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publicado dia 18 de janeiro de 2023

Frei Betto: “Olhar o mundo pela ótica do oprimido é fundamental na educação política”

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A concepção de uma formação integral compreende o sujeito como alguém capaz de aprender ao longo de toda a vida, com várias pessoas e em todos os espaços, sobre os conhecimentos produzidos pela humanidade, sobre si, o outro e as relações que se estabelecem, e sobre as várias realidades e modos de viver que coexistem no mundo. Nessa perspectiva, a educação política não pode ficar de fora.  

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Para Frei Betto, escritor vencedor de dois prêmios Jabuti, assessor de movimentos populares e autor de “Por uma Educação Crítica e Participativa” (Editora Rocco), essa formação é essencial porque “a política não é tudo, mas está em tudo”. 

O ativista explica que, do momento em que nascemos até nossa morte, somos atravessados pela política do país, que constitui a base das possibilidades da qualidade de vida que a maioria da população pode viver. 

À minoria detentora de riqueza, está reservado também o poder de influenciar a política que atinge a todos, mas que parte do interesse e do benefício a esses poucos. O papel da educação política é, portanto, ensinar a população a olhar para as causas dos problemas sociais, mais do que para seus efeitos ou como resolvê-los, a fim de contribuir para desmontar essa lógica posta e promover a equidade na sociedade.

“Criar uma sociedade com consciência crítica, politicamente participativa, verdadeiramente democrática, exige trabalho de educação política, ou seja, exige método Paulo Freire de educação popular”, disse Frei Betto em entrevista ao Educação e Território. Confira:

Educação e Território: Recentemente, em um artigo para a Folha de S.Paulo, o senhor argumentou que ao lado do combate à fome, da proteção socioambiental e da redução da desigualdade social, é preciso incluir a educação política, cidadã e participativa. Por que essas dimensões são interdependentes? De que maneira uma educação política pode contribuir para o sucesso dos demais direitos?

Frei Betto: Os últimos quatro anos e agora estes atos golpistas, terroristas, em Brasília, comprovam que há uma deseducação política que vem ocorrendo há séculos, promovida pela elite brasileira, durante 24 horas ao dia, junto aos grandes veículos de comunicação, o entretenimento.

Todo esse processo se trata de adequação das pessoas ao sistema capitalista, à sociedade consumista. Criar uma sociedade com consciência crítica, politicamente participativa, verdadeiramente democrática, exige trabalho de educação política, ou seja, exige método Paulo Freire de educação popular.

É fundamental que o governo consiga se valer da enorme capilaridade que ele tem junto a todo o conjunto da população brasileira para promover essa formação.

“Criar uma sociedade com consciência crítica, politicamente participativa, verdadeiramente democrática, exige trabalho de educação política”

São cerca de 400 mil agentes comunitários de Saúde, por exemplo. Imagina se essas pessoas fossem capacitadas para além de realizar o atendimento protocolar e assistencial, e fossem preparadas para elucidar as causas da doença, o que tem a ver com a pobreza, por que existe pobreza e miséria, ou seja, o pensamento dialético, que é o pensamento libertador, vai às causas, enquanto o analógica, que é o capitalista, só fala dos efeitos. Fala da fome e do que vamos fazer para resolver isso, não do que causou.

Durante a pandemia, o Jornal Nacional fez um quadro que mostrava empresas doando cestas básicas, mas não levantava a causa: Por que é preciso distribuir cestas básicas? Por que há tamanha desigualdade social? 

Esse é o trabalho de educação política que a máquina do governo pode fazer desde a escola, porque é o Ministério da Educação (MEC) que indica os livros didáticos, até os agentes do IBGE que vão levantar qual é o número da população brasileira e como ela vive.

E&T: Para além da garantia de direitos, uma educação política, cidadã e participativa também é fundamental para fortalecer a democracia, como preconizava Anísio Teixeira. Como esse processo acontece e qual sua relevância para o Brasil de hoje? 

FB: Ele acontece na medida em que a escola se inspira no método Paulo Freire. A escola tem a obrigação de comemorar as efemérides brasileiras, como o Dia do Indígena, Dia do Negro, Dia da Mulher. Imagina isso dentro de uma dimensão do feminicídio, do racismo, da questão da demarcação das terras indígenas, a preservação ambiental e por aí vai. 

Acabo de publicar um livro chamado “O Estranho Dia de Zacarias” em que trabalho a questão de que no Brasil não houve descobrimento, houve invasão, em uma linguagem que a criança entenda. Precisa inverter toda essa ótica elitista que é adaptada, porque como dizia o velho Marx, a ideologia de uma sociedade tende a ser a ideologia da classe que domina essa sociedade e evidentemente que somos dominados por uma elite capitalista que quer naturalizar a desigualdade social e sempre perenizar a acumulação privada da riqueza. É contra isso que temos que remar.

Deveria ser uma atividade transversal em todos os ministérios cuidar dessa educação política. Vamos ter em breve o 31 de março, que [o ex-presidente] Jair Bolsonaro comemorava isso como reforço da democracia, como um simples movimento político que veio salvar o Brasil do comunismo. Temos que revelar a verdadeira face do 31 de março: um golpe que torturou, assassinou, fez desaparecer e obrigou a exilar milhões de brasileiros. Olhar o mundo pela ótica do oprimido é fundamental na educação política. 

