Perfil no Facebook Perfil no Instagram Perfil no Twitter Perfil no Youtube

publicado dia 5 de junho de 2023

Mês do Orgulho: 8 perguntas para Maria Clara Araújo, autora de Pedagogias das Travestilidades

por

Nascida em Camaragibe (PE), Maria Clara Araújo dos Passos, 27 anos, foi a primeira travesti aprovada no curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O ano era 2014, e Maria Clara uma das 95 pessoas trans autorizadas pelo Ministério da Educação (MEC) a se inscreverem no Enem com o nome social. A chegada da hoje autora de Pedagogias das Travestilidades (Editora Civilização Brasileiro) – e a viralização de um texto-manifesto cobrando o direito do uso do nome social – movimentou as estruturas da universidade. Com a pressão política, estudantes trans e travestis passaram a ter o direito ao nome social respeitado naquele ambiente. 

A população transexual e travesti enfrenta desafios diários em busca de reconhecimento, igualdade, respeito e inclusão no Brasil, o país mais letal para pessoas trans no mundo. São altos também os níveis de exclusão escolar, dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e de exposição a múltiplas violências. 

A pedagoga e escritora Maria Clara Araújo dos Passos, autora de Pedagogias das Travestilidades
A pedagoga e escritora Maria Clara Araújo dos Passos, autora de Pedagogias das Travestilidades. Foto: Reprodução/@afrotranscendente

Cada vez mais, porém, esse segmento da população é visibilizado: em 2022, duas representantes – Érika Hilton e Duda Salabert – foram eleitas para o Congresso. O uso do nome social em documentos e registros escolares cresceu 300% entre 2012 e 2021. Segundo levantamento da CNN a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), 15 mil estudantes da rede pública preencheram, na ficha de matrícula, os nomes pelos quais gostariam de ser chamados. 

Leia + Orgulho e resistência: o percurso LGBTQIA+ pelo direito à cidade

Maria Clara explica que, por muito tempo, o segmento travesti e trans esteve presente nas universidades apenas como objeto de estudo. Hoje, apesar dos desafios, já há referências teóricas produzidas por pessoas trans e travestis, um dos fios condutores do livro. “O que tento fazer é olhar para pedagogias que foram escritas e propostas dessa maneira, a partir de intelectuais travestis e transexuais que rompem com as linhas abissais no fazer educativo”, explica a escritora, que atua nas organizações internacionais All Out, voltada para os direitos globais da população LGBTQIAP+ e na Black Feminist Fund, de feministas negras. 

Para a autora, as travestilidades são ricas em saberes e experiências que podem contribuir para uma educação mais empática e respeitosa. Dentre os temas abordados no Pedagogias das Travestilidades, livro fundamentado em Paulo Freire e bell hooks, há a construção da identidade de gênero, a relação entre corpo e Educação, a influência dos discursos normativos e as possibilidades de transformação por meio da Educação.  

“Ainda que haja imensos desafios, os próprios alunos pautam o debate a partir de suas vivências. Os professores me disseram que o assunto está fervendo no dia a dia escolar. Então, ainda que queiram barrar a discussão sobre gênero, é impossível, porque o gênero está lá. Muitos professores têm buscado formas paralelas de entender e estudar sobre o assunto, porque ainda não há, na formação inicial, esses debates”, compartilha.

Leia, a seguir, a entrevista na íntegra:

O livro tem um título bastante instigante: Pedagogias das Travestilidades. O que seria, exatamente, uma pedagogia das travestilidades?  

Maria Clara: O primeiro ponto que gostaria de colocar é que no livro eu não necessariamente estou propondo uma nova pedagogia. O que tento fazer é olhar para pedagogias que foram escritas e propostas dessa maneira, a partir de intelectuais travestis e transexuais que rompem com as linhas abissais no fazer educativo. Como Marina Reidel, que propõe uma Pedagogia do Salto Alto, Adriana Sales, que reivindica pedagogias e currículos Queer e Thiffany Odara, que anuncia uma Pedagogia da Desobediência. 

