publicado dia 18 de março de 2024
Cássia Caneco: “A mulher negra não acessa a cidade, mas sustenta a vida nela”
Reportagem: Carol Scorce
publicado dia 18 de março de 2024
Reportagem: Carol Scorce
📄Resumo: Em entrevista, a diretora-executiva do Instituto Pólis, Cássia Caneco, fala sobre o direito à cidade para mulheres negras e explica como as desigualdades de raça e gênero se expressam nos espaços urbanos.
As cidades brasileiras expressam concretamente, em seus espaços públicos e privados, as desigualdades sociais. No caso das mulheres negras, o direito à cidade, muitas vezes, é negado.
É o que explica Cássia Caneco, a diretora-executiva do Instituto Pólis, organização da sociedade civil que visa à construção de cidades mais justas, sustentáveis e democráticas.
O que é Direito à Cidade
Pode ser definido como o direito coletivo de habitar, usar, ocupar, produzir, governar e desfrutar do espaço urbano de forma igualitária. De acordo com o Instituto Pólis, o movimento pelo Direito à Cidade entende que nenhuma pessoa ou grupo étnico, racial ou social deve ser alvo desproporcional dos impactos negativos do desenvolvimento urbano.
“A maneira como escolhemos, como sociedade, produzir e reproduzir essas cidades, faz com que só alguns grupos sociais vivam a ausência de direitos, recursos e possibilidades”, afirma a especialista, que é também gestora do Espaço de Artes Pretas da População LGBTQIA+ na região do Sapopemba, em São Paulo (SP).
Na experiência concreta das mulheres negras nas cidades, o medo é um marcador relevante.
A violência de gênero e de raça define, por exemplo, horários, percursos e atitudes seguras para elas. Além disso, elas estão excluídas dos espaços de poder e decisão e não se reconhecem representadas em monumentos, estátuas e outros marcos de memória.
“É uma troca absolutamente injusta pensar que a mulher negra não acessa a cidade, mas sustenta a vida nela”, critica Cássia Caneco, que também faz parte do Conselho Consultivo do Programa Educação e Território.
Saiba mais na entrevista:
Educação e Território: Como você define direito à cidade?
Cássia Caneco: É o direito das pessoas acessarem aquilo que elas ajudam a produzir e construir cotidianamente. É o direito de existir, de ser quem você é, de ter a sua memória preservada e a sua identidade fortalecida para além do acesso aos serviços públicos e privados.
EdT: A percepção que diferentes grupos sociais têm da cidade são diferentes?
Cássia: É uma vivência distinta. Quando falamos de raça e gênero, a cidade oferece uma série de riscos e interrompimentos. As violências são postas para algumas identidades. Às vezes, isso tem a ver com a ausência de direitos, mas também com a violência em si. Há ainda a dimensão simbólica.
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A mulher negra não se vê representada como figura de potência nos lugares que ela ocupa. No Instituto Pólis, temos uma pesquisa que fala sobre os monumentos e de como as mulheres não são representadas. Isso provoca distanciamento das suas identidades, e isso fica expresso no corpo e em como elas ocupam as cidades.
EdT: Quais desafios caracterizam a trajetória das mulheres negras no cotidiano urbano?
Cássia: Há um vídeo da Plataforma Global pelo Direito à Cidade filmado em São Paulo (SP) que usamos quando queremos debater essa questão (assista ao vídeo abaixo).
No filme, de um lado vemos uma mulher negra no seu dia a dia, desde o momento que ela sai de casa, a alimentação que ela faz no caminho, como ela chega no trabalho e depois voltando para casa.
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Esse trajeto nos faz perceber uma série de problemas: a falta de acesso ao transporte de qualidade, a ausência ou a dificuldade de iluminação – o que nos leva a refletir sobre a pobreza energética de uma maneira geral. Muitas vezes, o caminho casa-trabalho é distante, e essa mulher precisa se alimentar durante o trajeto. E com isso se alimentam mal.
EdT: É possível elencar espaços acessados por parte da população nas cidades, mas que não são acessados pelas mulheres negras?
Cássia: O corpo de uma mulher negra dentro de um ônibus está muito mais sujeito há uma série de assédios, e se ele fica mais tempo dentro desse ônibus, ela corre mais riscos.
