publicado dia 8 de maio de 2024
Como a fome atinge as crianças no Brasil
Reportagem: Carol Scorce
publicado dia 8 de maio de 2024
Reportagem: Carol Scorce
Resumo: Como a fome atinge as crianças no Brasil? A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada no final de abril, joga luz sobre o desafio histórico da insegurança alimentar e da fome para as políticas públicas.
Entre recuos e avanços históricos, a fome é um problema persistente no Brasil, que atinge de maneira desigual diferentes segmentos da sociedade.
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Divulgada pelo IBGE no final de abril, o módulo Segurança Alimentar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) ajuda a dar contorno ao desafio. Nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2023, o Brasil registrou que 56,7 milhões de domicílios (72,4%) tiveram acesso à comida em variedade e quantidade suficientes para alimentar toda a família.
O número representa um aumento 9,1 pontos percentuais em relação a última pesquisa, de 2018, quando 63,3% dos domicílios estavam em situação de segurança alimentar.
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Outro estudo, conduzido pelo Instituto Fome Zero (IFZ), mostra que 13 milhões de pessoas deixaram de passar fome no Brasil e 20 milhões de pessoas deixaram de sofrer de insegurança alimentar moderada em 2023. Isso representa uma redução de 30% da insegurança alimentar total (somando grave com a moderada) no país.
O levantamento, solicitado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome ao IFZ, comparou os microdados da PNAD do primeiro trimestre de 2022 com os do último trimestre de 2023.
Se por um lado o acesso a alimentos aumentou nas casas brasileiras nos últimos anos, por outro, ainda tem muita gente que vive a angústia de não saber se terá comida suficiente em casa.
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No último trimestre de 2023, ao menos 21,6 milhões de casas (27,6%) estavam em situação de insegurança alimentar. Desses, 14,3 milhões em insegurança alimentar leve, 4,2 milhões de casas em insegurança alimentar moderada, e 3,2 milhões em insegurança alimentar grave, ou seja, com fome.
Entenda os níveis de Insegurança Alimentar
Insegurança alimentar leve ou moderada é quando o alimento chega em quantidade de forma esparsa, sem variedade. Ou seja, a família acessa algum alimento, mas pouco, e empobrecido do ponto de vista nutricional. Já a insegurança alimentar grave é quando ele não chega em variedade e, principalmente, sem a quantidade adequada.
É importante reforçar que esses números não falam diretamente sobre cada indivíduo, mas sobre a situação geral daquela casa. Para chegar neste resultado, a PNAD fez perguntas como: É possível prever se haverá alimento nesta casa nos próximos três meses? Alguém desta casa passou um dia todo sem comer nos últimos três meses? Alguém com menos de 18 anos passou um dia todo sem se alimentar nos últimos três meses?
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Assim, a pesquisa fotografa a situação geral em que se vive naquele domicílio específico. Uma criança, por exemplo, pode não ter comida na despensa de casa, mas consegue se alimentar na escola.
No entanto, ainda que a criança faça refeições na escola, se na residência dela não chegam alimentos em variedade e quantidade suficiente, ela está em situação de fome. É o que explica André Martins, consultor do IBGE.
“A monotonia da dieta não é algo esperado, mas a variedade não é o que mais importa para entender a situações de fome severa”, detalha André.
No caso das crianças de 0 a 4 anos, 62,5% das casas com crianças nessa faixa etária estavam em segurança alimentar, mas pelo menos um terço das crianças estavam em casas onde há a preocupação se terá alimento ou não. Dessas, 4,5% estão com restrição grave na quantidade de comida que acessam.
“Quando conversamos com a família, perguntamos se houve situações de fome com um ou mais membros da família. Se eles passaram um dia todo sem comer. Mas isso pode ter ocorrido em intervalos de tempo que não conseguimos saber. Um dia ou mais, e em que intervalo de tempo. Por isso, a previsibilidade em relação à comida é muito importante. A ideia é entender se eles vivem a angústia de não ter certeza se vai ser possível comprar comida, ou receber esse alimento de alguma maneira”, afirma o pesquisador.
Os dados mostram que casas com crianças – em geral com um número maior de pessoas – convivem mais com a falta de alimentos do que casas com idosos, por exemplo. A maioria das casas (76,4%) com pelo menos um morador com mais de 60 anos recebe alimento regularmente.
