Perfil no Facebook Perfil no Instagram Perfil no Twitter Perfil no Youtube

publicado dia 14 de março de 2024

Alvo de desinformação, Marajó convive com desafios históricos e potência das comunidades tradicionais

por

📄Resumo: O Observatório do Marajó é uma organização social que promove impacto social e ambiental junto às populações ribeirinhas do Arquipélago do Marajó, localizado no norte do Pará. 

Com 590 mil habitantes, a região ganhou visibilidade no início de 2024, quando  o território e suas comunidades foram alvo de campanhas virais de desinformação e fake news, que vinculavam de forma sensacionalista supostos casos de tráfico de órgãos e exploração sexual de crianças com o Marajó.  

Na ocasião, o Observatório do Marajó atuou contra a disseminação de informações falsas, reforçando que sua população não normaliza as violências e combatendo estereótipos sobre o modo de vida das comunidades. 

As comunidades tradicionais carregam conhecimentos valiosos e são as mais capacitadas para atuar na transformação de seus territórios. 

Essa reflexão norteia a atuação do Observatório do Marajó, organização da sociedade civil que atua junto às populações do Arquipélago do Marajó, no estado do Pará. 

De acordo com o fundador da organização, Luti Guedes, a missão do Observatório do Marajó é ampliar os espaços cívicos do território e a participação política de seus moradores. Atualmente, explica, as populações são deixadas de fora dos espaços formais de poder, o que pode prejudicar o acesso aos Direitos Humanos. 

Cientista social e especialista em planejamento urbano e regional, Luti Guedes conta que o trabalho com comunidades tradicionais ribeirinhas e quilombolas no Arquipélago do Marajó começou em 2009.  

“Eu e a Valma Teles, minha parceira no Observatório, trabalhávamos de forma voluntária com projetos de apoio ao desenvolvimento local, como bibliotecas em escolas. Quando esse ciclo completou 10 anos, desejamos colocar o aprendizado acumulado a serviço de uma agenda regional de desenvolvimento mais robusta, pensando estratégias e qualificando políticas públicas que reconheçam os saberes das comunidades do Marajó”, conta. 

O que faz o Observatório do Marajó

Em linhas gerais, o Observatório atua de três formas: no monitoramento e construção de dados sobre a realidade local, apoiando a costura de redes de colaboração com coletivos, organizações e movimentos sociais e, por fim, na construção de campanhas coletivas de mobilização e incidência. 

Em um dos projetos, o Mana por Mana, meninas e mulheres discutem direitos sexuais e reprodutivos a partir de suas vivências e vulnerabilidades como mulheres de comunidades tradicionais. Já nas Brigadas Comunitárias das Filhas da Mãe do Fogo, moradores trocam conhecimentos e atuam diretamente no combate aos incêndios na região. 

“A maioria dos projetos trabalha com a troca de saberes, sempre em rede. Nossa intenção é, antes de tudo, fortalecer a comunidade. Quando uma denúncia chega a um órgão público, por exemplo, ela deve partir desses espaços. E são essas lideranças locais que devem articular, negociar e decidir sobre o que é melhor para suas vidas”, defende Guedes. 

 

Desinformação e fake news sobre o Marajó

Observatório do Marajó
Observatório faz ações de impacto e desenvolvimento local. Na foto, moradores trocam conhecimentos participam de formação para atuar nas Brigadas Comunitárias das Filhas da Mãe do Fogo, que combatem incêndios na região.

Além das ações de impacto e de desenvolvimento local, o Observatório do Marajó ganhou visibilidade ao rebater campanhas de desinformação estigmatizantes sobre as populações que lá vivem. 

“A propaganda que associa o Marajó à exploração e ao abuso sexual não é verdadeira: a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara”, afirmou o Observatório em nota pública, divulgada no início de fevereiro. 

A afirmação é uma resposta à onda de desinformação sobre a região e suas populações, turbinada pela viralização de uma canção gospel e pela reação de influenciadores e pessoas públicas sobre o tema. Na ocasião, a cantora Aymeé Rocha mencionou supostos casos de exploração sexual e de tráfico de órgãos na região. “Lá é normal isso. Tem pedofilia nivel hard”, disse a cantora à época. 

Leia + Exploração sexual de crianças não acontece só no Marajó 

A exposição tomou grandes proporções – a ponto de “Ilha do Marajó” se tornar uma das expressões mais buscadas no Google – e desencadeou uma série de posicionamentos nas redes sociais, além de campanhas de doação de dinheiro.

