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publicado dia 22 de setembro de 2022

Com escuta ativa das crianças, projeto transforma subsolo de moradia social em espaço de convivência

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“Esse é nosso prédio”, apresenta a pequena Maribel, de sete anos, moradora do Projeto Piloto de Locação Social Asdrúbal do Nascimento II / Edifício Mário de Andrade, localizado no centro de São Paulo (SP) desde 2019. “Aqui está a brinquedoteca onde antes era a garagem. Aqui as crianças vão brincar, desenhar, pegar um livro pra ler, pular amarelinha e fazer um monte de coisas. Tem até teatro onde a gente vai se apresentar”, enumera a menina. Quem vê Maribel e as outras crianças à vontade, brincando no espaço do subsolo da moradia, não imagina que antes ali existia apenas um espaço considerado ermo e pouco utilizado pela comunidade.  

Ao lado de outras crianças e suas famílias, Maribel ajudou a transformar o local onde mora por meio do projeto Quando estamos em casa, ação que trabalhou o vínculo e a apropriação da locação social pelos moradores por meio de uma transformação do antigo subsolo do edifício em um espaço de lazer e educação – tudo a partir da escuta dos desejos, necessidades e sonhos das crianças e famílias que ali habitam. 

+ Leia também: Projeto realiza escuta de crianças e adolescentes que vivem em moradia social em São Paulo 

Assim, onde antes só existia um subsolo de garagem pouco frequentado pelos moradores, agora há sala de leitura, tablado para apresentações, brinquedos modulares, parede de lousa e outros elementos interativos. Os moradores – adultos e crianças – envolveram-se na co-criação do espaço e colocaram a mão na massa durante as obras. 

Foto: Camila Sawaia/Ayumy Pompeia

Gabriela Viola, arquiteta e gestora do projeto, recorda que, no início, embora o objetivo fosse estimular o vínculo dos moradores com o espaço, não havia cenário favorável para que isso acontecesse. “As famílias não consideravam o espaço seguro, então ninguém usava.  Nas entrevistas, os pais afirmavam que não deixavam elas descerem sozinhas, então as crianças não se conheciam, porque, em geral, não existia nenhuma atividade de convívio”, diz. Outro obstáculo foi a pandemia de Covid-19, que acabou por atrasar as ações realizadas no espaço. 

“As crianças não sabiam o nome uma das outras, mesmo morando aqui há mais de dois anos. Levou muitos encontros para entenderem que esse espaço se transformaria, mas hoje elas entendem que esse espaço é delas, estão mais presentes e é direito delas estar lá e pensar em planos para o futuro do espaço”, defende Gabriela. 

Para a arquiteta e gestora da iniciativa, Ayumy Pompeia, o processo de construção é uma etapa muito importante justamente por envolver crianças, adultos e as equipes do projeto, enquanto a finalização das obras é a materialização da sua continuidade. “É quando se cria a dimensão do ‘Quando Estamos em Casa’, porque à medida que intervimos no espaço, constituiu-se essa casa interna em cada pessoa que participou. A constância das atividades foi uma questão chave para garantir o reconhecimento e essa consciência de que o projeto está realizado.”

Como o projeto foi desenvolvido 

Moradia
Fotos: Ayumy Pompeia

Resultado de uma cooperação técnica entre a Cidade Escola Aprendiz e o CoCriança, projeto de extensão universitária da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o projeto Quando estamos em casa foi desenvolvido entre outubro de 2021 e julho deste ano, em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos. 

Além do objetivo principal – fortalecer o vínculo e a apropriação da comunidade com o lugar onde vivem – a iniciativa buscou promover o direito à participação e o direito ao brincar, além de fortalecer os laços comunitários por meio da ressignificação dos espaços. 

Tudo começou quando, em 2019, 34 famílias que viviam em situação de rua mudaram-se para o Projeto Piloto de Locação Social Asdrúbal do Nascimento II / Edifício Mário de Andrade, no centro da capital, que foi adquirido e reformado pela prefeitura no âmbito do Programa de Locação Social. Além da moradia, a iniciativa tinha o desafio de assegurar um olhar integrado para a garantia de direitos da comunidade que agora habita o edifício. 

Foto: Camila Sawaia/Ayumy Pompeia

A primeira etapa do projeto foi o mapeamento do perfil das crianças e adolescentes que vivem no edifício, que levou em conta aspectos socioeconômicos das famílias e o cotidiano delas. Com isso, descobriu-se, por exemplo, que 13 dos 34 apartamentos ocupados pelas famílias tinham crianças ou adolescentes. Além disso, a sondagem identificou questões sobre o cuidado com as crianças e o vínculo dos moradores com o local. 

