a rua pensando no poema, e até conseguir terminá-lo, ele não me largou.
Na minha opinião, a parte mais legal do livro é nesse açude que eu já citei tantas vezes. Como a cidade é antiga, os antigos pais dos meus antepassados estão sepultados dentro dele. Essa parte é de uma simbologia grande para mim: esses lagos que correm aqui, estarei sempre assistindo-os, sendo parte deles querendo ou não querendo. Essa pesquisa, essa parte de se autoconhecer, de se autopesquisar, foi uma experiência forte. A cada lugar da cidade que eu vou agora, tento entender o porquê de estar ali.
Fui no rio buscar motivos e histórias que interligam esse lugar. Qualquer parada que eu vou eu tento encontrar essa ligação, seja com a minha décima geração antiga no açude, ou alguém que passou no calçadão ao meu lado.
CE: Em entrevista para o jornal BBC, você desabafou sobre o desejo de ser um artista que produz no Nordeste e não ser obrigado a se deslocar para viver de sua arte. Você pode contar mais sobre isso?
Mailson: Foi um desabafo mesmo, é uma coisa que eu trago no meu acreditar artístico. Aqui na cidade em que eu vivo, só por ser daqui, a gente já encontra barreiras gigantescas. Para ser conhecido na cidade tem que chegar em Fortaleza, e para ser conhecido no Brasil tem que ir para São Paulo. Isso é uma coisa que me frustra muito, a federação é uma só mas a gente aqui do Nordeste é visto de uma maneira distinta.
Temos que pensar, filosofar sobre o que estamos fazendo com a nossa produção cultural, enquanto nordestinos. Será que a gente não pode ficar aqui no sertão e fazer uma arte reconhecida ao longo de todo o Brasil, como algo de qualidade e não meramente folclórico? Eu espero que esse prêmio possa abrir um pouco da discussão do artista fazer arte e ser reconhecido no lugar onde está.