Educação política
Estudantes durante ocupação em escolas em 2015, momento de bastante efervescência e discussão  política na educação pública. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Há um setor prioritário para realizar esse trabalho, que é com as classes populares, porque elas são mais sensíveis, vivem na pele as consequências da opressão. É mais difícil trabalhar com a elite e a classe média que cobiça passar a ser milionária, sem se dar conta de que está sempre tentando subir uma rampa ensaboada, porque o processo capitalista é de seletividade, é muito dinheiro nas mãos de poucos. Mas essa ilusão faz com que muita gente ainda abrace o capitalismo como não só o melhor sistema, mas como sinônimo de democracia, o que é uma aberração.

E&T: É importante definir o que é educação política, uma vez que alguns setores da sociedade se apropriaram do conceito e dizem tratar-se de “doutrinação” e defendem uma escola sem partido. Assim, o que caracteriza um bom trabalho de educação política, cidadã e participativa? 

FB: Não existe neutralidade política, não existe nenhuma escola politicamente neutra, e nenhuma pessoa neutra. A pessoa pode se julgar neutra, mas ela não é, porque em todas as nossas escolhas legitimamos ou questionamos o sistema em que vivemos.

A política não é tudo, mas está em tudo, desde a qualidade do café da manhã que tomamos, à possibilidade ou não de tirar férias, ter ou não uma aposentadoria razoável, segura, tudo isso depende da política. 

Nós, brasileiros, somos todos ministeriados do momento em que nascemos até morrermos. O Ministério da Justiça tem uma cópia do nosso atestado de nascimento e nosso atestado de óbito também estará lá. Passamos no Ministério da Saúde com as vacinas na infância, passamos pelo Ministério da Educação com a escolarização, passamos pelo Ministério do Trabalho com a Carteira de Trabalho, passamos pelo Ministério da Previdência com a aposentadoria. Isso significa que a qualidade do nosso existir depende da política do nosso país.

A escola primeiro deve se assumir como um núcleo político, não partidário – a escola não pode ser partidária. Durante o período eleitoral, por exemplo, a escola pública deveria chamar para um debate todos os candidatos de todos os partidos. Se algum deles se recusar a comparecer, que seja dito na assembleia escolar que o candidato de tal partido foi convidado, mas não deu satisfações ou não vai poderá vir, para que ninguém acuse a escola de partidarismo.

“A escola primeiro deve se assumir como um núcleo político, não partidário – a escola não pode ser partidária”

Isso enrique muito, porque faz um debate que vai significar uma grande aula de democracia, de diversidade de opiniões, e isso é muito importante na educação dos alunos. 

Creio que a escola tem que assumir seu caráter político, não pode fugir disso, e que precisamos varrer todo esse ranço elitista, versão do opressor, dos nossos materiais didáticos e da cultura brasileira.

E&T: Por que é papel das escolas promover essa educação política?

FB: Mais importante do que instruir é formar cidadãos e pessoas felizes. A escola tem esse papel junto com a família de formar pessoas felizes e com consciência de cidadania. 

A escola pode muito. Ela pode, por exemplo, fazer um enlace com o assentamento ou acampamento de Sem Terra mais próximo, de tal maneira que os alunos conheçam a questão fundiária no Brasil, o desamparo dos Sem Terra, por que há latifúndio no país, por que há gente padecendo em beira de estrada. Pode articular-se à favela mais próxima e estudar por que existe a favela, por que vivem em situação tão precária, por que falta saneamento básico. A escola não pode ficar de costas para o contexto social em que se insere, pelo contrário, ela tem que estar de portas e corações abertos.

Quando estive à frente do programa Fome Zero, criei um projeto que chamava Escolas Irmãs, em que conectávamos uma escola de Brasília, de classe média, com uma escola indígena na Amazônia. Os alunos trocavam cartas e nas férias os alunos de lá vinham aqui e os daqui iam lá.

O fato de uma família de classe média de Brasília hospedar durante dez dias um grupo de jovens indígenas e aquela nação indígena receber um grupo de jovens de classe média de Brasília… imagina a cabeça das pessoas o que muda. Era uma experiência muito rica que foi paralisada, infelizmente, porque não se deu suficiente apoio e importância. 

“A escola não pode ficar de costas para o contexto social, pelo contrário, ela tem que estar de portas e corações abertos”

No Fome Zero eu também visitava muitas escolas e perguntava como é a merenda. Em geral, era precária, mas o pior é que em muitas escolas há lanchonetes que vendem produtos com muita gordura saturada e açúcar, então não há trabalho de educação nutricional. 

Uma criança que planta um alface na horta da escola, no dia em que ela colhe, a autoestima dela bate lá no teto e acabou o preconceito à verdura. Ela passa a saborear, se sente orgulhosa daquilo. Isso é pedagogia e é possível, mas é preciso ter criatividade e ousadia.

E&T: Para os professores e gestores que têm medo de perseguição das famílias e da comunidade, ou que não sabem por onde começar, alguma orientação?

FB: Eles devem se manter unidos. É muito importante os professores e professoras valorizarem seus sindicatos e torná-los combativos, porque a união faz a força. É muito difícil uma pessoa sozinha enfrentar a resistência de famílias muito conservadoras e até neofascistas, então precisa se unir, formar grupos, sobretudo buscar aliados entre os pais dos alunos.

Além disso, toda escola deveria ter um projeto estratégico pedagógico. Assim, quando os responsáveis forem matricular a criança na escola, a direção deixa claro que aqui formamos a cidadania, explicamos as causas da pobreza, traduzimos em miúdos por que há desigualdade social. Aqui se fala de fome, de guerra e imperialismo. Se quiserem outra escola, que não promova a cidadania, mas o consumo, eles têm o direito de procurar outra unidade.

*Entrevista por Ingrid Matuoka 

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