Os dados mostram que casas com crianças convivem mais com a falta de alimentos do que casas com idosos, por exemplo.
Isso se explica, segundo André, porque as crianças, diferente dos idosos, entram apenas para a divisão dos alimentos, enquanto os idosos contribuem para levar alimento para casa, seja trabalhando, recebendo aposentadoria ou recebendo algum outro benefício assistencial.
Professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, Ana Paula Bortoletto Martins avalia que a realidade evidenciada pela PNAD mostra a complexidade para fazer os alimentos chegarem à casa de todas as pessoas.
Para a especialista, é preciso reforçar estratégias variadas nos territórios para que todo mundo faça todas as refeições todos os dias.
“A alimentação escolar é fundamental para a nutrição infantil, mas ela não resolve essa nutrição se falta comida em casa, se as outras pessoas da família estão deixando de comer. As políticas públicas devem reforçar estratégias como as cozinhas solidárias, fazer busca ativa nos cadastros de benefícios e acompanhar o acesso a emprego e trabalho dessas famílias”, defende Ana Paula.
“A alimentação escolar é fundamental, mas ela não resolve a nutrição infantil se falta comida em casa”
No caso das crianças, a professora explica que é preciso fortalecer o acompanhamento nutricional dos pequenos a partir dos sistemas públicos de saúde. Isso significa as unidades de saúde incluírem em seus questionários perguntas para avaliar como está a alimentação daquela crianças, e fazer o acompanhamento de altura e peso com o objetivo de identificar deficiências nutricionais.
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“Não há um protocolo claro sobre isso, um acompanhamento sistemático. E isso é importante porque a segurança alimentar depende de uma série de fatores: emprego, renda, e mesmo a produção dos alimentos. Tudo isso muda o quadro de período em período. Sabemos por pesquisas locais que crianças que nasceram pouco antes da pandemia estão com quadros de desenvolvimento nutricional menores do que crianças mais velhas”, explica.
Na Educação, a principal política de apoio ao combate à fome vem do PNAE (Programa Nacional de Aquisição de Alimentos), bancado pelo Ministério da Educação (MEC), com repasse direto aos estados e municípios.
No entanto, o programa costuma funcionar plenamente em municípios mais organizados, explica a professora da USP. Para Ana Paula, é preciso que as administrações municipais recebam mais apoio para fazer chegar às escolas as compras feitas na agricultura familiar, por exemplo.
“O PNAE é uma política fundamental, mas com aplicação caótica. Um outro desafio no caso das escolas é elas darem conta de fornecer alimento de forma integral. A criança precisa poder fazer mais de uma refeição ali”, argumenta a especialista.
Historicamente, o perfil dos responsáveis pelas casas passando por situação de fome permanece inalterado. De acordo com o IBGE, trata-se majoritariamente de pessoas negras (pretas e pardas) e com baixa escolaridade.
“O grau de instrução é bem sintomático. Quanto maior a formação, maior o acesso de alimentos”, afirma André Martins.
As famílias que não sabem se terão o que comer hoje, amanhã ou na próxima semana são compostas em 29% por pessoas brancas, 15,2% por pessoas negras, e 54,5% por pessoas pardas. Mais da metade (67,4%) não tinha nenhum grau de instrução ou o Ensino Fundamental incompleto.
A fome e a insegurança alimentar também apresentam desigualdades regionais.
O quadro de insegurança alimentar leve foi observado em aproximadamente um quarto das casas no Norte (23,7%) e Nordeste (23,9%), regiões mais atingidas pela fome.
O Norte (7,7%) teve cerca de quatro vezes mais domicílios convivendo com restrição severa de acesso aos alimentos, ou seja, com insegurança alimentar grave, quando comparado ao Sul (2,0%) e Sudeste (2,9%).
Em 2023, o Pará foi o estado que apresentou a maior proporção de famílias com insegurança alimentar moderada ou grave (20,3%), um em cada cinco domicílios, seguido pelo Sergipe (18,7%) e Amapá (18,6%).
No sentido oposto, Santa Catarina (3,1%), Paraná (4,8%), Espírito Santo (5,1%) e Rondônia (5,1%) registraram os menores percentuais.