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publicado dia 8 de abril de 2021

O que estudantes imigrantes trazem na mala e como essa bagagem tensiona a escola brasileira

Reportagem:

*Por Adriana Cardoso, doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora da Rede Municipal de Educação de São Paulo. Ela é autora da tese Imigrantes latino-americanos na escola municipal de São Paulo: sin pertenencias, sino equipaje – formação docente, o currículo e cultura escolar como fontes de acolhimento.

 

Em 2019, defendi minha tese de doutorado, cujo longo título “Imigrantes latino-americanos na escola municipal de São Paulo: sin pertenencias, sino equipaje – formação docente, o currículo e cultura escolar como fontes de acolhimento” remete à ideia de pertences e bagagens. A inspiração para o título veio de uma das participantes da pesquisa de campo, professora de História, que mencionou a canção Movimiento do uruguaio Jorge Drexler, como subsídio didático utilizado em suas aulas. O repertório dos estudantes  era a argamassa que faltava para selar a triangulação ‘formação-currículo-cultura escolar’. Naquela ocasião, me interessava saber como esse novo rosto, o imigrante, mobilizava o coletivo escolar.

A pesquisa da tese foi construída a partir da minha história de vida. Reúne elementos da minha trajetória como professora da Rede Municipal de Educação de São Paulo; da minha militância política e cultural junto às comunidades imigrantes; e, por fim, das pesquisas que já desenvolvia em relação à História e Cultura da América Latina. A pesquisa foi concebida no Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura” da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde conquistei uma bolsa de estudos, e orientada pelo professor João Clemente de Souza Neto. Por ser um programa interdisciplinar, tive a oportunidade de transitar por diferentes áreas do conhecimento e eixos conceituais, mas sem abrir mão daquilo que mais me interessava: a presença do imigrante latino-americano na escola.  

A América Latina como construção simbólica  sedimentou o caminho da investigação, e os fenômenos culturais, sociais, econômicos e políticos não poderiam ser ignorados no processo de pesquisa, uma vez que a imigração é fruto deles. Incorporei no texto as discussões sobre o mundo do trabalho, raça e etnia, gênero, tratando ainda de temas específicos do universo escolar, tais como a percepção que os docentes têm de seus estudantes, a discussão curricular, a formação inicial e continuada. No que se refere ao debate educacional, a política pública é discutida a partir da mobilização social, resgatando  iniciativas dos movimentos sociais de imigrantes para a criação e revisão de marcos regulatórios e espaços de participação popular no município de São Paulo.

Trato o debate educacional a partir dos fluxos migratórios regionais na escola pública porque acredito que, ao adentrarem no universo escolar, esses sujeitos trazem a capacidade de instigar e ampliar a discussão sobre diversidade. São nas escolas públicas que se avolumam numericamente as matrículas de estudantes imigrantes, especialmente andinos. Esse dado reafirma a concepção de Educação orientada a promover a humanização coletiva, pressupondo que todos os sujeitos do ato educativo sejam contemplados para que se desenvolva a “capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar, mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a”, conforme alertou Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia

Na pesquisa exploratória, que contou com a narrativa de professores que atuam junto aos estudantes imigrantes, foi possível fazer um levantamento dos principais dilemas que permeiam as práticas pedagógicas. Se sobressaem as lacunas no processo de formação inicial e continuada, as dificuldades de comunicação e a ausência de suportes conceituais e didáticos. 

Estes dilemas são barreiras, pois dificultam a garantia da educação de qualidade aos  estudantes e, apesar da legislação educacional brasileira assegurar a oferta educativa como um direito a todos, a tríade acesso, permanência e terminalidade fica comprometida, uma vez que a discussão sobre a diversidade é um dos pilares que fundamentam a Educação Integral. 

O referencial epistêmico que fundamentou a pesquisa é a perspectiva de diálogo entre as culturas, a Pedagogia Intercultural e, a esse respeito, foram importantes os aportes trazidos pelas investigações  da pedagoga e pesquisadora Vera Candau. Para Vera Candau, as dificuldades em se incorporar ao currículo escolar propostas que dialogam com as diversidades derivam, fundamentalmente, de dificuldades e inseguranças, tanto conceituais quanto práticas, por parte dos professores. A partir dessas reflexões, uma pergunta moveu o percurso da pesquisa: como a escola pública se reorganiza pedagogicamente para acolher os estudantes imigrantes e quais estratégias são utilizadas pelos professores para garantir a visibilidade dos repertórios culturais desses estudantes?

As culturas dos estudantes migrantes devem fazer parte do projeto político-pedagógico das escolas / Crédito: Danilo Mekari

Práticas de visibilidade de estudantes imigrantes nas escolas públicas

A pesquisa de campo ocorreu em três escolas da Rede Municipal de Educação São Paulo, onde foram realizadas entrevistas com as coordenadoras pedagógicas e professores – Língua Portuguesa, Arte, História e Geografia – e analisamos a documentação escolar. Essas escolas estavam localizadas em distritos da cidade que concentram grande quantidade de imigrantes, o que se expressava no número de matrículas. Retomando o eixo da América Latina, as escolas foram nomeadas a partir de regiões latino-americanas, identificadas no texto como EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) dos Andes (localizada no distrito de Vila Nova Cachoeirinha), EMEF do Circuncaribe (distrito de Vila Maria) e EMEF da Mesoamérica (distrito do Belém). 

