publicado dia 19 de julho de 2023
Roberto Andrés: “Junho de 2013 colocou o direito à cidade no centro do tabuleiro”
Reportagem: Ana Júlia Paiva
publicado dia 19 de julho de 2023
Reportagem: Ana Júlia Paiva
Resumo: Em entrevista, o arquiteto e urbanista e autor do recém-lançado “A Razão dos Centavos”(Editora Zahar), Roberto Andrés fala sobre a geração que foi às ruas em Junho de 2013, a transformação da tarifa zero em realidade em muitas cidades e os equívocos a respeito das manifestações ocorridas há uma década.
O Brasil tem, hoje, 75 cidades com o passe livre – ou tarifa zero – no transporte público. Ainda que esse número seja pequeno comparado ao tamanho do país, essa é uma vitória das manifestações ocorridas em Junho de 2013, também chamadas de Jornadas de Junho, que catalisaram discussões fundamentais para o campo da mobilidade urbana e do direito à cidade.
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Daniel Santini, coordenador da Fundação Rosa Luxemburgo e mestrando em Planejamento Urbano e Regional na FAU-USP, criou um mapa, no Google Maps, no qual é possível visualizar quais são e onde estão localizadas as cidades com passe livre no Brasil.
Numa tentativa de compreender melhor o que foi esse fenômeno brasileiro, que completou 10 anos em 2023, o arquiteto e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Roberto Andrés, debruçou-se sobre o tema durante sua tese de doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). Defendida no final de 2022, a tese se tornou um livro, publicado em maio deste ano: A Razão dos Centavos: Crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013 (Editora Zahar).
O livro apresenta a premissa de que o Brasil, desde a redemocratização, vem sendo marcado por duas tendências conflitantes: “de um lado, a forma de vida privatista, herdada da ditadura e da segregação histórica (…); de outro, uma aspiração por formas de vida democráticas e baseadas em direitos, que teve força no momento da redemocratização e ganhou um impulso inédito durante o lulismo”.
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Assim, para o professor, o choque entre essas tendências resultou em uma série de conflitos, intensificados na década de 2010, e que explodiram nas ruas em 2013. Em entrevista ao Educação & Território, Andrés defende que o salto na adesão à tarifa zero – ou passe livre – veio da reverberação política de Junho de 2013. “De uma ideia antes vista como impossível”, afirma.
Leia abaixo a entrevista na íntegra:
Educação & Território: As revoltas de junho de 2013 colocaram, como você aponta no livro, a agenda da mobilidade urbana no centro das manifestações de massa. Após 10 anos, já é possível avaliar qual o legado da onda de protestos para essas questões do direito à cidade?
Roberto: A agenda da mobilidade urbana no Brasil sempre foi muito maltratada e deixada em segundo plano. Isso fica evidente quando olhamos para o histórico de rebeliões pelo transporte que acontece no país desde o século 19. A classe política, a imprensa e analistas políticos nunca reconheceram a importância que elas tinham e, tampouco, o quanto a precariedade do transporte público afetam a vida da maioria das pessoas.
“Agenda da mobilidade urbana no Brasil sempre foi deixada em segundo plano”
As manifestações de Junho de 2013 vêm após uma série de outros protestos, acontecidos em anos anteriores, contra o aumento tarifário e condições de transporte, que estava piorando muito ao passo que as tarifas aumentavam acima da inflação.
Várias cidades tiveram mobilizações expressivas, o que mostrou que havia uma geração que se importava cada vez mais com a questão do direito à cidade e da mobilidade – e um País que não entrega melhorias nesse sentido.
Então, as revoltas de Junho de 2013 colocaram a questão do direito à cidade no centro tabuleiro, mas a sociedade brasileira, mais uma vez, renegou essas razões, com o slogan de “não é por vinte centavos”.
Como se essa não fosse uma questão primordial e como se não fosse o que estava mobilizando a maior parte das pessoas que estavam nas ruas, como mostram as pesquisas realizadas na época.
De um lado, essa agenda não avançou com a potência que poderia, por esse motivo. Mas, de outro lado, avançou na medida em que a magnitude daquele ciclo de protestos permitiu que o debate sobre mobilidade urbana aumentasse e alcançasse grupos variados.
Hoje, 10 anos depois, tivemos um salto sobre a política de tarifa zero no Brasil, que veio da reverberação das Jornadas de Junho de 2013, de uma ideia que era vista como impossível.
