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publicado dia 31 de março de 2021

Como a pandemia afeta a cultura popular no Brasil?

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Odília Nunes é uma brincante. Sua arte palhaça e de compridas bonecas alegra as pessoas que vivem em Minadouro, região do sertão pernambucano. Nos seus espetáculos, a rua é palco e a aglomeração uma resposta de apreço por esta manifestação de cultura popular em um território que, como muitos outros do país, conta com poucas ou inexistentes políticas públicas de cultura. 

A pandemia de Covid-19 alterou radicalmente o cotidiano de Odília e de outros representantes da cultura popular no Brasil: “Ser brincante é ser agente de alegria, e antes de ser alegria do outro, é uma alegria para mim. Então ter sido privada de estar na rua, de fazer meu teatro, de poder viver minhas figuras junto com as pessoas é muito conflituoso.”

Somente em dezembro de 2020, dez meses depois do início da pandemia, que a artista teve acesso a primeira parcela do repasse da Lei Aldir Blanc (Lei Nº 14.017/2020), decreto federal que destinou aos municípios e estados R$3 bilhões para garantir a sobrevivência de artistas e espaços culturais, duramente atingidos com o isolamento social. 

A obtenção do benefício não foi simples, como complementa Odília: “Nós, enquanto classe abandonada, que está na míngua, tivemos que enfrentar um sistema burocrático doente, fazer comprovações, quando a coisa poderia ser mais simples, fazendo jus a uma lei de caráter emergencial.”

A rotina da brincante Odília Nunes sempre exigiu presença, público e contato próximo e afetivo. Sua jornada foi muito alterada por conta da pandemia / Crédito; instagram de Odília Nunes

O tardio auxílio dá sobrevida ao setor cultural brasileiro, que nos últimos anos amarga diminuição de orçamento e o fim do próprio Ministério da Cultura (MinC), extinto no governo de Jair Bolsonaro (Sem partido) e absorvido pelo Ministério da Cidadania. 

Para as culturas populares, que já enfrentam uma dificuldade de enquadramento nas políticas públicas, o desmonte da pasta é ainda mais grave: O antigo MinC era responsável pelo Plano Setorial de Cultura Popular, que voltava recursos para manifestações populares. O debate desses sujeitos e suas produções como patrimônio imaterial é o que tem ganhado força, mas ainda é uma discussão nova, como argumenta Diego Dionísio, produtor cultural e vice-presidente da Comissão Paulista de Folclore.

“É preciso ter políticas setoriais, porque não dá pra colocar cultura popular ao lado de teatro, cinema, e outras expressões. A cultura popular nem sempre é a mais alegre, a mais afinada, a mais bonita. Manifestações como Congada, Folia de Reis, ou a feitura de bolinho caipira de Jacareí (SP), não estão necessariamente organizadas juridicamente.”

“Antes da pandemia, já tinha essa dificuldade de entender que as culturas populares têm um método e metodologia de participar diferente de um balé clássico. O senhor que toca uma viola caipira não escreverá um release. A política pública tem que ter sensibilidade para reconhecer que é preciso ter metodologia mais humana para as culturas populares. Que este senhor de rabeca possa se inscrever no edital postando um vídeo, por exemplo”, conclui Diego. 

instrumentos artesanais joão pife
Políticas públicas de cultura devem olhar com gentileza e maleabilidade para as práticas culturas tradicionais. Na foto, mestre João do Pife, que faz instrumentos artesanais em Caruaru (PE)

Territórios de cultura popular vivem adversidades  durante a pandemia

Culturas populares pressupõem o encontro e a troca entre diferentes atores do território e fora dele. É assim que a mestra Makota Kidoiale atua mobilizando quilombos em Belo Horizonte (MG), ou que José Bonifácio de Luz comanda as congadas em Contagem (MG). 

Os dois fazem parte do grupo de 60 mestres e mestras que compõem o corpo docente do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O programa formado em 2015, aproxima a academia de territórios tradicionais, promovendo aulas presenciais tanto na universidade quanto nos locais dos detentores de cultura. 