Além de rebater aspectos da campanha de desinformação, o Observatório do Marajó reforça, na nota pública, que o caminho para proteger as crianças das violências passa pelo fortalecimento do Sistema de Proteção e Garantia dos Direitos das crianças e dos adolescentes (como escolas e conselhos tutelares). 

“A violência sempre foi uma forma do Estado legitimar e respaldar a sua presença nesse território. Historicamente, as populações tradicionais [do Marajó] são subjugadas. Hoje, o que marca essa violência é a falta de equipamentos públicos e de valorização de quem atua aqui. É uma realidade que queremos mudar a partir das próprias lideranças locais”, defende o diretor do Observatório do Marajó, Luti Guedes. 

Desinformação sobre a região do Marajó é recorrente 

Observatório do Marajó
Moradores participam de atividade prática de combate ao fogo no Marajó. Foto: Wilamo Junior/Observatório do Marajó

Embora a onda mais forte e recente de desinformação tenha ocorrido a partir da viralização de uma canção gospel, não é a primeira vez que a região é estigmatizada. 

Em 2022, a Ministra dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro (2018-2022), Damares Alves, fez acusações sem provas de casos de exploração sexual de crianças e adolescentes. 

O caso rendeu uma ação do Ministério Público Federal (MPF) contra a atual senadora. O órgão pede indenização pela divulgação de “falsas informações sensacionalistas envolvendo abuso sexual e torturas às crianças do Marajó”. 

Outras informações falsas são compartilhadas nas redes sociais desde 2022 e voltaram a repercutir neste ano. A primeira é um vídeo de crianças sendo transportadas em um carro, fazendo alusão ao tráfico de órgãos de crianças no Marajó. O vídeo, no entanto, está descontextualizado: foi gravado no Uzbequistão, país da Ásia Central, e não retrata crianças que vivem no arquipélago ou no Brasil. 

Como denunciar casos de abuso e exploração sexual contra crianças

O Disque 100 é o principal canal para denunciar casos de exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes. A ligação é gratuita, a denúncia é anônima e o serviço funciona 24 horas, todos os dias da semana. Há também atendimento via WhatsApp no número (61) 99611-0100. As delegacias de polícia e os Conselhos Tutelares de cada município também recebem essas denúncias e podem ser acionadas .

Um segundo vídeo mostra uma situação de abuso sexual de criança em um barco, acompanhado de legenda que situa o crime como ocorrido na região. Checagem posterior do Aos Fatos demonstrou que o vídeo foi registrado em outro estado brasileiro e não tinha conexão com o Marajó. 

Além disso, de acordo com apuração da Agência Pública, políticos de extrema-direita pagaram para impulsionar postagens com denúncias falsas sobre o suposto esquema de exploração infantil, na esteira da repercussão da fala da cantora, ampliando o alcance da narrativa. 

Segundo a análise da Pública, a comoção nas redes não partiu apenas de um engajamento espontâneo, mas foi alavancada com conteúdos pagos por políticos bolsonaristas. 

Violência e abuso sexual contra crianças não acontecem só no Marajó 

O esforço de debelar a campanha de desinformação chegou ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC). Em comunicações oficiais e nas redes sociais, o ministro Sílvio de Almeida alertou para as informações falsas e apresentou medidas tomadas pelo governo federal para prevenir e mitigar diferentes desafios presentes na região.  

Em comunicado publicado nas redes sociais na esteira da viralização, Silvio de Almeida reconheceu os desafios históricos da região e ressaltou que o local precisa da presença do Estado e de políticas públicas. No entanto, alertou que a situação precisa ser enfrentada com responsabilidade. 

“Abuso, exploração e violência sexual contra crianças é algo que não será tolerado e será combatido em todas as frentes. Só que a gente também tem que pensar nas políticas públicas. Precisamos ter responsabilidade e não podemos associar a imagem de pessoas que sofrem de problemas históricos – que são responsabilidade do Brasil – com o modo de vida dessas populações, um modo de vida riquíssimo, especial. Falando de criança e colocando essas crianças como se a vida delas se reduzisse a um contexto de exploração sexual. Isso é uma profunda irresponsabilidade”, afirmou o chefe da pasta.

Em maio de 2023, foi criado o Programa Cidadania Marajó, cujo objetivo é desarticular redes de exploração, abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes. A iniciativa conta com apoio da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), além do Ministério da Defesa e da Secretaria de Segurança Pública do Pará. 

Em nota oficial, o MDHC reforçou a prioridade aos Direitos Humanos e à voz da população marajoara e enfatizou o compromisso de não estigmatizar as pessoas que vivem no território, associando-as ao contexto de exploração sexual. 

“As vivências das populações tradicionais do Marajó não podem ser reduzidas à exploração sexual, já que é uma população diversa, potente em termos socioambientais e que necessita sobretudo de políticas públicas estruturantes e eficientes, com a inversão da lógica assistencialista e alienante de sua realidade e modos de vida.”

Marajó: problemas históricos em um território complexo 

Alvo de desinformação, Marajó convive com desafios históricos e potência das comunidades tradicionais
Maior arquipélago fluviomarinho do mundo, Marajó é formado por 2,5 mil ilhas e possui 590 mil habitantes.

O Arquipélago do Marajó é um local complexo, formado por 2,5 mil ilhas e considerado o maior arquipélago fluviomarinho do mundo. Os 16 municípios somam 590 mil habitantes. 

Além disso, a região está em uma área de proteção ambiental, protegida pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará.

A riqueza em recursos naturais e a potência sociocultural de seus povos, porém, convivem com problemas de saneamento básico, baixos indicadores educacionais e altos índices de pobreza e violência, inclusive sexual. 

Dos 16 municípios do Marajó, 14 registram os piores índices de desenvolvimento humano (IDH-M) em um ranking de 5.565 cidades brasileiras, segundo dados derivados do Censo 2010 do IBGE.  

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o estado do Pará possui uma taxa de 3.648 casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, acima da média nacional de 2.449 casos. 

Violação de direitos e subnotificação  

Apesar de atingir todos os municípios paraenses, a violência sexual acaba por ganhar maior projeção no Arquipélago do Marajó, uma vez que encontra um terreno fértil de outras violações de direitos. 

De acordo com dados do Ministério Público do Pará (MPPA), a região do Marajó registrou uma taxa de 69 casos de estupro de vulnerável de crianças e adolescentes para cada 100 mil habitantes. É acima do registrado em média no Brasil: 28 casos a cada 100 mil habitantes, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Os números chamam a atenção, principalmente quando se leva em conta o alto grau de subnotificação de violência sexual na infância. 

“Na exploração sexual, as vítimas podem não se enxergar como vítimas, e a sociedade não denuncia porque há uma relação de mercantilização com corpo. As vítimas sentem que receberam algum benefício”, explica a promotora de Justiça do Pará Mônica Freire,  coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude no Ministério Público do estado. 

Leia + Qual o impacto de conteúdos violentos nas redes sociais para as juventudes?

A fala da promotora é apoiada por dados: apenas 11% das vítimas de violência sexual na infância denunciaram a agressão, de acordo com pesquisa Datafolha divulgada em 2022. 

Mônica Freire explica que o tipo penal mais notificado na região do Marajó é o estupro de vulnerável, caracterizado pelo abuso sexual direcionado para menores de 14 anos, pessoas com alguma deficiência ou sob o uso de entorpecentes. 

“A maioria dos casos são contra meninas, e os abusadores são homens da própria família ou pessoas muito próximas”, explica a promotora. 

No entanto, embora existam registros de casos concretos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Marajó, não se trata de uma situação exclusiva da região. Associada à vulnerabilidade social e à pobreza, a violência sexual acontece no Brasil e no mundo todo. 

Leia + Como a Política Nacional de Cuidados pode reduzir a desigualdade de gênero 

Diego Martins, especialista em violência sexual infantil e coordenador do projeto Futuro Brilhante, também atuante nos territórios do Marajó, atribui à falta de diagnóstico aprofundado sobre a realidade da população o maior desafio para o trabalho de prevenção e acolhimento dos casos.

“Acredito muito que é preciso promover o diálogo sobre o assunto em todos os espaços: família, mídia, espaços religiosos e escolas. Mas isso deve ser feito por uma perspectiva educacional, no sentido da prevenção”, defende Martins. 

Assim, o fortalecimento de instâncias locais, como o Comitê Estadual de Combate à Violência Sexual, e a divulgação do Plano Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, são caminhos apontados pelo especialista. 

Exploração sexual de crianças não acontece só na Ilha do Marajó

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.