O que pontuo é que a organização bibliográfica dessas elaborações teórico-práticas, quando analisadas conjuntamente, constituem o que nomeio como Pedagogias das Travestilidades. Seriam uma forma que eu, Maria Clara, estou dando a esse esforço de pensadoras e ativistas trans e travestis, de proporem outras pedagogias que não só estão relacionadas com a atuação do movimento social de travestis e mulheres transexuais no Brasil há décadas, como também com as incidências e intervenções que a nossa população tem realizado tanto do ponto de vista da Educação Básica quanto da universitária

Como nasceu a ideia do Pedagogias das Travestilidades e por que você iniciou o projeto? Havia um público-alvo na cabeça quando escreveu? 

Maria Clara: Eu já utilizava essa ideia de “pedagogia travesti”, no singular, há muito tempo, inclusive quando eu escrevia para o site Blogueiras Negras

Nessa época, estava na graduação de Pedagogia, que fiz em duas faculdades, na UFPE e na PUC de São Paulo. Nas duas faculdades, em lugares completamente diferentes, com conceituações sobre o que é pedagogia completamente diferentes, eu continuava ouvindo a mesma tese de que é na escola que a gente se reconhece como sujeito, que é na escola que a gente se constrói como cidadão. E eu via um abismo entre essa tese e a realidade da história do movimento de travesti e mulheres transexuais. 

Como assim? 

Maria Clara: Eu me afirmei como travesti aos 16 anos, ainda no Ensino Médio, e sofri diversas transfobias institucionais. Se isso acontecia comigo no início da década de 2010, imagina o que era ser uma travesti na escola nos anos 2000 ou 1990? 

Então, a partir dessa hipótese, digamos, de que não foi necessariamente na escola que uma parte da população de travesti e mulheres transexuais se autorreconheceu como sujeito e cidadã, que eu me coloco a pergunta: então foi onde, Maria Clara? E daí eu procuro me enveredar pelo movimento social e destrinchar esses novos olhares pedagógicos. 

O livro nasceu como minha monografia de conclusão de curso, que começou na UFPE e terminou na PUC. Foi escrito durante a pandemia, defendido em 2020. Como já queria que fosse publicado, não teve muita mudança editorial para o livro. E isso vai ao encontro da sua pergunta sobre o público-alvo: na verdade, era um interesse meu de que o livro fosse acessível. 

Pedagogias das Travestilidades é obviamente sobre Educação, mas é um livro que, acima de tudo, discute a história do Brasil, outras camadas da realidade brasileira. Pensando nisso, o livro é voltado a quem tem interesse em se aprofundar em outras histórias do Brasil, que foram ocultadas durante bastante tempo.  

Você se identifica enquanto travesti e cita no livro o Movimento Social de Travestis e Mulheres Transexuais. Qual é a diferença entre ser travesti e mulher transexual?  

Maria Clara: Interessante esta pergunta. É uma questão que surgiu no processo de edição do livro, porque fiz a escolha intencional de não responder. Sinto que ficar presa a algumas questões, que sempre são retomadas, imobilizam quando há discussões importantes a serem aprofundadas, que acabam sendo negligenciadas. 

Mas, didaticamente falando, não existe uma diferença intrínseca, mas sim uma maneira como cada pessoa busca se autorreconhecer e se afirmar. Tem meninas que se sentem confortáveis se colocando como mulheres transexuais. Outras, que como eu, acham importante se nomear como travesti por uma questão histórica do intenso processo de desumanização da identidade travesti no Brasil, que perpassou mídia, Estado e Educação. No livro, discuto como cada identidade foi construída historicamente no movimento social.  

Você conta que foi bell hooks que apresentou Paulo Freire a você como pesquisadora. E também afirmou que o livro é, fundamentalmente, freireano. Quais são os diálogos que a sua obra estabelece com Paulo Freire e com bell hooks? 