Responsável pelo desenvolvimento metodológico do projeto, a geógrafa Lia Salomão Lopes conta que o objetivo inicial da intervenção era fortalecer os laços dos moradores com o espaço onde vivem. No entanto, as atividades também possibilitaram a visibilização dos anseios da população infantil do edifício. 

“Escutar é visibilizar. E descobrimos muito sobre elas, ao mesmo tempo em que descobrimos que nada se sabia sobre essas crianças. Simplesmente não existiam dados sobre elas, não é por negligência ou descaso, mas porque o universo do atendimento é complexo”, explica Lia, que também é gestora do programa Educação e Território do Aprendiz. “Esse recorte sobre crianças e adolescentes e sua visibilização foi um dos maiores resultados que tivemos”, enfatiza. 

Fotos: Ayumy Pompeia

Essa escuta ativa envolve também abrir os olhos e ouvidos para aspectos mais subjetivos. Gabriela se recorda de um episódio em que foi pedido às crianças que se sentassem em um tapete, fechassem os olhos e pedissem alguma coisa que elas não tinham, mas desejavam. 

“As crianças não tinham noção de imaginar o que queriam, porque simplesmente não sabiam o que podiam querer”, explica a arquiteta, lembrando que a participação das crianças em todos os estágios de intervenção foi fundamental para elas se apropriarem do espaço. 

Para Lia Salomão, além da escuta ativa, projetos como o Quando estamos em casa exigem do poder público e dos setores envolvidos uma intervenção de longo prazo. 

“Aqui isso não existe nada pronto. É preciso começar, cavar esse espaço, entender o que é e o que se gostaria desse espaço. Crianças e adolescentes que vêm de uma situação de alta vulnerabilidade e perda de direitos precisam de um tempo maior”, observa.

Para contemplar as crianças e dar a elas protagonismo, a equipe desenvolveu oficinas de pintura, desenho e colagem, além de identificar e ressignificar locais como um cantinho da garagem que gerava medo nos pequenos, agora transformada em um espaço de criação com lousa. 

Da insegurança para a interação 

Fotos: Camila Sawaia

Moradores e participantes ativos do projeto, Adriana Rosa Pereira e Pedro Luiz da Silva ressaltam o caráter conciliador da intervenção, não apenas para as crianças, mas também para eles. Se antes o subsolo era um local vazio, sem qualquer atrativo para reunir os moradores, hoje a área de lazer pode ser considerada um ambiente de encontros e conversas triviais. 

Adriana, que também ajudou a criar uma pequena horta comunitária em uma área externa do edifício, reforça que a comunicação entre os moradores é relevante para a rotina porque contribui para a construção de um ambiente mais saudável e agregador, sobretudo na infância. 

“A interação é um ponto muito importante para as crianças, porque ajuda a desenvolver a criatividade entre elas e colabora para uma infância mais saudável, calma e desenvolve habilidades como a criatividade. É um projeto que traz vida para o lugar onde moramos”, comemora a auxiliar de serviços gerais. 

Coletor de reciclagem e ativista em defesa da população em situação de rua, Pedro, que no passado também viveu a condição de desabrigo, acredita que a transformação do subsolo em um espaço de convivência significa investir no futuro daquelas crianças.

Moradia
Fotos: Camila Sawaia

“O projeto oferece a elas consciência e conhecimento. Elas são o futuro deste lugar e podem se tornar pessoas melhores por conta desse projeto. Queremos apresentar a iniciativa e replicar essa ideia em outros espaços vulneráveis, para levar um pouco de alegria às crianças”, diz ele, que  integra a associação sociocultural CISARTE (Centro de Integração Social pela Arte, Trabalho e Educação). 

Para a coordenadora de políticas para a população em situação de rua da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, Luiza Trotta, um dos diferenciais do projeto foi o olhar para as necessidades e anseios dos próprios moradores, em vez de chegar com uma proposta de intervenção já fechada. 

“Muitas vezes a perspectiva política voltada a essa questão [da moradia] é muito massificada, com um único modelo para toda população. Esse projeto traz esse ensinamento para o poder público ao olhar para as necessidades, pensar no aspecto  lúdico, cultural, que diante de tantas vulnerabilidades são questões que ficam no fim da fila das prioridades”, destaca Luiza.  

Para Lucas Loureiro, assessora técnica da Coordenação de Políticas para População em Situação de Rua da Secretaria de Habitação da Prefeitura de São Paulo, o projeto ajudou a criar uma identidade para o espaço e a consolidar os vínculos das crianças e adolescentes com ele. “Antes as crianças eram mais retraídas, tinham mais dificuldades de participar das atividades, e hoje elas são totalmente familiarizadas com esse espaço que elas construíram”, comemora.  

Projeto realiza escuta de crianças e adolescentes que vivem em moradia social em São Paulo

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