publicado dia 20 de setembro de 2018
Constituição de 88 e a escola democrática como horizonte
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 20 de setembro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
No final de 2015, o movimento secundarista se apropriou de escolas públicas em Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo e outros estados na luta por uma escola cidadã, tão defendida por educadores como Paulo Freire. Em articulação, os estudantes então transformaram suas escolas em espaços vivos de aprendizagem e gestão democrática.
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Pode-se dizer que o desejo por uma escola com estas características é tão jovem quanto quem organizou o movimento estudantil em questão. Redigido em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova é um dos primeiros marcos no entendimento da escola enquanto espaço de cidadania.
Nele, educadores e pensadores, como Anísio Teixeira e Cecília Meireles, questionavam não somente a falta de um projeto de educação genuinamente brasileiro – que respeitasse a amálgama de povos e saberes que compunham o Brasil – como também a defesa de uma escola pública, laica, gratuita e obrigatória como instrumento primordial democrático.
Em um país assentado em profundas desigualdades sociais e territoriais, este ideário de escola demorou a se constituir legalmente, como explica Mariana Vilella, advogada e mestra em educação pela PUC-SP.
“Desde o princípio da formação da nossa escola, o embate foi sobre qual projeto de país queríamos. A Constituição de 1934, influenciada pelo Manifesto, foi a que começou a prever objetivos e diretrizes para a efetivação dessa educação, mas ainda de forma limitada. Já a de 1946 inicia uma ampla discussão sobre a importância da escola pública.”
A aposta na educação pública como espaço de formação intelectual e cidadã começa, de fato, no processo de redemocratização do Brasil, com a Constituição de 1988, que prevê a educação enquanto “direito de todos e dever do Estado e da família, onde será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Essa reportagem integra o especial 30 anos da Constituição Cidadã – série de matérias que analisa os trinta anos da Constituição Federal de 1988 e a relaciona com a manutenção da democracia brasileira, especialmente, nas áreas de educação, território e participação social.
A construção deste Artigo 205, bem como de todos os outros artigos constituintes, foi resultado de uma conciliação entre pontos de vista diversos da sociedade civil e dos poderes vigentes na época da sua promulgação. Nomes emblemáticos como o do antropólogo Darcy Ribeiro – na época senador – participaram dessa articulação.
“A Constituição de 88 escreve que a educação serve para formar para a cidadania, para o trabalho e para o pleno desenvolvimento da pessoa. Ali, há uma concepção importante de educação integral”, define Mariana.
“Diferentemente das outras constituições, ela é inédita em trazer mecanismos de vinculação, tanto de diretrizes quanto de orçamento, para garantir o que se entendeu – naquele momento de acordo político – como educação pública enquanto projeto de país”, acrescenta.
A Constituição de 88 preparou terreno também para outras importantes conquistas legais: a construção de um Sistema Nacional de Educação, a Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional (LDB), de 1996, e o Plano Nacional de Educação (PNE), emenda constitucional aprovada em 2014.
O que é o Sistema Nacional de Educação?
É a definição de diretrizes, metas, recursos e estratégias de manutenção e desenvolvimento direcionados à garantia do direito à educação em ambos os níveis (educação básica e superior), considerando todas as etapas e modalidades educativas. Remete, sobretudo, à garantia da universalização da educação básica obrigatória dos 4 aos 17 anos, em regime de colaboração. Está previsto no artigo 214 da Constituição.
O PNE prevê, entre outras 19 metas para universalização da educação brasileira, a destinação de um percentual do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação. “A Constituição abriu o precedente da vinculação orçamentária obrigatória de estados, municípios e governo federal, cada um no seu percentual do quanto deve ser aplicado em educação. Isso foi uma conquista especialmente importante no Brasil, porque sabemos o quão ameaçados estão os recursos da educação quando não vinculados constitucionalmente e o quanto já teríamos retrocedido”, defende Mariana.
Chama a atenção da advogada, no entanto, que no aniversário de 30 anos da Constituição existam propostas que inviabilizam o PNE, como a EC 95, que prevê um congelamento de gastos públicos por 20 anos nas áreas sociais. “Ao mesmo tempo que houve uma grande luta para se aumentar a destinação de recursos no PNE, se aprovou uma emenda que o torna inviável.”
Ainda que haja um arcabouço legislativo progressista e um exponencial avanço no acesso ao Ensino Fundamental no Brasil, isso não significa que a escola tenha se universalizado e nem que funcione enquanto espaço de formação plural e cidadã.
Helena Singer: “A escola tem a potência de territorializar os direitos, de fomentar a participação social e de formar para a vida em democracia”
“A escola pública é uma conquista importante para o direito à educação e para a democracia como um todo porque efetivamente está disseminada pelo país, e é o único equipamento público, além da intervenção policial, que chega em todos os cantos”, define a educadora e socióloga Helena Singer. “Esse equipamento tem a potência de territorializar os direitos, de fomentar a participação social e de formar para a vida em democracia. Mas é uma potência não realizada.”
Isto porque, junto ao aumento da escolarização da população, vieram retrocessos como a própria EC 95. “Não é que a escola vá resolver todas as mazelas sociais, mas poderia sim formar pessoas para a defesa da democracia e para a luta de seus direitos se distribuída por todo território e com corpo interdisciplinar e equipamentos”, analisa a socióloga.
Para Mariana, essa escola que ainda patina para se considerar democrática é espelho de uma democracia recente e instável. “A Constituição, por ser nova e muito pródiga em trazer mecanismos de participação, requer também um olhar de paciência e compreensão. Ela não se efetiva sozinha. A escola é prova disso. Não há na escola pública uma geração inteira de alunos, professores, gestores formados em democracia. Grande parte do corpo docente foi escolarizado na ditadura. A escola plural, laica, que tem a diversidade como parâmetro de qualidade, ainda não aconteceu.”
A depender de alguns projetos de lei como o Escola sem Partido corre o risco de nunca se efetivar. Para Helena, o projeto abre prognósticos perniciosos para se desconsiderar a escola enquanto bem público, que tem o dever de ampliar o que é discutido na esfera do privado entre as famílias.
Mariana endossa a argumentação: “Dificilmente a família será plural o suficiente para ter acesso e compartilhar a cultura afrodescendente, a cultura indígena, a discussão de gênero, as diversidades mil da sociedade brasileira e que cabe a educação apresentar, trabalhando a tolerância e a alteridade”, complementa.
Para que a escola democrática não seja extirpada antes de consumada, Helena arremata: “Por si mesma, nem a Constituição, nem a escola garantem nada. Elas devem ser apropriadas pela população, apropriadas pelas organizações sociais, pelos agentes da educação para que efetivamente tenham o sentido que a gente quer, que é a promoção da democracia, diversidade e respeito.”
Nesta perspectiva, a mensagem deixada pelo movimento secundarista há três anos nunca foi tão atual. O próprio exercício da gestão escolar serve para se pensar a democracia para além de um regime político distante, mas como algo que se pratica no cotidiano.
“O movimento deixou expressos dois direitos bem caros à Constituição. O da liberdade de manifestação e o da gestão democrática. A escola é nossa. Não é um prédio do Estado. Conforme criamos um descrédito na escola pública, ela se torna somente um edifício. Mas Paulo Freire já preconizava: a escola é feita de gente”, finaliza Mariana.