publicado dia 1 de junho de 2022
Acesso de crianças e adolescentes às políticas públicas é fundamental para reduzir desigualdades
Reportagem: André Nicolau
publicado dia 1 de junho de 2022
Reportagem: André Nicolau
Cinco meses após a flexibilização das medidas de isolamento que abriu caminho para a retomada das atividades em todo o país, milhões de brasileiros se veem diante de um cenário que prevê desafios relativos aos efeitos econômicos e sociais causados pela pandemia de Covid-19. Avaliação recente divulgada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) indica que o fechamento das escolas nos últimos dois anos pode acarretar no aumento da pobreza e desigualdade a longo prazo.
Isso porque, indica o estudo, sem a criação de medidas que visem a recuperação do desempenho educacional, a renda média da atual geração de estudantes pode cair em até 9,1% e produzirá um Brasil menos qualificado, mais pobre e, proporcionalmente, com maior desigualdade social.
Entre os motivos apontados pelo relatório destacam-se a queda do rendimento escolar, a diminuição de matrículas e o iminente risco de evasão, fatores que podem impactar diretamente os níveis de qualificação profissional e resultar em um mercado de trabalho marcado pela informalidade.
Soma-se a isso a ausência do planejamento de políticas públicas para conter os efeitos da pandemia na Educação. Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em outubro do ano passado mostram que, desde 2020, mais de 2,6 mil escolas públicas do Brasil foram impactadas pela falta de adoção de estratégias não presenciais de ensino e aprendizagem. Quase 90% dessas escolas estão localizadas nas regiões Norte (1.185) e Nordeste (1.172).
De acordo com pesquisa do UNICEF, 39% da população infanto-juvenil brasileira encontra-se em estado de pobreza monetária (brasileiros que vivem com menos de U$5,50 por dia), enquanto 10% vive em situação de pobreza monetária infantil extrema (diária inferior a U$1,90). Um recorte racial revela que estas condições impactam duas vezes mais crianças não-brancas. Confira o estudo completo.
A previsão, no entanto, já se faz presente na rotina de milhões de famílias brasileiras, sobretudo entre as populações não brancas e moradoras das regiões Norte e Nordeste, segundo avaliação da especialista em educação infantil e direito das crianças, Maria Thereza Marcílio. A esse cenário, ela credita dois fatores: a diminuição do acesso a políticas públicas e o desemprego.
“A situação nunca foi boa e está muito pior. Crianças que moram em bairros periféricos ou comunidades vulneráveis estão com muito menos acesso às políticas públicas, com dificuldade de atendimento na saúde e na educação. Também piorou não só pelo desemprego, mas pela precarização do trabalho. Em geral, as pessoas ou perderam seus empregos, ou estão fazendo bicos, ou estão trabalhando em atividades temporárias. E isso, obviamente, tem uma repercussão enorme na qualidade de vida das crianças”, aponta.
Fundadora e presidente da Avante, organização da sociedade civil que trabalha para o desenvolvimento de tecnologias de intervenção social, com sede em Salvador (BA), Maria Thereza analisa as consequências da desvinculação escolar durante a pandemia e reflete sobre as demandas que envolvem o trabalho de reaproximação e engajamento de estudantes e famílias com o ambiente escolar.
De acordo com levantamento recente divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de crianças e adolescentes fora da escola aumentou 171% nos últimos dois anos. Ao todo, 244 mil meninos e meninas de 6 a 14 anos não estavam matriculados no segundo trimestre de 2021, cerca de 154 mil a mais que em 2019.
“O que a gente sabe é que houve uma perda de matrícula grande, principalmente na educação infantil, mas também no ensino fundamental e médio. Ou seja, a conquista gigante de chegar bem próximo da universalização do ensino fundamental está ameaçada, porque tem crianças das séries iniciais que não retornaram. O fato das famílias não terem acesso à tecnologia ou terem um acesso precário à tecnologia distanciou as crianças da escola e dos vínculos com a sala de aula”, explica.
Essa realidade também é vivida por crianças e jovens do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, onde moram aproximadamente 140 mil pessoas em 16 favelas. Pesquisa realizada pela Associação Redes da Maré (incluir link) em 2021, com cerca de mil pessoas, entre estudantes, seus responsáveis, profissionais da educação e gestores (as) públicos (as), buscou entender os impactos da Covid-19 no acesso à educação.
