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publicado dia 27 de agosto de 2024

Como erradicar a violência letal contra crianças e adolescentes negros no Brasil?

Reportagem:

🗒️Resumo: O relatório “Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil”, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), aponta que mais de 15 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violência no país nos últimos três anos. A maior parte das vítimas têm cor e gênero: adolescentes e jovens negros. Na reportagem, especialistas apontam as raízes históricas da violência contra a juventude negra e os caminhos para enfrentá-la. 

Em agosto de 2023, Thiago Menezes, um adolescente negro de 13 anos, foi assassinado a tiros na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro (RJ). Os disparos foram feitos por policiais durante uma operação na região. No mesmo ano, Carlos Gabriel de Souza, jovem negro de 18 anos, foi morto com tiros nas costas também durante ação policial, no Distrito Federal.

As histórias recentes ilustram o cenário de violência letal contra crianças e adolescentes negros no Brasil: ao menos 15 mil foram mortos de forma violenta no país nos últimos três anos. A maioria (9,3 mil) das vítimas eram meninos negros. Só no ano passado, o país registrou média de 13,5 mortes por dia. 

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Os dados são do relatório “Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil”, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Divulgado em agosto de 2024, o estudo também foi o centro de um debate realizado no Senado Federal em 23/08.

“A questão racial é determinante desde o nascimento da criança. As crianças negras são mais vítimas da violência letal e isso só aumenta ao longo da vida. Até chegar ao desfecho da morte, há um ciclo de exclusões pelo racismo e pela vulnerabilidade desde a primeira infância, com a exclusão social e a taxa de abandono”, aponta Ana Carolina Fonseca, oficial de Educação e Proteção à Criança do UNICEF no Brasil. 

Violência policial, racismo e juventudes

Protesto contra o assassinato de adolescentes e jovens negros
Familiares de vítimas de violência policial protestam contra as operações letais no Rio de Janeiro, em 2023. A arma de fogo está presente em 86,3% dos casos de morte de adolescentes.

A arma de fogo é o principal instrumento utilizado na morte de adolescentes de 15 a 19 anos, presente em 86,3% dos casos. “O controle bélico dos civis é um ponto essencial da questão”, afirma Lucas Lopes, secretário executivo da Coalizão Brasileira pelo fim da Violência contra Crianças e Adolescentes.

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Contudo, a letalidade policial é a segunda causa de mortes violentas de adolescentes, atrás apenas do homicídio doloso. Cerca de 16% das mortes violentas de crianças e adolescentes foram por ação das forças estatais de segurança. Em 2023, 1 a cada 5 crianças e adolescentes foram mortos pela polícia.

Violência contra meninas
Apesar da prevalência de vítimas do sexo masculino, isso não significa que as meninas estejam protegidas. As meninas de 15 a 19 anos são mais vítimas de morte violenta intencional, como feminicídio, latrocínio e por intervenção policial, do que todos os meninos de até 14 anos. 

A pesquisa também mostra que, nos últimos três anos, a maior parte das vítimas de mortes violentas no Brasil tinha entre 15 e os 19 anos (91,6%), eram pretos ou pardos (82,9%) e do sexo masculino (90%).

Dados do relatório mostram que um menino negro de até 19 anos no Brasil tem 21 vezes mais chances de ser morto do que uma menina branca na mesma faixa etária. 

“Partimos de um problema intrínseco à nossa História, o racismo, e vamos para um Estado que escolhe produzir, reproduzir e aprofundar esse racismo, o que se concretiza, por exemplo, na ação dos agentes de segurança pública, que operam a partir de uma conduta que se altera diante de um fato físico, que é a cor da pele da pessoa que está diante dela”, explica Lucas.

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Além dos corpos negros, os jovens estão entre os principais alvos. Enquanto a taxa de letalidade provocada pelas polícias entre habitantes com idade superior a 19 anos é de 2,8 mortes por 100 mil, no grupo etário de 15 a 19 anos a taxa chega a 6 mortes por 100 mil habitantes, 113,9% superior à taxa verificada entre adultos.

