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publicado dia 19 de janeiro de 2024

Como a apreensão de adolescentes sem flagrante impacta o direito à cidade?

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Resumo: A apreensão de adolescentes sem flagrante por meio da Operação Verão no Rio de Janeiro (RJ) ganhou um novo desdobramento, com um pedido da Procuradoria Geral da República (PGR) para o Supremo Tribunal Federal (STF) proibir essa atividade por parte da prefeitura e da Polícia Militar. Elisa Cruz, defensora pública do estado do Rio de Janeiro, doutora em Direito e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), fala sobre os impactos no direito à cidade e o papel do Estado em proteger crianças e adolescentes.

O direito de ir e vir de adolescentes negros e moradores das periferias da cidade do Rio de Janeiro (RJ) pode estar em risco com a Operação Verão, intensificada desde o fim de 2023 pela prefeitura e a Polícia Militar. A ação entrou na mira do Ministério Público Federal (MPF) devido a realização de “apreensões preventivas”, sem flagrante, de menores de idade, sob a justificativa de conter roubos e arrastões nas praias.

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Em dezembro de 2023, a 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital chegou a proibir esse tipo de apreensão sem que haja flagrante de algum crime, mas a decisão foi suspensa ainda no mesmo mês pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

O impasse entre os órgãos de justiça ganhou um novo desdobramento nas últimas semanas. No dia 12/1, a Procuradoria Geral da República (PGR) protocolou um pedido no Supremo Tribunal Federal (STF) para que a proibição de apreensões de menores sem  flagrante seja retomada.

O pedido menciona a existência de comunicação do Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio de Janeiro e da Central de Recepção Adhemar Ferreira de Oliveira – Central Carioca sobre apreensões de adolescentes que seriam feitas com o fim de interditar ônibus e impedir que desacompanhados dos pais ou responsáveis cheguem às praias.

Policial militar aborda crianças e adolescentes negros em ônibus do Rio de Janeiro.

A apreensão de menores de idade sem flagrante contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e coloca em risco os direitos de crianças e adolescentes. Já no caso em que há o flagrante, a lei determina que os adolescentes devem ser encaminhados à autoridade policial competente.

O Governo do Estado de São Paulo também iniciou em dezembro uma Operação Verão, mas não há informações públicas sobre a apreensão de menores de idade sem flagrante. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) diz que o policiamento foi intensificado em 16 municípios do litoral sul e norte.

Segundo a pasta, a operação já resultou na prisão de 305 pessoas, desses 19 adolescentes infratores foram apreendidos e 129 foragidos da Justiça capturados. A Secretaria de Estado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro também foi questionada sobre o número de apreensões e não se manifestou.

Elisa Cruz, defensora pública do estado do Rio de Janeiro, doutora em Direito e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), contou em entrevista ao Educação e Território, os impactos dessa operação para os adolescentes negros e moradores das periferias.

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“Existem impactos individuais, mas a gente precisa pensar nos impactos sociais e coletivos do afastamento cada vez maior de um pertencimento, coletividade, de uma ideia de que se pode colaborar para uma construção social maior e que inclua a cidade como um todo. O que fica é uma eterna sensação de ser indesejável”, afirma.

De acordo com Elisa, as diretrizes do ECA nunca foram efetivamente aplicadas no Brasil e um dos problemas que a capital fluminense, em especial, vive, é o avanço da  criminalização da infância.

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“Nos acostumamos a associar segurança pública ao aumento de crimes e de presos. O que percebemos é o avanço de uma nova fronteira: a criminalização da infância. E o grande problema desse avanço sobre a infância e a adolescência é que inverte a lógica do ECA”, observa.

A defensora pública e professora da FGV também aponta que a apreensão de jovens sem identificação flerta com a chamada Lei da Vadiagem. A contravenção, estabelecida pelo decreto 3.699 de 1941, classificava como vadiagem “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”.

Elisa Cruz também apontou o papel do Estado na proteção de jovens e como ações como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) poderiam nortear políticas do governo federal. Confira a seguir a entrevista:

Educação e Território: Como a Operação Verão impacta o direito à cidade, isto é, à liberdade de circulação nos espaços da cidade, para essa juventude negra? 

Elisa Cruz: Não é a primeira vez que a Operação Verão ocorre na cidade do Rio de Janeiro (RJ). É uma prática de muitos anos. Em termos de cidade, a operação comunica aos jovens e respectivas famílias que existem áreas da cidade que eles não podem entrar. É uma forma de bloqueio imaginário que, se ultrapassado, vai permitir que eles sejam apreendidos e retornados aos lugares que eles deveriam existir. No fundo, é uma forma bem simbólica de dizer que o lugar de pertencimento à cidade é onde eles estão diariamente, nos seus próprios bairros, e que não são bem vindos em outras regiões.

Para trabalhar em serviços onde são mal remunerados, eles podem acessar, quando permitido, mas para se divertir e curtir a cidade como ela existe e é cantada em música, séries e filmes, eles não podem. É de certa forma uma construção prática e simbólica terrivelmente racista. 

De que maneira a abordagem de adolescentes negros sem flagrante pela polícia impacta essa população? Há outros impactos menos evidentes?

