publicado dia 12 de julho de 2024
Aos 34 anos, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) enfrenta gargalos para proteger crianças e adolescentes negros
Reportagem: Nataly Simões
publicado dia 12 de julho de 2024
Reportagem: Nataly Simões
🗒️Resumo: Criado há 34 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é considerado uma das legislações mais avançadas no mundo e norteia ações para garantia de direitos no Brasil. No entanto, ainda há desafios para a proteção de crianças e adolescentes negros devido às desigualdades raciais que estruturam o país.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 34 anos em 13 de julho de 2024. Implementado em 1990, a partir da Lei 8.069, é considerado uma das políticas mais avançadas na promoção, defesa e proteção dos direitos de crianças e adolescentes.
Nas últimas três décadas de vigência do ECA, o Brasil conseguiu aprimorar o acesso à Educação e reduzir significativamente a mortalidade infantil. A criação dos Conselhos Tutelares e das Varas de Infância e Juventude, assim como a elaboração de políticas de enfrentamento ao trabalho infantil, abuso e exploração sexual, também são fruto do marco legal de proteção às infâncias.
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Apesar da evolução, o marco legal ainda enfrenta obstáculos históricos para a sua aplicação. Em especial, há gargalos na proteção de crianças e adolescentes negros, em uma realidade marcada por níveis epidêmicos de violência e racismo.
Há gargalos na proteção de crianças e adolescentes negros, em uma realidade marcada por níveis epidêmicos de violência e racismo.
Em cerimônia em alusão aos 34 anos da legislação, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio de Almeida, reconheceu que, apesar do ECA ser uma grande conquista, ainda é preciso avançar em sua efetivação.
“Lembrar do ECA é lembrar daquilo que resta por fazer. Há muito por fazer”, destacou Silvio de Almeida durante o seminário “Proteger é Preciso: Desafios e Perspectivas nos 34 anos ECA”.
O ministro chamou atenção para o caso do adolescente João Pedro, de 14 anos, que foi baleado durante operação policial no estado do Rio de Janeiro (RJ), enquanto brincava. Os policiais envolvidos na morte foram absolvidos pela Justiça às vésperas do aniversário do ECA.
“Estão vendo por que temos que ter políticas de memória? Nesse caso do João Pedro há ecos da escravidão, de um tempo em que não havia ECA”, disse o ministro. “Para parte da institucionalidade e da sociedade brasileira, é como se não houvesse ECA. Por isso, precisamos lembrar, o tempo todo, que o Brasil tem o dever de cuidar de crianças e adolescentes”, defendeu Almeida.
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Pedro Mendes, advogado do Instituto Alana, aponta que o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe um novo paradigma para os direitos nas infâncias, mas ainda enfrenta entraves para protegê-los.
“Formalmente, há um ganho significativo no campo normativo para crianças e adolescentes, que se consolidaram posteriormente com outras legislações, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, mas a baixa aplicabilidade dessas normas ainda é um gargalo para garantir a equidade para todas as infâncias e adolescências”, afirma.
Como as disparidades raciais marcam as infâncias no Brasil
Os negros (pretos e pardos) somam a maioria da população brasileira (55,5%), de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desde os primeiros anos de vida, esse grupo se depara com diferentes barreiras para a garantia de direitos, que vão do acesso à Educação ao próprio Direito à Vida.
“Crianças e adolescentes negros estão em desvantagem em todas as áreas que se referem a garantia de seus direitos”, analisa Pedro Mendes
“Crianças e adolescentes negros estão em desvantagem em todas as áreas que se referem a garantia de seus direitos”, resume Mendes. “Dados relativos a toda trajetória revelam que crianças negras e pobres tem menos acesso a creches e adolescentes negros representam o maior grupo fora do Ensino Médio ou que deixam de concluí-lo”, explica o especialista.
No campo da Educação, a desigualdade se expressa da Educação Infantil ao Ensino Superior. Segundo a pesquisa “Desigualdades Raciais e Primeira Infância”, elaborada pelo Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro-Cebrap) com base em dados do IBGE, 67,6% das crianças negras de zero a três anos não estão em creches.