“O racismo estrutural faz com que exista uma interação violenta da polícia principalmente com adolescentes e que vitima uma parte considerável dessa população em nosso país”, analisa Ana Carolina, do UNICEG.

“O racismo estrutural faz com que exista uma interação violenta da polícia principalmente com adolescentes”, diz Ana Carolina Fonseca, do Unicef 

Parte deste problema também se deve à concepção que muitos agentes policiais têm dos jovens, encarados como “menores infratores e transgressores”, uma noção anterior à do atual Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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“Diante de sua trajetória de vida e de falta de oportunidades, o adolescente pode fazer escolhas que entram em conflito com a lei e pode-se atribuir um ato infracional a ele. Mas, para muitos policiais, a proteção integral e os direitos desse adolescente não estão presentes”, diz Lucas.

Raízes históricas da violência 

Ato contra o genocídio da juventude negra
Violência contra juventude negra tem raízes na escravidão, explica a pesquisadora Joyce Amâncio. Na foto, protesto contra o assassinato de cinco jovens por policiais no Rio de Janeiro (RJ), em 2015.

Os dados revelados pelo relatório evidenciam um problema com raízes no período escravocrata do país, que perdurou por pelo menos 388 anos, até a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

Ao longo desses pouco mais de 136 anos que separam a abolição da escravização no Brasil da atualidade, a população negra sofreu com diferentes formas de exclusão, explica a professora Joyce Amâncio, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutora em Sociologia, a pesquisadora é autora da tese “Quando a polícia chega para matar, nós estamos praticamente mortos”, sobre o genocídio da população negra no contexto do Recife (PE).

“A atividade policial e outros indicadores da pesquisa continuam a revelar as raízes que nos levam a pensar no período colonial do Brasil e em como a ordem social se estabelece. Após a escravização, as pessoas negras não foram integradas à sociedade. Essa população foi colocada à margem , sem direito a políticas públicas como saúde, moradia, educação e acesso ao mercado de trabalho. Além disso, ficou vulnerável a todo tipo de violência, como a física a partir de intervenção policial”, afirma.

Como enfrentar a violência letal contra a juventude negra?

Silhuetas de corpos em protesto contra homicídios de jovens negros
Enfrentamento da letalidade passa pelo reconhecimento do racismo estrutural, controle de armamento e do uso da força por agentes da Segurança Pública.

As medidas apresentadas pelo Estado brasileiro para reduzir a letalidade de jovens negros são muito recentes, a exemplo do Plano Juventude Negra Viva (PJVN), anunciado pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR) em março de 2024.

Com 217 ações e 43 metas específicas, trata-se de uma política pública intersetorial, executada por 18 ministérios e liderada pelo Ministério da Igualdade Racial. Seu principal objetivo é garantir o direito à vida para a juventude negra, bem como a redução das desigualdades e o combate ao racismo estrutural. 

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Outra política liderada pelo governo federal é a inclusão da Igualdade Racial como 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável  na Agenda 2030 da ONU. Anunciada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em discurso da abertura da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em Nova York, em setembro de 2023, a criação da 18º ODS tem entre suas 10 metas preliminares eliminar todas as formas de violência contra as populações indígenas e afrodescendentes, em particular o homicídio das juventudes, o feminicídio, a homofobia e a transfobia.

“Políticas públicas mais direcionadas conseguem fortalecer ações para uma juventude que precisa de suporte diante das fragilidades sociais. O Plano Juventude Negra Viva, por exemplo, é um programa que tenta integrar o jovem na sociedade a partir de oportunidades de formação e de trabalho, possibilidades que muitas vezes não são apresentadas a ele ao longo da vida”, considera Joyce Amâncio.

Violência letal contra crianças e adolescentes no Brasil
A formação dos agentes de segurança precisa incluir respeito aos Direitos Humanos, defende Lucas Lopes.

