publicado dia 11 de agosto de 2022
75% da população brasileira percebe aumento da pobreza nos últimos anos
Reportagem: André Nicolau
publicado dia 11 de agosto de 2022
Reportagem: André Nicolau
Foi lançada na última quarta-feira, 10, a pesquisa “Cidades Sustentáveis: Desigualdades” que traça um panorama sobre a percepção da população quanto às múltiplas desigualdades que acometem milhões de pessoas em todo o país.
A apresentação do documento aconteceu no teatro do Sesc Bom Retiro, centro de São Paulo, com debate que teve a participação da pesquisadora e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) Aldaiza Sposati, do padre Júlio Lancelloti e mediação da pesquisadora e mestra em Estudos de Gênero e Teoria Feminista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA Giselle Santos.
Elaborada pelo IPEC, a pedido dos programas Cidades Sustentáveis e Rede Nossa São Paulo, o levantamento compila dados sobre a percepção das diferentes vulnerabilidades que atingem, sobretudo, negros, mulheres e pessoas LGBTQIA+.
Destacam-se entre as temáticas observadas questões como atividade extra para complemento de renda, percepção sobre pessoas em situação de fome e pobreza, preconceito e acesso a serviços digitais.
Na abertura do debate, Giselle ponderou os dados da pesquisa, chamando a atenção para como o cenário em pauta envolve especialmente a realidade da população mais vulnerabilizada pelas violações analisadas: as mulheres negras. “Nós estamos falando, sem dúvida, do grupo que compõe o maior percentual da população brasileira, 28%, falando majoritariamente das mulheres negras, que são as mais afetadas pela pobreza. É fundamental que a gente pense em tudo isso, sobre quem dá a cara a todos esses dados e também pensar em como sair dessa situação e entender a potência e a força que faz parte da luta desses grupos”, enfatizou a mediadora.
A pesquisa indica que aproximadamente 75% dos brasileiros conseguem perceber o aumento de pessoas em situação de vulnerabilidade social, enfrentando, entre diferentes violações, maior dificuldade para comprar alimentos e itens básicos.
Questionada sobre quais medidas podem ser tomadas em relação às realidades apresentadas pelo estudo, Aldaiza reflete que a percepção das pessoas é fundamental para se construir uma relação de sentimento capaz de provocar reação coletiva. “Estamos fazendo um movimento nessa pesquisa que não é um dado frio, mas é a percepção. Qual é a ética com que se trata a população de rua, as mulheres? A percepção tem que levar a ações, reações da sociedade civil. Como pode não ter desigualdade se um salário-família é R$ 56 por mês? Um salário mínimo de R$1.200 por mês? Nós ficamos quietos, são decisões que nós não questionamos e que não são levadas para os tribunais. Então, qual é a ética da dignidade humana que nós temos por percepção?”, questiona.
O padre Júlio Lancellotti, que há décadas atua na luta em defesa da população em situação de rua à frente da Paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro paulista da Mooca, rememorou uma das últimas cartas encíclicas escritas pelo Papa Francisco para argumentar que a desigualdade é fruto da tirania. “Não podemos esquecer que a desigualdade é fruto de uma tirania, da tirania neoliberal, do estado neoliberal, do capitalismo neoliberal, que tem na desigualdade essa população descartada”.
Famoso ‘bico’
45% dos brasileiros que precisaram fazer atividades extras para complementar sua renda equivalem a 76.216.569 de habitantes
O pároco comentou também sobre o paradoxo de participar do lançamento da pesquisa sobre desigualdades em uma das regiões onde a vulnerabilidade tem sua face mais cruel no coração da capital paulista. Ele propôs que o documento fosse apresentado na Praça Princesa Isabel, local de abrigo para muitas pessoas em situação de rua na região. “Onde estão os desiguais aqui, onde estão os que sofrem a desigualdade? Qual a percepção deles sobre tudo isso? Nós estamos numa das áreas mais valorizadas da cidade, onde a especulação imobiliária é violentíssima diante dos dependentes químicos espalhados, os pobres que estão nas calçadas, famintos, andrajosos e esfarrapados como diria Paulo Freire. Estar aqui causa a mim um conforto tão bom, mas também a inquietação de estar neste contexto, uma sensação de estar de sapato apertado”.
Situação de fome
74% dos brasileiros, que equivalem a 125.893.439 de habitantes, percebem aumento no número de pessoas em situação de fome ou pobreza nos últimos 12 meses.
Questão de equidade
Ao comentar o aumento das pessoas em situação de rua na capital paulista, Lancellotti reflete a efetividade das políticas públicas implementadas na maior cidade do país, projetos caracterizados, segundo ele, pelo caráter de tutela, que não levam em conta a autonomia e liberdade das pessoas. “Todas as políticas públicas querem tutelar, porque eles (a população em situação de rua) não são capazes, não conseguem, não podem. Eu me pergunto: será que se usa crack em São Paulo só nas ruas? Essa questão da tutela está implícita na política pública do estado neoliberal. Ele não ajuda as pessoas a ter uma educação libertadora, até o acesso à internet”.
O pároco acrescenta que, ao contrário do que se costuma pensar, o que se contrapõe à desigualdade não é igualdade, mas, sim, equidade e que não há política pública equânime. “Ela não dá a cada um o que ele necessita. O projeto de renda básica está aprovado há quanto tempo? Por que não é implantado? Porque não querem equidade”.
Aldaiza relacionou a questão da equidade ao acesso a serviços digitais, como a falta de acesso à internet, que durante a pandemia comprometeu o desenvolvimento escolar de milhares de estudantes em todo o Brasil. Ela expõe que apesar da juventude estar mais apta ao acesso de serviços digitais, questiona qual a possibilidade efetiva disso se tornar realidade e reforça que, quando as políticas públicas não oferecem condições objetivas nesses serviços, contribui apenas para reforçar a desigualdade.
“Por que as unidades de acolhimento não têm acesso pleno para a juventude ao uso do computador, desde as unidades de acolhimentos de crianças e adolescentes à Fundação Casa? Por que as escolas têm tanta dificuldade em introduzir o acesso à linguagem digital, a esses equipamentos digitais? Essa relação precisa ser instalada entre nós, entendendo que percepção não é só constatar e não é só olhar, mas perceber o que isso provoca e nos mostra”, diz a professora.
Diante de todo este cenário, Aldaiza rejeita a utilização do termo vulnerável e considera que os indicativos representam na verdade uma violência à dignidade humana, sejam mulheres, crianças, homens, negros, pardos, indígenas e brancos. “O que é ser vulnerável? É saber quanto você aguenta ser violentado? Não ter dinheiro no bolso? Não ter dinheiro para comprar gás, para comprar comida? É preciso pensar a respeito e a pesquisa nos dá muita coisa para pensar e propor”.
Confira a pesquisa “Cidades Sustentáveis: Desigualdades” neste link.