Já o acesso e a conclusão de estudantes negros no Ensino Médio ainda equivale a uma década de atraso se comparado com os indicadores de alunos brancos. Somente seis a cada dez jovens pretos de até 19 anos completaram o nível médio no país, entre 2012 e 2022. Além disso, sete em cada dez jovens fora da escola eram pretos e pardos.
No Ensino Superior, apesar do aumento significativo da presença negra após a Lei de Cotas, ainda há disparidades raciais: a taxa de jovens negros de 18 a 24 anos que cursavam ou concluíram a graduação era de 19,3%, ante 36% registrado entre os estudantes brancos.
Na Segurança Pública, a disparidade racial também chama atenção por seus efeitos sobre a vivência de crianças e adolescentes negros. Segundo o relatório “A experiência precoce e racializada com a polícia (2016 – 2019)”, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, adolescentes negros da cidade de São Paulo (SP) são abordados cada vez mais cedo por policiais e têm o dobro de chances de serem abordados, em comparação com os brancos.
O 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou ainda que os negros corresponderam a 85% das mortes violentas intencionais de adolescentes de 12 a 17 anos, registradas em 2022.
A perpetuação do racismo e da desigualdade racial não se revela apenas nas violências contra as crianças e adolescentes. Segundo pesquisa realizada por Geledés – Instituto da Mulher Negra e o Instituto Alana, 71% dos municípios brasileiros não cumprem a Lei 10.639, criada para implementar o ensino de História e Cultura Afro-brasileira nas escolas.
“Os direitos de crianças e adolescentes negros são cerceados por todos os lados – tanto na lógica da repressão estatal, quanto no impedimento da criação de um imaginário e consciência para o enfrentamento ao racismo”, observa Pedro Mendes.
Sistema de garantia de direitos e racismo
Um dos avanços mais significativos do ECA foi a criação do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Criado em 2006 pela Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o dispositivo se estrutura a partir da articulação de diferentes atores na esfera pública e privada.
Segundo Mendes, considerando que a responsabilidade de proteger e promover os direitos de todas as crianças e adolescentes com absoluta prioridade é compartilhada, cada ator social tem um papel fundamental no enfrentamento ao racismo, mas esse papel não pode ser restrito e depende de políticas públicas para efetivação.
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“Cada profissional da ponta – professor, assistente social, profissional da saúde – pode agir de maneira a proteger crianças e adolescentes negros, mitigar os efeitos do racismo e promover o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes negros, valorizando a diversidade. No entanto, essa não é uma tarefa fácil e o enfrentamento ao racismo deve ser considerado enquanto política pública. Isso significa que, em todas essas áreas, a formação dos profissionais, por exemplo, em relação ao combate ao racismo e às relações étnico-raciais precisa ser garantida e estar expressamente prevista em políticas privadas e públicas”, analisa.
Desafios para a proteção integral de crianças e adolescentes negros
A proteção integral de crianças e adolescentes negros também esbarra no racismo presente nas estruturas políticas do país (Judiciário, Executivo e Legislativo), marcados pela presença desigual de pessoas negras.
A proteção integral de crianças e adolescentes negros também esbarra no racismo presente nas estruturas do país
“No Judiciário, por exemplo, a maioria dos cargos é ocupada por homens brancos. O racismo e o menorismo ainda estão presentes no imaginário dessas instituições, o que dificulta, por exemplo, que haja uma sensibilidade maior com crianças negras e pobres. Além disso, não há como falar de enfrentamento ao racismo sem pensar no investimento e na especificação de políticas públicas”, pontua o advogado do Instituto Alana.
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Para mitigar as desigualdades que atingem crianças e adolescentes negros, Mendes aponta como prioridade o reconhecimento formal de múltiplas infâncias e adolescências a partir do desenvolvimento de políticas públicas.
“Isso inclui identificar e prever ações para grupos específicos como crianças negras, indígenas, meninas, crianças e adolescentes com deficiência. Não há possibilidade de garantir políticas públicas antirracistas sem esse reconhecimento formal. O segundo passo é a formação continuada dos profissionais em todos os âmbitos – saúde, educação, assistência social, segurança pública -, garantindo que os profissionais da ponta estejam preparados para lidar com conflitos raciais, não reproduzam violências raciais, valorizem a diversidade e tenham condições para desenvolver seus trabalhos em uma perspectiva que abarque todas as crianças”, conclui.