publicado dia 10 de fevereiro de 2021
Inquérito contra grafite em BH retoma tensão entre direito à cidade e arte urbana
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 10 de fevereiro de 2021
Reportagem: Cecília Garcia
O artista Robinho Santana cresceu tendo como referência de arte urbana os grafites e pichações que via nas ruas de Diadema (SP). Da observação dessa estética, somada à admiração pela história dos pais, nasceu a inspiração para obras que exaltam a cultura e a pessoa negra.
“Sou de uma família política, de pai que foi do sindicato de metalúrgicos e mãe conselheira tutelar. Desde o início minha arte tem um viés político, na busca de construir a imagem do povo preto de forma digna”,afirma.
A participação de Robinho na edição de 2020 do Festival CURA – Circuito Urbano de Arte, que uma vez por ano colore prédios de Belo Horizonte (MG) seguiu este mesmo preceito. No mural que cobre a empena do edifício Itamaraty, Robinho homenageou uma foto de sua família e convidou cinco artistas locais para emoldurar a obra com a grafia característica do picho.
Quatro meses depois de sua feitura, o mural virou alvo de um inquérito policial. Segundo informações apuradas pelo jornal Folha de S. Paulo, a incriminação partiu da DEMA (Delegacia Especializada em Crimes contra o Meio Ambiente) e é sigilosa, mas há indícios de que seja desdobramento de outra investigação, que aconteceu por pichações ocorridas antes da pintura do mural.
Todas as pinturas feitas nas laterais e empenas dos prédios durante o Festival CURA são realizadas com autorização da prefeitura e dos moradores do edifício, que recebem a equipe do Festival e acordam em assembleia pela adesão. “No momento em que os artistas são convidados a fazer uma colaboração no festival, tudo está autorizado. A premissa é a liberdade artística: não interferirmos no layout do artista e isso está bem claro no contrato com os prédios”, explica Jana Macruz, uma das curadoras.
É a segunda vez que uma obra do projeto CURA sofre um processo judicial. Em novembro de 2020, o mural Híbrida Ancestral, da artista Criola, que decora um prédio em São Paulo, foi processado por um único morador, sob alegação que a pintura era de “gosto duvidoso”. O processo ainda corre na Justiça.
Para o historiador Álan Pires, especialista em patrimônio urbano, o que se revela em ambas as investigações são os incômodos à estética e aos corpos e sujeitos que a praticam quando o grafite passa a ter visibilidade na cidade:
“A pichação e o grafite são praticados por uma série de pessoas das mais variadas formações, escolaridades, cores, todas as matizes, mas ainda é vinculada às periferias e a todo olhar reacionário que é lançado sobre ela. Tem uma perseguição à pichação sim, à toda estética que essa forma de grafia traz, mas também aos sujeitos implicados nisso. Que são esses sujeitos que estão na cidade e querem escrever sua história, formar a paisagem, sem ser meramente mão de obra. Que querem conformar, dar cor, novos percursos, ocupar a cidade de outras formas.”
Robinho complementa que as culturas negras no Brasil já têm um histórico de perseguição no tocante ao direito de ocupar os espaços públicos da cidade. “Quando chegamos num lugar de destaque, encontram uma forma de criminalizar. Acontece a mesma coisa com o funk, aconteceu antes com as rodas de samba. É um preconceito que acontece com toda manifestação oriunda de cultura negra e periférica.”
Em sua tese de mestrado A Pichação como Apropriação da Cidade: O pixador como formador do cenário urbano, Pires relata a conturbada relação entre a capital mineira, picho e grafite. Nos anos 1980 e 1990, houve uma intensa repressão policial à prática do picho. As prisões não ajudaram a diminuir o número de infrações. Tampouco havia políticas públicas de cultura e educação para amparar as juventudes que encontravam na prática muitas vezes sua única forma de lazer.
Em 1999, a prefeitura da cidade optou por outro caminho. O Projeto Guernica, que funcionou até 2014, promovia oficinas de grafite abertas ao público, mas voltadas principalmente aos jovens, construindo uma aproximação e desestigmatização dessa forma de arte urbana. Nelas, além das técnicas de pintura, artistas e grafiteiros convidados traziam outras expressões da cultura hip-hop, ligada ao grafite e ao picho.
“São duas formas de se olhar essa situação: é possível fazer uma criminalização absurda, abrir precedente para violência policial que é comum em casos de repressão à pichação e que não tem nada a ver com fazer investigação nos termos da lei. E você pode ter o diálogo”, afirma o historiador, que fez parte do projeto. “O Festival CURA está seguindo pelo diálogo. Não estou discutindo aqui a essência do picho ser legal ou ilegal, e sim da potência que a pichação ganha ao entrar neste espaço e fazer com que estes sujeitos ocupem um lugar de destaque que não o da criminalidade.”
O Festival CURA já entrou com pedido no Ministério Público para trancamento do processo, e nas redes sociais já houve manifestações de apoio à permanência do mural. Pires acredita que, independentemente do andamento do processo, essa é uma oportunidade para debater quais são os sujeitos e que tipo de arte urbana pode ocupar a cidade.
“A cidade é reconstruída todos os dias, simbólica e materialmente. Olhar para a pichação e achar que vamos conseguir uma solução final é um erro. Porque se trata de algo vivo. Entram e saem gerações de pichadores e a cada geração novos valores vão sendo criados, novas lógicas, novas dramáticas para essa escrita. Temos que ser um processo contínuo de diálogo, do poder público com a cidade, com quem mora nela, com quem a faz.”