São muitos os lugares onde a mulher não se sente bem-vinda, benquista e bem aceita. Imagina o que é sair de casa e ver estátuas de pessoas alçadas ao posto de herói. Figuras que, na verdade, foram violentas contra o seu próprio povo, que violaram corpos negros, indígenas e de mulheres.
EdT: O que é preciso ser feito neste momento para garantir o direito à cidade às mulheres negras?
Cássia: Políticas intersetoriais capazes de assistir suas vidas concretas. Políticas que pensem o transporte a partir da perspectiva desse grupo e leis específicas sobre como garantir lugares de lazer, alimentação de qualidade, vínculos empregatícios que não sejam vulnerabilizados.
Se por um lado as mulheres negras têm o seu direito ao bem-estar negado, por outro, são elas que sustentam a vida nas cidades.
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“Se por um lado as mulheres negras têm o seu direito ao bem-estar negado, por outro, são elas que sustentam a vida nas cidades.”
As mulheres negras cuidam das casas e das famílias delas e de outras pessoas. Isso tanto no trabalho não remunerado quanto na economia formal.
É uma troca absolutamente injusta pensar que a mulher negra não acessa a cidade, mas sustenta a vida nela.
Edt: A arquiteta e urbanista da Universidade Federal de São Paulo (USP) Raquel Rolnik argumenta em artigo que “Desde logo é preciso dizer que a cidade reflete, amplifica e reproduz um olhar masculino e branco de quem a pensou, que corresponde exatamente a quem historicamente deteve o poder de determinação sobre como se organiza os espaços urbanos, à sua imagem e semelhança.” É correto afirmar que esse direito é negado também pela ausência de mulheres negras em espaços de poder e decisão?
Cássia: Os lugares de representação institucional não têm maioria nem de mulheres de maneira geral, tampouco representação numerosa de pessoas negras.
Se as mulheres não estão no lugar onde são formuladas e executadas essas leis, as pautas desses grupos não chegam até os gabinetes públicos.
A cidade é, sim, exemplo de quem a construiu. Precisamos fazer um exercício de entender que a cidade é também a periferia, posta como um lugar de ausências, mas que é também um lugar de potências.
Mesmo com tantas vulnerabilidades, as populações periféricas constroem formas de existências pulsantes. É onde vemos mulheres negras em postos de lideranças, como durante a pandemia, por exemplo. Em lugares onde os governos tinham pouca possibilidade de controlar a crise, foram essas mulheres cuidadoras que criaram as possibilidades da comunidade se manter com saúde onde mais se morria por conta do adensamento.
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É preciso alçar essas mulheres líderes e capazes aos cargos de decisão, onde se controla o orçamento da cidade.
EdT: No livro Se a cidade fosse nossa (Editora Paz e Terra, 2023), a urbanista antirracista Joice Berth afirma que existe “uma linha divisória nas cidades que coloca a negritude de um lado e a branquitude do outro”. Isso é dado pelo “fator econômico, definidor da cidade”. Você vê essa linha divisória colocada pela autora expressa nas distintas vivências da cidade?
Cássia: Isso é notório na cidade de São Paulo, onde estou. No eixo dos bairros Moema e Pinheiros, por exemplo, que são locais onde o orçamento é mais investido e reinvestido pelo poder público. Ali estão os bairros com maior número de linhas de metrô, onde são fortalecidas políticas públicas para privilegiar os grupos que lá estão.
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Percebemos que quem dita isso é o mercado, e o mercado é ditado por mãos brancas, em uma cidade que se constrói a partir de um modelo que é econômico e racial.
EdT: O pensador Henri Lefebvre (1901-1991) definiu a cidade como a “projeção da sociedade sobre o terreno”. Como você avalia em contexto mais geral a projeção da mulher negra sobre a cidade?
Cássia: A mulher negra e periférica se vê em maioria em lugares de subalternidade e subserviência. O fluxo de mulheres negras e periféricas está nos elevadores de serviço, vestindo uniformes, escondidas nas linhas de ônibus e trens lotados. Durante seu percurso diário, ela sequer consegue ver a cidade. A projeção é pela ausência, como se elas não existissem. Mas elas existem, produzem riqueza, sabedoria, lideram. É a cidade que precisa se projetar nelas.