Frente às barreiras para o direito à educação, destacaram-se a dificuldade de adaptação ao ensino remoto (35%), problemas de aprendizagem (28%), e dificuldade de se organizar (20%) ou de estudar (18%). Os desafios também foram de natureza emocional, como desmotivação (21%) e tristeza (9%), além de problemas com a própria saúde (9%).O estudo indicou que, para 62% dos alunos da Maré, o acesso à internet não foi ideal para aprender o suficiente e 74% afirmaram ter aprendido pouco ou nada neste período.
Lidiane Malanquini, assistente social da Redes da Maré, ressalta que, embora toda a sociedade tenha sido impactada pela pandemia, nas periferias e favelas as consequências foram multiplicadas. “Existe uma desigualdade estrutural, ligada à classe e raça, que já dificulta o acesso dessas pessoas. Os campos dos direitos sociais foram afetados e isso se refletiu na educação, com o fechamento das escolas e com o ensino online. A internet na Maré é extremamente precária e, além disso, muitas pessoas não têm acesso ou não têm equipamento”, analisa.
A escola como fator de proteção social
Se a pandemia fragilizou o vínculo dos estudantes com a escola e agravou as condições de vida das famílias, a volta às aulas presenciais tem sido marcada pelo aumento da visibilidade das formas de violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos humanos pela Pontifícia Universidade Católica e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, destaca que com a retomada das atividades nas unidades de ensino, o momento é apropriado para a implementação de estratégias de prevenção e enfrentamento dessa realidade.
“Esses casos de violência doméstica devem começar a aparecer mais a partir da reabertura das escolas e também nos locais de convivência e atividades com crianças e adolescentes”, sinaliza. Diante do expressivo aumento de ocorrências em todo o território nacional, a escola pode assumir papel determinante na prevenção e redução de casos. Para que isso ocorra, segundo Alves, é necessário que educadores e educadoras estejam formados e que possam identificar e encaminhar as denúncias aos órgãos competentes e à rede de proteção local.
Para efeitos comparativos, em relatório divulgado pelo Conselho Tutelar do Rio Pequeno e Raposo Tavares, na Zona Oeste de São Paulo, as denúncias de abuso sexual, agressão física e maus-tratos contra crianças e adolescentes apresentaram um aumento aumentaram de 670%, entre de janeiro ea abril de 2021, em relação ao mesmo período em 2020.
Nos territórios, Alves defende a criação de centros de referência com foco no atendimento dessa população vítima de violência, como é o caso das delegacias especializadas da criança e adolescente que já existem em São Paulo. Em todo o Brasil, existem apenas 110 delegacias como essas, segundo dados Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
“As situações de vulnerabilidade de crianças e adolescentes e das famílias se agravaram, e devem se agravar também o trabalho infantil, a exposição ao abandono e situação de rua e a exploração sexual”, alerta. Dados divulgados em março de 2020 pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) revelam que 221.869 brasileiros estavam em situação de rua naquele ano. Estudos indicam uma mudança no perfil da população, com aumento de mulheres e crianças sob essas condições.
Múltiplas perdas durante a pandemia
Maria Thereza observa que a experiência brasileira na pandemia resultou em diferentes tipos de perdas: reais, concretas, simbólicas, afetivas e de cuidado. Isso se confirma, por exemplo, pelo surgimento de um contingente de 130 mil crianças e adolescentes que perderam pais e mães, cuidadores, avós ou outra pessoa responsável.
“Nós temos uma quantidade enorme de órfãos por conta da Covid e, paralelo a isso, o Brasil voltou ao mapa da fome nesses últimos dois anos. Considero essa realidade dramática, porque reforça a ideia de que as políticas públicas que poderiam atender essas crianças estão sendo desmontadas ou desprestigiadas”, avalia a educadora.
Desde 2018, segundo as Nações Unidas e a Rede Pensann (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar), o Brasil tem cerca de 116,8 milhões de pessoas sem acesso pleno e permanente a alimentos.
Para conhecer a pesquisa realizada pela Rede Pensann, clique aqui.
Em meio a um contexto de múltiplas privações sociais, Maria Thereza relaciona os efeitos da ausência de políticas públicas às inevitáveis consequências no acesso ao sistema educacional e aos demais direitos sociais. “Falta comida, falta escola, falta arte, cultura, lazer, saúde, assistência, proteção. Isso vai ter um impacto óbvio no desenvolvimento das crianças e adolescentes. Olhando apenas pelo viés econômico, o que será investido para ajudá-los a superar essa realidade, com certeza, será maior do que o custo para assegurar um ambiente saudável e que possibilite seu desenvolvimento pleno desde a mais tenra infância”, conclui.