Maria Clara:  O livro foi inicialmente gestado durante minha graduação na UFPE, quando fui aluna e em seguida monitora da disciplina Pedagogia de Paulo Freire, que é ministrada pela professora Maria Eliete Santiago, uma das maiores referências em estudos freireanos do mundo, que inclusive foi orientanda de Freire e está à frente da Cátedra Paulo Freire na UFPE. Ele é um livro freireano porque eu tive o privilégio de passar por duas instituições que são assumidamente freireanas e utilizo as ferramentas de libertação e conscientização para falar sobre a história do movimento de travestis. Eu aciono todo o léxico freireano durante o livro.

E a interlocução com bell hooks? 

Maria Clara: A interlocução com bell hooks vêm principalmente nos apontamentos que ela tangencia sobre raça, classe e gênero dentro do debate educacional. Especificamente, posso destacar o livro Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra, em que hooks fala sobre a reinvindicação do ato da fala, como parte de um processo mais amplo de tornar-se sujeito, que eu utilizo muito no meu livro. 

Pedagogias da Travestilidade é um livro muito do “esperançar”, por isso fez muito sentido utilizar esse arcabouço teórico. Durante muito tempo, travestis, especificamente, só foram inteligíveis para academia brasileira em pesquisas etnográficas, que olharam para a nossa experiência para os nossos corpos com lentes extremamente exotificadoras. 

E hoje, com Pedagogias das Travestilidades e outras publicações e movimentações de ativistas e teóricas trans, o que propomos é essa reivindicação de hooks, se não no lugar de sujeitas, ao menos no lugar como produtoras de conhecimento científico.  

Você também afirma que os corpos trans são pedagógicos. O que isso significa, na prática? 

Maria Clara: Parto dessa ideia dos corpos pedagógicos, e não apenas corpos trans, mas de mulheres e pessoas negras também. Levando em consideração a minha própria experiência quando entrei na UFPE: lá não tinha política de nome social. Aí escrevi Meu manifesto pela igualdade, que abre o livro. O texto foi muito compartilhado nas redes sociais, o que pressionou a universidade publicamente e politicamente a instituir uma política de nome social. 

Veja só: fui a primeira travesti aprovada no curso de Pedagogia da UFPE e, com a minha entrada, a universidade foi inquirida a se movimentar. 

Então eu parto da ideia de que os espaços não continuam sendo os mesmos quando a gente adentra neles. Porque não é qualquer inclusão, sabe? Eles são inquiridos a se repensarem e se movimentarem para que a gente possa caber neles com dignidade. Até porque se eles não se questionarem, nossa permanência pode não estar garantida.  

Você narra no livro um pouco da sua vivência como estudante. Como enxerga o ambiente escolar com relação aos corpos trans atualmente?

Maria Clara: Apesar de pedagoga e pesquisadora na área de Educação, nunca trabalhei em sala de aula. Estar presente como professora envolve enfrentar determinadas situações de violência que, hoje, eu não estou disposta. Mas, como estudiosa do tema, vejo que tivemos alguns avanços de lá pra cá.

A instituição do nome social na educação básica e a própria discussão sobre cotas para pessoas transexuais, como tem acontecido em várias universidades, demonstra o amadurecimento desse nosso repertório. A UFABC, em São Paulo, por exemplo, já tem cotas para pessoas transexuais na graduação. Durante o mês de maio, a convite da Defensoria Pública de São Paulo, eu ministrei formações com professores que trabalham em Centros Educacionais Unificados (CEUs) para que eles pudessem desenvolver um olhar e uma prática inclusiva e acolhedora com os jovens.

Nesse sentido, a partir de relatos dos professores, também considero que a visibilidade sobre a discussão sobre gênero é outro grande avanço. Ainda que haja imensos desafios de patrulha ideológica e ofensivas como a criação da “ideologia de gênero”, os próprios alunos pautam o debate a partir de suas vivências. Os professores me disseram que o assunto está fervendo no dia a dia escolar, com muitos se identificando como bissexuais, lésbicas, gays, e adolescentes se reconhecendo como transexuais desde muito cedo, com 16 anos. Então, ainda que queiram barrar a discussão sobre gênero, é impossível, porque o gênero está lá. Muitos professores têm buscado formas paralelas de entender e estudar sobre o assunto, porque ainda não há, na formação inicial, esses debates.

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.