Mapeamento Afetivo: como transformar o espaço público em uma comunidade
Publicado dia 10 de novembro de 2016
Publicado dia 10 de novembro de 2016
A percepção – o nome que damos para a forma que vemos e sentimos o mundo – é antes de tudo um filtro. Nossa mente realiza um elaborado processo de seleção, que nos mostra o que consideramos importante naquele dado momento. Mas perceba, no ato ativo de ler este texto, o tanto de cores, sons, luzes, vozes, potências e informações que passam por você desatentas. A operação é automática e necessária para conseguirmos criar um fio coerente de vida. Mas é possível criar diferentes tecidos com essa matéria-prima.
Essa é uma das apostas da metodologia do Mapeamento Afetivo, que convida moradores, curiosos, estudantes, ativistas e vizinhos a desautomatizarem seus olhares cotidianos e revelar potenciais escondidos em territórios familiares.
“O Mapeamento Afetivo configura um outro olhar para a cidade. Ao invés de enxergar a estrutura, a dinâmica viária, se trata de descobrir quem são as pessoas, quais são as histórias e potências daquele espaço. Uma cidade sem gente não serve para nada, é um lugar sem afeto. E é o afeto, junto com as relações, que vão sustentar as mudanças que queremos para um lugar”, explica Inês Maria, arquiteta que faz parte do grupo Acupuntura Urbana, que atua há três anos em São Paulo.
Engajado na transformação de “espaços públicos em comunidades”, o coletivo costuma partir de mapeamentos afetivos para reunir ativos de um espaço, criar articulações, desvelar potências e criar vínculos. A Plataforma Cidades Educadoras conversou com Inês Maria, que ajudou a contar como fazer essa prática valer.
Conforme ela ressalta, o Mapeamento Afetivo, apesar de ser amplamente utilizado, não foi fundado ou inventado por ninguém – e portanto, pode ser feito e readaptado de acordo com quem for participar. Além do mais, ele não precisa necessariamente ser feito nas ruas. Por que não pensar, como ponto de partida, no mapeamento afetivo de uma escola e depois transpô-lo ao território?
1# O que é mapeado?
“Nós vamos em busca de tudo que é belo e abundante”, afirma Inês, que ressalta que é importante retirar “máscaras, julgamentos e preconceitos” para enxergar o lugar exatamente como ele é, ou seja, renovar o olhar a partir da perspectiva de um viajante ou de uma criança. “Veja a cidade como um espelho, como um oráculo, buscando histórias e pessoas que lhe emprestarão suas leituras da cidade. São essas pessoas que cultivam uma região.”
Para além de despertar sentidos poéticos, o mapeamento também pode servir para localizar serviços, cuidadores, ofertas gastronômicas, talentos de moradores, equipamentos culturais, casas abertas, museus e parques, patrimônios materiais e imateriais, jogos, palavras, gírias, brincadeiras, mas sempre mirando naquilo que chama a atenção do observador. “ Quando olhamos nos olhos de quem está morando, descobrimos universos inteiros ali disponíveis nas pessoas, formando vínculos ativos que fazem acontecer os mais diversos sonhos.”
2# Como fazer?
Há ideias e exemplos de metodologia, mas a arquiteta alerta que o processo de buscar o que há em cada sujeito envolvido nesse processo é muito intuitivo: é importante despertar a autoconsciência e a consciência do mundo que o cerca. Para isso, existem certos jogos que podem ser inventados.
Um deles é elaborar desafios não-convencionais, como seguir a primeira pessoa de óculos que passar, ou seja, “inventar maneiras de se perder organizadamente no espaço público”. O Acupuntura Urbana também desenvolveu um “Triângulo de Pesquisas”, que parte do olhar (observar o entorno), do ouvir (formular perguntas e respostas) e do sentir (se abrir e vivenciar, se abrir para o silêncio), que irão se desenvolver sincronicamente ao longo do processo.
Olhar: “A partir da observação do que as pessoas fazem você entra em contato com o que é aquele morador, naquele momento histórico”.
Escutar: “Formular e fazer boas perguntas para investigar o que te chamou a atenção. Uma pergunta fundamental é: quem eu não posso deixar de conhecer no bairro? Aí uma pessoa leva a outra. Se é alguém que não mora ali, pergunte o que mais chamou a atenção dela”.
Sentir: “Em silêncio é possível descobrir muita coisa. Você vê alguém trabalhando e ao invés de interromper, observa. De repente, se junta. Nem todo mundo é bom de palavra. Se você descobrir um sarau, por exemplo, porque não organizar uma ida a ele? