publicado dia 14 de janeiro de 2021
A cidade que queremos para 2021 é equitativa, diversa e construída coletivamente
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 14 de janeiro de 2021
Reportagem: Cecília Garcia
“Desenhar uma cidade dos sonhos é fácil; para reconstruir uma cidade existente, é preciso imaginação”. A frase da ativista e escritora Jane Jacobs, autora do livro Morte e Vida nas Grandes Cidades, fortuitamente combina com o ano que passou e para pensar a cidade que queremos. Em 2020, a pandemia obrigou as pessoas a olhar para os múltiplos tipos de cidade, suas potências e fragilidades, e entender o que fazer e como viver em um território que é por definição aglomerativo.
“O que 2020 e a pandemia traz de muito forte é a dimensão coletiva da cidade enquanto assentamento urbano. O entendimento de que ela é construída por todos, e que os humanos interagem com centenas ou milhares de pessoas mesmo que não se falem, mesmo que não se toquem. Todos os laços e interconexão social são mediados pelo espaço da cidade”, diz Rodrigo Iacovini, urbanista e assessor do Instituto Pólis.
Diversas cidades foram reimaginadas em 2020, com projetos e políticas públicas para mitigar desigualdades socioterritoriais pré-pandêmicas — porém acentuadas por ela. Nova York (EUA) fechou ruas para veículos e abriu-as para pedestres; Bogotá (COL) expandiu suas ciclovias; Nairóbi (Nigéria) investiu na melhoria e expansão de seus espaços verdes.
No Brasil, combatendo uma necropolítica governamental que já ceifou mais de 200 mil vidas, em especial as periféricas e de populações historicamente marginalizadas, foram as comunidades e territórios vulneráveis que deram um real sentido à ideia de cidade como produção de espaços coletivos. Periferias se auto organizaram de diversas maneiras, desde criar rádios comunitárias para alertar a população até a criação de políticas de cultura circulantes durante a pandemia.
A imagem de capa é do gravurista norte-americano Jacob Lawrence (1927-2000). O artista costumava retratar a vida afro-americana nas cidades. Suas cores e formas eram influenciadas pelas cores e saberes do bairro negro do Harlem, em Nova York (EUA).
“Precisamos guardar com carinho o acolhimento que aconteceu nas comunidades, nas periferias, dando conta de demandas por saúde e cuidado que os governos não deram conta de suprir. A movimentação dos coletivos juvenis, do movimento negro, de mulheres, de bairro, se apoiando, essa é a imagem que eu quero guardar”, relembra Edneia Gonçalves, socióloga e diretora adjunta da Ação Educativa. “Mas sem romantizar, porque não podemos ficar dependendo das comunidades cuidando de demandas do poder público sozinhas.”
Pensando nas cidades que já existem, na força imaginativa como catarse para pensar em novas práticas e trazendo aprendizados de um 2020, a plataforma Educação e Território convidou urbanistas, arquitetas, educadoras e ativistas do direito à cidade e dos direitos humanos para contarem como seria sua cidade dos sonhos para 2021.
Edneia Gonçalves, socióloga e diretora adjunta da Ação Educativa
As cidades são racializadas. Para enfrentar o racismo estrutural, é preciso construir uma cidade adepta à sua pluralidade, aos saberes que são construídos em suas diferentes instâncias e territórios. São muitos territórios construindo soluções importantes para educação, cultura, relações sociais e raciais, sabendo que nesse momento, como em todos os outros, o corpo que corre mais risco na cidade é o corpo negro.
Na minha cabeça, o que tenho como sonho é que essa rede de acolhimento que foi tecida nas comunidades, de dentro para fora, do bairro para a cidade, se fortaleça. Mas para que isso aconteça, é preciso considerar que essa rede é feita de tramas complexas, que tem a ver com religiosidade, cultura, ancestralidade e reexistência. Mas é essa trama que dá nossa possibilidade de vivenciar o coletivo de forma mais igualitária, equitativa e humana. Encontramos nessa luta pela vida um sentido de humanidade que estava se perdendo no meio da correria, e muita possibilidade de aprimorar o que entendemos por democracia.
Carolina Tarrío, uma das fundadoras do Movimento Boa Praça
A pandemia revelou a importância dos espaços públicos, especialmente os verdes, e o quanto a distribuição desses espaços é injusta e desigual.
Se eu pudesse sonhar com uma cidade massa, seria uma com calçadas largas que comportem pessoas. Jardins comestíveis existiriam nas largas calçadas, roubadas do leito carroçável, onde as pessoas poderiam plantar, cultivar e se servir juntas e ter mais contato com a natureza. Nesta pandemia, sentimos falta de ar. Quem produz ar são as árvores, então nesses grandes canteiros também haveria muitas delas.
Acho que seria uma cidade conectada não por rodovias, mas por outro tipo de transporte, que fornecesse conexão entre as pessoas. O espaço público é um pouco isso, a possibilidade de se conectar com quem você divide a cidade, frequentar esses lugares, ter a possibilidade de cuidar junto deles e decidir o que fazer neles, o que é melhor para esse coletivo. A cidade que desejo é essa possibilidade de formar uma comunidade mesmo.
Bia Goulart, arquiteta e estudiosa de territórios educativos
O direito de ocupar o território é pré-determinado pela nossa condição social e econômica, que produziu historicamente cidades que excluem, segregam e deseducam.
Para sonharmos com uma justa e inclusiva precisaremos entender os processos de transformação social e territorial. Para tanto, é preciso garantir tempos e espaços para essa reflexão. Nas escolas, praças, telas, conversar entre nós sobre de onde viemos, onde estamos e para onde queremos ir.
Nessa conversa, além da mediação de especialistas, precisamos de todos e todas, das crianças aos idosos, habitantes de todos os cantos da cidade, que modo que as mais diversas necessidades, opiniões e vontades sejam consideradas. Conhecer, compreender, ocupar e cuidar, num processo cotidiano de consciência e ação territorial. Para que tudo isso tenha sustentabilidade, precisamos de políticas e gestão públicas a altura deste desafio, que respeitem e apoiem processos participativos. Conversar, conversar, conversar, para sonhar juntes.
Bruninho Souza, ativista social e educador
Em 2020 percebemos o quanto a cultura é fundamental quando se pensa em humanidade e comunidade. As pessoas que trabalham com cultura sempre foram pouco valorizadas e neste momento de isolamento, precisamos elaborar metáforas e vimos pessoas indo atrás de literatura, cinema, poesia, como espaços para além do que o capitalismo oferece, para além das coisas mecânicas.
A cidade que sonho seria muito colorida, em todos aspectos, com muita diversidade, muita arte, muitos espaços culturais. Seria uma cidade em que qualquer transformação só aconteceria com diálogos, envolvendo crianças, idosos, jovens, pessoas LGBTQi+. Uma cidade onde a principal lei seria conversar com pessoas iguais e diferentes de você. Então seria uma cidade com mais pontes do que muros.
Se eu pudesse, derrubaria as cercas de escolas, muros de parques, para que as pessoas pudessem circular livremente, não só física mas simbolicamente. Tá andando na rua, passou por uma escola, dentro de um parque, perto de uma biblioteca, próxima da UBS. Seria uma cidade inclusiva para pessoas, espaços e sonhos.
Rodrigo Iacovini, urbanista e assessor do Instituto Pólis
O que a pandemia traz é a noção de que todos os laços sociais são mediados pelo espaço da cidade. E que a cidade é construída por relações sociais, econômicas, afetivas, familiares e educacionais. Então o primeiro lugar que a imaginação me leva para pensar uma cidade é no seu aspecto político, onde todos tivessem plena noção de que estão construindo a cidade todo dia no seu cotidiano, que essa consciência de construção coletiva estivesse bem consolidada para a população.
Outro aspecto da cidade que eu gostaria é de ocupação plena dos espaços públicos da cidade. Isso pode parecer meio contrário agora que defendemos o isolamento na pandemia. Mas um dos problemas de não ter ações de isolamento eficientes e um combate coletivo à pandemia é porque para isso é necessário ter cultura de gestão e usufruto do espaço público. Não sabemos usar o espaço público porque não tem noção de coletividade, e não temos noção de coletividade porque não tem cultura de espaço público.
Nesta cidade imaginada, gostaria de viver plenamente afetos no espaços públicos, sem medo de discriminação e violência. Isso vale para a população LGBTQI+, mas também para as diversas existências na cidade, a das mulheres, a das pessoas negras.
Gabriela de Matos, arquiteta, criadora do projeto Arquitetas Negras
Para pensar cidade, é preciso entender que a questão racial é o cerne da questão social do Brasil. Somos um país construído com mão-de-obra negra, e é preciso criar uma agenda efetiva que dê conta de minimizar os reflexos desse sistema escravocrata nos territórios negros e vulneráveis da cidade.
Meu sonho seria ter uma agenda urbana em uma cidade focada na especificidade do ser humano. Não somos todos iguais, experimentamos a urbe de maneira diferente, então seria preciso uma agenda urbana que desse conta e fosse tocada em encontros, em processos participativos, sempre discutida.
Marcio Carvalhal, integrante do ABREMC (Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários)
A pandemia trouxe uma reflexão de que nós precisamos cuidar do território, e cuidar do território é cuidar das pessoas. Que é o território senão a pessoa, senão o ser vivo atuando no território. No pós-pandemia, ou durante a vacinação, se a gente não imunizar a ignorância sobre o território, não iremos evoluir muito.
Quando penso em cidades do futuro, penso que as políticas da cidade não podem ser iguais para todos os territórios. É preciso pensá-la a partir do ser humano que está ali convivendo. Que no futuro, cada espaço da cidade possa ter mais sua autogovernança a partir do território. Há muitos espaços de engajamento cívico acontecendo dentro das periferias das cidades. É preciso olhar para isso.
Diane Sousa, gerente de projetos do Instituto Formação.
É curiosa a ideia de construir uma cidade que queremos. Há alguns anos o Instituto Formação tinha um projeto chamado A Cidade Queremos, onde entrevistamos pessoas para saber que cidade elas desejavam. E eu gosto dessa pergunta, porque a cidade que queremos não é apenas para mim, é uma cidade para todes. A cidade que a gente quer é o território onde a gente pisa. E o chão onde piso é um chão que precisa de justiça social, que precisa fortalecer seu desenvolvimento a partir da educação.
A cidade que queremos consegue oferecer oportunidade para que as pessoas se desenvolvam a partir das suas potencialidades. Que olhe para Catarina, Alberto, que olhe para as pessoas não apenas como amontoados, mas com um espaço onde é possível se florescer no meio do caminho. Onde é possível construir igualdade a partir dos desiguais. Com oportunidade, educação de qualidade, uma cidade que respeita seu território e que tem esse território como uma das mais potentes fontes de desenvolvimento e conhecimento.