A imigração foi descrita por um dos participantes da pesquisa como fenômeno “inevitável”. Essa percepção se ancora na experiência vivida por aquele sujeito junto ao tema migratório e, nesse caso, o adjetivo “inevitável” pode estar relacionado ao fato de que a sociedade multicultural gerada a partir dessa presença imigrante é fato concreto. ‘Inevitável’ porque o deslocamento – seja físico ou simbólico – não pode ser evitado justamente porque a migração é um dos fenômenos mais antigos da humanidade. Migrar está na origem de nossa espécie e, no contemporâneo, a migração não deve ser entendida como problema, e a grande questão que se pleiteia é a migração com direitos. É nesse âmbito que os direitos educativos se inserem. 

Todo mês a plataforma Educação e Território publica textos de pesquisadores que refletem sobre territórios educativos e educação integral. Para ver seu texto publicado aqui escreva para [email protected]

Diante desse fenômeno complexo, no qual distintas áreas do conhecimento se esforçam para compreendê-lo e mapeá-lo, a pesquisa se empenhou em evocar a escola para pronunciar-se, não como um objeto de pesquisa, mas a escola ente vivo, o espaço chão onde as relações acontecem, ou, como a definiu Paulo Freire: um lugar sobretudo de gente. É a escola que pode aflorar propostas de diálogos com a comunidade, considerando a permeabilidade deste espaço junto ao território. 

A pesquisa de campo resultou em relatos significativos, tanto das coordenadoras pedagógicas quanto dos professores. Na EMEF da Mesoamérica, a gestão escolar fez parcerias com o Consulado da Bolívia para que o espaço físico da escola fosse utilizado para atividades consulares, sendo estabelecido um intercâmbio que favorece a comunidade escolar. Nessa mesma escola são utilizadas canções em espanhol para problematizar temáticas em sala de aula, os estudantes imigrantes assumem o protagonismo em distintos projetos e as reuniões de formação contemplam o debate do contexto migratório que as escolas acolhem.

Na EMEF do Circuncaribe o debate está presente há alguns anos. Diversos projetos relacionados à diversidade foram realizados e a temática migratória adquire destaque em atividades de sala de aula e eventos para a comunidade. Uma situação interessante – relatada pela coordenadora pedagógica – foi a participação de dois estudantes bolivianos no momento de formação continuada, em que apresentaram sua cultura aos professores. Já a EMEF dos Andes investiu na documentação escolar: nos apresentou um documento com a identificação de todos os estudantes imigrantes distribuídos por turma, onde se destaca se são de 1º ou 2º geração. Esse documento suscitou o debate, junto à diretora da escola, sobre a evasão escolar e o contexto socioeconômico das famílias imigrantes. O projeto político pedagógico (PPP) inclui em suas ações iniciativas relacionadas aos estudantes imigrantes, fomentando a participação e o protagonismo. Na sala de aula a diversidade também é destacada e, dentre as estratégias desenvolvidas pelos professores, interessa muito o relato do professor de Arte, que desenvolve trabalhos inspirados nas mandalas mexicanas. A professora de história relatou que percebe a presença de estudantes andinos em suas aulas como elemento que favorece a discussão sobre os povos originários do Brasil e da América Latina.

Adriana Cardoso observa que nas três escolas de sua pesquisa, a aceitação da diversidade como potência ajudou a integração dos imigrantes / Crédito: Diogo Moreira

Em comum, as três unidades escolares lócus da  pesquisa buscam estreitar os laços com a comunidade, de modo que as famílias se sintam pertencentes ao espaço escolar. Atividades como festas, reuniões e demais eventos de promoção cultural fazem parte do cotidiano das escolas e os registros – fotografias e relatórios – coletados através da análise da documentação escolar dão conta de que existe um esforço dessas escolas para promover o diálogo intercultural.        

Discutir as implicações que a presença imigrante desperta na escola é estimulante, especialmente quando os sujeitos são convidados a descrever suas experiências. Analisar quais são as vozes que se sobressaem quando os sujeitos são evocados a narrar esse contexto é um elemento que contribui para mapear as problemáticas da educação contemporânea. 

Tão longo quanto o título é o volume do texto e, ainda que a quantidade de páginas estivesse no limite estabelecido pelo orientador, muitas questões permanecem em aberto e estão relacionadas ao juízo que esses professores fazem de seus estudantes: são bons alunos? São apenas esforçados? Se são bons alunos, porque isso não se reflete em um rendimento escolar superior? 

Como canta Drexler “Fuimos la gota de agua viajando en el meteorito/Cruzamos galaxias, vacío, milenios/ Buscábamos oxígeno, encontramos sueños[Fomos a gota d’água viajando no meteorito/Cruzamos galáxias, vazio, milênios/ Buscávamos oxigênio, encontramos sonhos]. Que dentro dos portões de cada escola, as crianças encontrem esse baú do tesouro cheio de sonhos, que a escola seja um lugar de esperança e que possamos aprender em diálogo. 

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