Elisa Cruz: Existem impactos individuais, mas a gente precisa pensar nos impactos sociais e coletivos do afastamento cada vez maior de um pertencimento, coletividade, de uma ideia de que se pode colaborar para uma construção social maior e que inclua a cidade como um todo. O que fica é uma eterna sensação de ser indesejável. 

No aspecto jurídico, tudo isso remete ao que chamamos na situação irregular do menor de idade, que é uma doutrina que vigorou até 1988, em que havia lugares sociais para ser ocupados a partir de títulos e qualidades intrínsecas. Permitir essa operação é permitir o retorno ao passado. É uma prática que deveria causar choque em todos nós do Rio de Janeiro.

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Há diferenças significativas em como ocorre a Operação Verão no Rio de Janeiro e em São Paulo?

Elisa Cruz: São diferentes por questões de arquitetura. São Paulo é uma cidade que as pessoas marginais ficam mais à beira da cidade, não tem acesso aos espaços de poder e riqueza da mesma forma que no Rio de Janeiro. Lá,  as favelas estão dentro e permeiam os espaços de riqueza. Por isso, no Rio a tendência de termos operações tão agressivas é maior. A Rocinha, por exemplo, fica na beira de São Conrado, e o Rio das Pedras da Barra da Tijuca. A capital fluminense é permeada por problemas de criminalidade influenciados pela sua construção urbana.  

Neste cenário, qual é (ou deveria ser) o papel do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, estabelecido pelo ECA, na proteção desses adolescentes? 

Elisa Cruz: O Rio de Janeiro, em especial, e o país em geral passam por um momento muito problemático na área de segurança pública. Nos acostumamos a associar segurança pública ao aumento de crimes e de presos. O que a gente percebe é que uma nova fronteira que avança é a criminalização da infância e o grande problema desse avanço sobre a infância e a adolescência é que inverte a lógica do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O ECA é construído em três partes: começa com uma carta de direitos em que a criança conquista esse espaço de ser vista como pessoa ter direitos próprios, a segunda parte é a que vai garantir que esses direitos sejam exercidos, e a terceira e última parte versa sobre o ato infracional. O estatuto se propõe a solucionar problemas de forma educativa em vez de punitiva. O problema é que a criminalização há alguns anos vem tornando o ato infracional cada vez mais próximo do direito penal. O que temos de forma direta é a supressão de determinados direitos de crianças e adolescentes, como o direito de se locomover, de se expressar, de usar a cidade, de brincar e ter um desenvolvimento saudável. 

Isso porque no momento em que é dito que a pessoa não pode estar em determinado espaço, se diz que esse indivíduo não é uma pessoa integralmente e não tem os mesmos direitos de um jovem nascido e criado na Zona Sul, que tende a circular sozinho pelas praias. Esse jovem, que tem esse lugar naturalizado como seu, exerce esse direito de forma plena, mas o jovem de regiões à beira da cidade não tem todos esses direitos.

Vemos um atentado muito grande e forte contra uma das partes que são base não só do ECA, como da Constituição, que por sua vez pegou ensinamentos da convenção da ONU sobre os direitos da criança, da qual o Brasil foi um dos poucos países a participar de todas as reuniões. 

Quais ações seriam necessárias por parte do estado, incluindo ministérios como o da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e da Cidadania para proteger os direitos dos adolescentes?

Elisa Cruz: O papel principal do governo federal é ser um articulador dos sistemas estadual e municipal, principalmente esse último. Como o tema da infância é local, ou seja, os problemas e a necessidade de acessar questões é muito localizado, o município tem um papel muito relevante dentro dessa construção da infância. Caberia ao município zelar pela garantia de espaço, mas o problema no caso da Operação Verão recaiu ao uso das forças policiais, que é uma questão do governo estadual. No âmbito estadual, é preciso  uma modificação no pensamento sobre o que é segurança pública e o que são os direitos das crianças e adolescentes, porque essas populações não podem ser atravessadas por essa política punitivista. A polícia não tem como papel buscar pessoas que estão apenas sem documentação, isso é retomar a Lei da Vadiagem.

Já no âmbito federal, um ponto interessante seria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) ser uma política. O conselho tem um papel organizador dos Conselhos Tutelares, o que ajudaria a fortalecer a rede de proteção.  É necessário um plano sobre direito à convivência familiar e comunitária, que envolva o direito à comunidade, fundamental para a criança e o adolescente. O plano que detalha esse direito poderia ser proposto pela gestão federal.

Mas no Brasil o ECA nunca foi efetivamente levado à frente, seja na área de proteção e direitos e para a socioeducação. Tudo é muito desorganizado, sem padrão e diretrizes claras. Sempre esperamos que a União pegue esse papel de agregador para dar diretrizes mais concretas, mas os estados e municípios não têm a infância como prioridade.

Como o racismo brasileiro permeia essa questão e torna os jovens negros periféricos mais vulneráveis à violência e violação de direitos?

Elisa Cruz: Eu entendo a razão de a justiça da infância ter sido criada, mas tenho uma crítica muito forte. Nessa instância da justiça só existem negros e pobres, então eu me pergunto se a própria justiça e o conjunto de leis não tiveram condições de serem convertidos em normas de emancipação ou se acabaram se tornando ou mantendo-se como normas de exclusão. Fico com dúvidas se conseguiremos transformar o ECA em algo emancipatório. O público atingido por operações como essa é negro e não posso discordar quando é dito que continuamos a viver novos estágios da escravidão.

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