Depois de mais de um ano da pandemia, já é possível perceber alguns entraves comuns, como explica César Guimarães, coordenador do programa: “Várias dessas comunidades já viviam em situação de vulnerabilidade, e algumas até ameaçadas, como territórios indígenas e quilombolas. Foram as comunidades que se auto organizam para manter o isolamento social, as cestas básicas, as medidas de profilaxia”.

Com a impossibilidade de aulas presenciais, o programa se mobilizou para migrar as aulas para o ambiente digital, inaugurando o curso Escolas da Terra. Mas o acesso à internet, que já era uma dificuldade , se fez presente. “Antes mesmo da pandemia já sabíamos da dificuldade de acesso. Foi preciso mobilização das pessoas. Os mestres tinham que sair para a cidade mais próxima buscando conexão. O que fizemos foi improvisar, comprar um roteador, fazer uma recarga de celular, mas falta uma política pública de acesso à internet.” 

Diego acompanhou de perto os desafios de conexão enfrentados por estes atores e complementa: “Saindo das grandes cidades, nem todo mundo tem internet. Por exemplo, em Iguape (cidade no litoral sul de São Paulo cujo conjunto arquitetônico é declarado Patrimônio Imaterial pelo IPHAN), a internet é por satélite. Se chove, não tem mais conexão. As políticas de tecnologia precisam ser acessíveis para essas populações em processo de (re)existência.” 

Para além das dificuldades tecnológicas, o produtor cultural aponta para a vulnerabilidade sanitária dessas populações durante a pandemia: “Posso relacionar mais de 10 mestres de primeira importância para a cultura de São Paulo que partiram porque não tiveram atenção da saúde na pandemia. Estas pessoas são patrimônio imaterial e um plano de vacinação organizado tinha que olhar para elas, para as que estão em comunidades indígenas, quilombolas e também para culturas caiçaras, ribeirinhas.” 

Muitos mestres, como a rezadeira Dona Tereza Amarília Flores, de território Kaiowa no Mato Grosso do Sul, vivem em territórios já vulneráveis, como aldeias indígenas / Crédito: Programa Saberes Tradicionais UFGM

O que a cultura popular ensina durante este período difícil

Ainda que enfrentando desafios nos seus territórios, mestres e mestras de cultura popular continuam a produzir cultura e saberes, como atesta César: 

“É importante neste momento dizer da força que veio das comunidades. Os mestres nos ofereciam cantos, rezas, mencionaram como eles possuem uma longa história de resistência e sobrevivência. Em nenhum momento se viram abatidos. Era sempre uma palavra de força, receitas de plantas medicinais e ensinamentos sobre outras formas e cosmologias para encarar o mundo.” 

Na pesquisa e escuta que o Dionísio faz desde o começo da pandemia, ele percebe que por conta do isolamento social, a juventude tem assumido um papel importante na manutenção dessas culturas. Jovens têm se aproximado dos avós e dos mais velhos para fazer a ponte entre eles e o acesso à internet, além de dar continuidade às tradições de sua família. 

Outra característica das manifestações de cultura popular que o folclorista chama a atenção é seu hábito de compartilhar. “A cultura popular é essencialmente uma cultura de partilha. Quando começou a pandemia, práticas de artesanato começaram a ser compartilhadas em unidades familiares que antes não o faziam; festas juninas aconteceram virtualmente, com pessoas compartilhando receitas e fazendo comemorações em suas casas.”

Essa resiliência se expressa também no fazer artístico da bonequeira Odília Nunes, que mesmo tendo enfrentado impasses , está montando seu próximo espetáculo: “Claro que existe a frustração por não poder estar na rua, junto das pessoas, por não poder levar alegria, sentir o cheiro delas. Mas ao mesmo tempo tenho a segurança de estar acobertada por essa grandeza de ser brincante, de entender que a vida e até o medo pode ser mais leve, simplesmente por existir dentro de mim um prazer de brincar pelo simples prazer de brincar.” 

 

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