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publicado dia 26 de março de 2021

Como a organização Cidade Quintal transforma saberes locais em paisagens

Reportagem:

Em outubro de 2020, a fachada de algumas casas da Ilha do Príncipe, bairro de Vitória (ES), serviram de tela para a pintura de murais róseos e azulados. As agigantadas figuras, que podem ser vistas à distância, celebram as mulheres do território e figuras importantes para a história dele, como a do jogador de futebol Joia. 

Joelson dos Santos Pinto, o Joia (1970-2002), foi um jogador de futebol de areia e membro da Seleção Brasileira de Futebol de Areia, esporte bastante consolidado no Espírito Santo. Ele era muito querido no território onde vivia, a Ilha do Príncipe. 

O grafiteiro Fel, morador do bairro há 16 anos, foi um dos participantes da pintura do mural. Ele liderou oficinas com cerca de 30 jovens do bairro , e foi a partir das histórias coletadas ali que as figuras foram escolhidas: 

“Essa oficina marcou minha caminhada. Uma das jovens participantes disse que tínhamos que homenagear as mulheres porque eram guerreiras, porque sobreviviam e lutavam contra as questões de violência. Um outro completou que era importante homenagear as enfermeiras porque elas não pararam durante a pandemia”, recorda o artista. 

Este trabalho, chamado Ativar Ilha do Príncipe, é um dos muitos desenvolvidos pelo coletivo Cidade Quintal. A organização, fundada em 2016, trabalha com bairros e espaços públicos no Espírito Santo, pintando paisagens a partir dos desejos, saberes e relatos dos moradores destes lugares. 

“Dessa mescla de interesses de diferentes pessoas, nasce o desejo de pensar intervenções artísticas que potencializam identidades locais e que sejam cocriadas e elaboradas de dentro para fora dos territórios”, conta Juliana Lisboa, cofundadora do projeto. “Para tornar a cidade mais acolhedora, como o quintal das pessoas, entramos nesses territórios para ver quais mecanismos de diálogo existem, acessando as narrativas presentes e transformando-as em paisagem.”

As ativações de território, que é o nome dado aos projetos do Cidade Quintal, são sempre de larga escala: “A arte em mural é nosso cartão de visitas e também uma estratégia para o diálogo. A partir dela, conseguimos tangibilizar saberes de um lugar que muitas vezes estão no plano simbólico ou na oralidade. Trazemos o que o território produz e como as pessoas se reconhecem nele, para dentro da paisagem.”

o grafiteiro fel pintando um muro
O artista Fel participando projeto Ativar Ilha do Príncipe / Crédito: Francisco Xavier

Cidade Quintal ativa os territórios em conjunto com a comunidade local 

A aproximação entre Cidade Quintal e território acontece de forma gradual, com ambas as partes trocando conhecimento em encontros formativos – agora na pandemia, virtuais. Às vezes o desejo de trabalhar junto, parte do território que deseja ressignificar sua relação com o espaço e está procurando parceiros. Outras vezes, é o Cidade Quintal, por meio de pesquisa, que procura um determinado local e encontra com eles meios de fazer a ativação. 

No caso do bairro Piedade, onde nasceu uma das mais antigas escolas de samba do Espírito Santo, a Unidos da Piedade, foi o território que procurou o Cidade Quintal. Em 2019, os problemas de segurança pública forçaram alguns moradores a se mudarem, deixando espaços desocupados e uma sensação desalentadora entre os que ficaram. Juntamente com organizações como a ONG Árvore Casa das Artes e com a Secretaria de Cultura do Estado, a associação de moradores local convidou o Cidade Quintal para pensar em formas de reaproximação entre pessoas e bairro. 

O resultado é um mural que cobre cerca de 30 casas, interligando dois espaços que estavam em processo de abandono. A pintura forma uma narrativa paisagística com histórias de paz do, celebrando figuras locais como as benzedeiras. 

“Geralmente construímos narrativas de dentro para fora. Cocriamos e negociamos narrativas para mostrar para a cidade o que tem neste território. No caso do Ativar Piedade, as narrativas são de dentro para dentro. É um trabalho voltado para a comunidade, a partir de suas ideias, executado com suas mãos. É para fortalecer a comunidade em um momento de fragilidade, celebrar valores, senso de coletividade, reconectar gerações”, explica Juliana. 

Esboço para as pinturas feitas no bairro da Piedade / Crédito: Juliana Lisboa

A participação comunitária é central nos trabalhos do Cidade Quintal, como o que aconteceu no mercado Vila Rubim, um espaço de comércio histórico no centro da capital capixaba que sofreu nos últimos anos um incêndio e também um processo de gentrificação: foram os mercadores que indicaram o que precisaria estar exposto nos murais e que histórias deveriam se tornar  paisagem. 

“Nesta jornada de imersão, com a cocriação das pinturas e a ativação, a participação é fundamental. Este conceito transversal está presente em diferentes etapas dos projetos, mas é chave para que as pessoas deem continuidade a proteção e ativação desses espaços quando e se não retornarmos mais lá”, continua a designer. 

mercadora arruma pimenta e outras mercadorias no mercado da Vila Rubim
A participação dos mercados foi fundamental para criar as narrativas paisagísticas da Vila Rubim / Crédito: Francisco Xavier

Os artistas locais são também fundamentais. O grafiteiro Fel foi um dos atores principais do Ativar Ilha do Príncipe. Seu conhecimento do território ajudou a construir as oficinas que culminaram na escolha coletiva do que foi exposto nos murais. 

“Durante muito tempo dei oficina para a galera sem recurso e sem condições, mas nunca dentro do meu bairro. O projeto Cidade Quintal proporcionou um projeto para a geral do meu bairro. 30 jovens ouviram sobre visibilidade, o que é arte, o que é fazer arte no muro, e a importância de que nossa produção esteja estampada nele. Foi o lance mais sensacional ouvir todo mundo apresentar suas ideias”, arremata o grafiteiro.

pessoas se reunindo e conversando sobre o projeto
A comunidade é que narra os saberes e histórias que podem se tornar paisagem. Na foto, encontro no Bairro Piedade / Crédito: Francisco Xavier

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