Educação & Território: O passe livre – ou tarifa zero – já foi considerado utopia. Hoje, é uma realidade em 75 cidades e o passe livre eleitoral aconteceu em diversas cidades no ano passado. Qual foi o peso das jornadas de junho para a concretização dessa nova realidade?
Roberto: As pessoas tendem a pensar que um ciclo de mobilizações vai gerar um resultado institucional imediato. E isso, na verdade, é uma contradição de uma mobilização que busca uma mudança mais transformadora. As mudanças político-sociais e institucionais tomam tempo para se assentarem e serem absorvidas tanto pelos atores políticos como pela sociedade.
No livro “A Razão dos Centavos”, sigo a visão colocada pelo antropólogo David Graeber, e por historiadores da mesma linha política que a dele: de que, mais do que gerar mudanças institucionais, ciclos de protestos servem para fomentar mudanças de mentalidade.
E foi exatamente isso que aconteceu em Junho de 2013. Na época, os manifestantes eram chamados de utópicos, “cabeça de vento” e coisas do tipo…
Era impossível pensar na aplicabilidade de uma política de tarifa zero a longo prazo. Hoje, isso caiu por terra. As jornadas de Junho contribuíram para tornar uma ideia, antes tida como impossível, em algo palatável.
“As Jornadas de Junho contribuíram para tornar a tarifa zero, antes tida como impossível, em algo palatável”
Educação & Território: É possível localizar quem foi essa geração que participou das manifestações de 2013? Depois, tivemos também mobilizações de juventudes importantes, como a chamada “Primavera Feminista” e a onda de ocupações nas escolas em 2014 e 2015.
Roberto: É uma geração que se transformou profundamente em relação à anterior. Vamos pensar na revolução tecnológica que aconteceu no Brasil entre o ano 2000 e 2013. Um país que praticamente não acessava a Internet e passa a ter um dos maiores acessos a YouTube e Facebook do mundo, com mais de 100 milhões de pessoas conectadas.
Tivemos também uma ascensão de pessoas que antes estavam em situação de extrema pobreza e passam a fazer parte da Classe C. Os filhos dessas famílias que chegaram à Classe C conseguem acessar a universidade – muitos deles os primeiros da família.
Essa juventude, com acesso à internet e ao Ensino Superior, passa a aspirar a outras coisas. Enquanto a geração anterior aspirava sobreviver, não passar fome e conseguir construir sua casa própria, a nova geração passa a colocar questões no tabuleiro da política que a classe política não estava preparada para responder.
“A nova colocou questões no tabuleiro que a classe política não estava preparada para responder”
Emergem protestos pelo uso dos espaços públicos, pela preservação de bens comuns urbanos, pelo direito à cidade, pela questão ambiental, pela questão feminista e LGTQIAPN+, e pela questão do transporte e mobilidade urbana.
E essas disputas assumem outras formas, que não a clássica disputa entre capital e trabalho.
Essa é a geração de 2013: 60% dos manifestantes com menos de 25 anos, com alta escolaridade – ou seja, grande parte já com acesso à universidade ou tendo terminado o Ensino Médio – e com uma remuneração de setores intermediários.
Então, não era o jovem de alta escolaridade e alta remuneração, como em protestos da elite brasileira, mas entre dois a cinco salários mínimos. Uma juventude que estudava, trabalhava e utilizava transporte público diariamente.
Educação & Território: Você já afirmou que as revoltas de 2013 talvez sejam o evento mais mal compreendido da história do Brasil. Como assim?
Roberto: O historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) dizia que a Revolta da Vacina (1904) era o evento mais mal compreendido do Brasil. Eu atualizaria essa assertiva do historiador colocando Junho de 2013.
Justamente porque nós fizemos um achatamento histórico, projetando sobre 2013 acontecimentos que vieram a partir de 2015, mas que são separados e que têm públicos diferentes.
O perfil do manifestante de Junho de 2013 é muito diferente de quem estava nas passeatas do MBL se manifestando pelo impeachment [de Dilma Rousseff, ocorrido em 2016]. Esses eram mais velhos, entre 30 e 40 anos, mais brancos, mais ricos e preferencialmente partidários do PSDB.
Essa incompreensão e tentativa de colocar Junho de 2013 como bode expiatório para todas as mazelas que aconteceram no país é muito ruim da perspectiva histórica e da perspectiva de políticas públicas, pois nos impede de olhar para problemas que seguem presentes no país.
Porém, ela serve para que determinados atores políticos abram mão de suas responsabilidades diante de um movimento de juventude que se mobilizou para expor insatisfações legítimas da vida urbana.
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