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publicado dia 23 de junho de 2022

Livro aborda relação da infância com a cidade no Brasil e em Portugal

Reportagem:

Lançado em abril, o livro O Direito das Crianças à Cidade: perspectivas desde o Brasil e Portugal propõe um olhar sobre a relação da infância com a cidade em suas diversas possibilidades e vivências: nas ruas, praças, parques, em situação de desabrigo, em luta por moradia e outros desdobramentos abordados. 

Resultado de um projeto coletivo que reúne professores e pesquisadores dos dois países, a obra investiga a questão infância sob suas especificidades culturais, econômicas e sociais, tendo a cidade como pano de fundo de suas interações. 

A professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e organizadora do livro, Márcia Gobbi, cujo trabalho debruça-se sobre a questão de crianças e mulheres na luta por moradia na cidade de São Paulo, destaca a importância da compreensão acerca do conceito de território para que haja avanço nas reflexões sobre o tema. “Ao pensar em território recorro sempre a Milton Santos, cuja definição permite-nos ir além da mera divisão geográfica em que fronteiras vão delimitar espaços, levando-nos a atingir compreensões mais amplas sobre as pessoas que vivem nesses espaços, transformando-os em lugares. eva-nos também ao entendimento dos usos dados ao território. Ao considerar as pessoas que produzem o território, começamos a refletir sobre como isso é feito cotidianamente. Afinal, como produzimos espaço e território? Que relações encontram-se engendradas nessa feitura cotidiana?”, indaga.  

Caminhar pela cidade é um ato político 

Ao avaliar as possibilidades de interação com o espaço urbano, a especialista enfatiza a função social proporcionada pela caminhada, um simples hábito da rotina nas grandes cidades que pode ser fundamental para a compreensão dos territórios em que vivemos. 

“Saídas com as crianças, desde bebês, pelos territórios, conversas com elas, paradas para melhor observar, são práticas das quais nos esquecemos, mas que são bastante importantes. O território não é apenas o lugar de uso, não é mera mercadoria, é espaço de relações e, quem sabe, de onde podemos partir para mudar o mundo à nossa volta. Há diferentes territórios, cada um com suas especificidades, eles não são neutros”, reflete. 

Ressignificar os territórios, explica Maria, pode estar no trivial gesto de andar, olhar e pensar a cidade, de forma a propor reflexões e mudanças para o espaço urbano, observando as atuais condições de vida, e problematizá-las em constantes diálogos, é uma forma de se alimentar do território e propor sua reconstrução.

“Estar nas ruas com as crianças é uma prática a ser provocada. Suas presenças, assim como as nossas, são verdadeiras intervenções urbanas que modificam o já visto e pensado como inabalável, é um ato político a ser exercitado”, diz. 

Mobilidade na experiência das crianças 

Se caminhar pelo bairro pode ser um exercício de interação social, por outro lado, as cidades são cada vez mais planejadas sob a perspectiva do uso do automóvel, em detrimento da relação com o pedestre, como salienta a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Renata Lopes, uma das colaboradoras do livro.

Sua contribuição aborda a questão da mobilidade urbana com foco na experiência das crianças nos deslocamentos em automóveis, relacionando as transformações das cidades e os impactos causados na infância.  

“O território não é apenas o lugar de uso, não é mera mercadoria, é espaço de relações e, quem sabe, de onde podemos partir para mudar o mundo à nossa volta”

 

Tema ainda requer pesquisas

Ela argumenta que, embora a experiência da mobilidade urbana seja cada vez mais frequente na vida das crianças, é um tema ainda pouco abordado nas pesquisas, já que o automóvel é compreendido apenas como contexto de passagem e transição.

“Sabemos que as infâncias e os contextos de vida das crianças são diversos e que elas são impactadas de diferentes maneiras pelas transformações das cidades. Daí a importância de investigar também os deslocamentos de carro, de ônibus de crianças das periferias, das áreas rurais, onde muitas caminham longas distâncias para chegar até a escola, por exemplo”, diz Renata.

Temas como crescimento das cidades, desenvolvimento industrial, política de mobilidade urbana e aumento do uso de automóveis são questões abordadas como se fossem “temas adultos”, sem considerar os impactos na vida das crianças. O que é um equívoco, segundo a autora. “A poluição, o trânsito, a diminuição de áreas verdes, de espaços livres e de possibilidades de circulação mais autônoma são aspectos que devem ser observados. Os longos períodos despendidos no carro também. O carro é um contexto social e de socialização, com modos específicos de caracterizar as relações que ocorrem em seu interior e de possibilitar relações com o ambiente externo. Há, por exemplo, limitações no olhar, pouco espaço para o movimento, visão bidimensional para o que ocorre fora, e, consequentemente, menor autonomia para as crianças”, avalia

Infância e a cidade: direitos em Brasil e Portugal   

O livro, que sugere uma observação entre diferentes realidades na infância entre Brasil e Portugal, esmiúça a possibilidade de trocas de experiências entre os dois países. A professora reflete que esse encontro pode ser fundamental para o desenvolvimento do tema.

“Há uma história de colonização que nos marca e com a qual podemos, inegavelmente, aprender muito sobre nossas práticas cotidianas, nossa história e o que nos constitui. É importante olhar para sua história como forma de debruçar-se sobre si, de forma a encontrar o que deve ser mantido e o que há de mudar, projetando futuros, ou o mundo possível, a partir da realidade possível e sua história”, diz. 

Márcia ressalta que a produção de pesquisas sobre infâncias, crianças e cidades nos dois países contribui para a integração como também expõe as diferenças que compõem a experiência brasileira e lusitana. 

“Diante das políticas que existem hoje no Brasil, as crianças indígenas e quilombolas, de terreiro, do campo e da cidade, das escolas e aquelas que perdem suas escolas com o desmonte da educação pública, vivem realidades diferentes das crianças portuguesas, sobretudo quando pensarmos nas práticas curriculares completamente distintas. Contudo, há algumas singularidades. Esse ser criança e suas curiosidades, a capacidade de intervir no urbano quando nele circula, a capacidade de produzir espaços, de criar e de permitir-nos projetar outros mundos de maior igualdade para as crianças”, pondera a autora. 

Livro reúne histórias e reflexões sobre cidade, gênero e infância