“Políticas públicas mais direcionadas conseguem fortalecer ações para uma juventude que precisa de suporte diante das fragilidades sociais”, defende Joyce Amâncio. 

Especialistas também apontam que para enfrentar o cenário da letalidade policial é necessário ter como foco a formação dos agentes de segurança pública (leia mais recomendações ao final da reportagem). 

“A abordagem deve ser baseada em Direitos Humanos e eles precisam ser capazes de evitar a morte de crianças e adolescentes”, explica Lucas Lopes.

Usar dados e inteligência nas operações policiais para identificar horários, áreas e dias onde há maior movimentação de pessoas, reconsiderar os tipos de armas e munições utilizadas, bem como fortalecer a atuação do Judiciário, da Assistência Social e do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), para que haja mais celeridade e nenhum tipo de racismo nas decisões, também são pilares essenciais no combate à violência letal contra as infâncias e adolescências. 

“Outro ponto é o uso das câmeras policiais com gravação contínua e checagem aleatória. Assim, abordagens violentas não denunciadas acabam sendo identificadas e ajuda a coibir grupos que operam dentro das polícias com suas próprias regras”, sugere Lucas.

Recomendações para o enfrentamento da violência letal contra crianças e adolescentes 

O Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam medidas urgentes para enfrentar e mitigar o cenário de violência contra crianças e adolescentes negros no Brasil. Confira: 

Não justificar nem banalizar a violência
Cada vida importa, e cada criança e adolescente deve ser protegido de todas as formas de violências. Não se pode normalizar as mortes violentas e a violência sexual, é preciso enfrentar esses crimes. 

Controle do uso da força pelas polícias
Uma política de redução de homicídios com foco em crianças e adolescentes precisa, em vários estados, necessariamente considerar o controle do uso da força das polícias como uma variável chave para seu sucesso. Há evidências robustas do impacto do uso das câmeras policiais, associado a protocolos e fluxos adequados, como a gravação contínua, na redução dos homicídios de adolescentes. É fundamental trabalhar com as polícias protocolos, treinamentos e práticas voltadas à proteção de meninas e meninos.

Controle do uso de armamento bélico por civis
Para aqueles que possuem entre 15 e 19 anos, a arma de fogo é o principal instrumento utilizado para retirar a vida de um adolescente. Também não é desprezível o número de crianças que são mortas por arma de fogo de modo intencional dentro das suas residências. Esse cenário reforça a importância do controle do uso de armamento bélico por civis.

Enfrentar o racismo estrutural
É urgente pautar o racismo estrutural nos diálogos com o sistema de proteção contra crianças e adolescentes, notadamente junto ao sistema de justiça e segurança pública. Enfrentar o racismo estrutural é parte fundamental do esforço de não justificar e não banalizar a violência e do controle do uso da força pelas polícias junto à população negra.

Capacitar os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes
Eles são fundamentais para prevenir, identificar e responder às violências contra a infância e a adolescência, em todas as áreas. É caso, por exemplo, dos profissionais de segurança pública, que podem ser fortalecidos para uma abordagem policial mais humanizada. Cabe ressaltar, ainda, o papel da educação na identificação e comunicação de violências.

Ampliar o acesso de crianças e adolescentes sobre direito à proteção
Para prevenir e responder à violência, é importante garantir que crianças e adolescentes tenham acesso à informação, conheçam seus direitos, saibam identificar diferentes formas de violência e pedir ajuda.

Melhorar os registros, investir no monitoramento e na geração de evidências
É necessário avançar no registro de informações sobre os casos, de forma que seja possível avançar na compreensão da relação entre autores e vítimas e na compreensão da presença de outros marcadores, como a deficiência. Também é preciso avançar no monitoramento ágil e constante das informações, de forma que seja possível identificar mudanças de tendências e investir em intervenções de forma mais ágil.

Fonte: Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2021-2023), Unicef e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

* Colaborou Ingrid Matuoka

Juventudes: meninos negros são as maiores vítimas de mortes violentas no Brasil

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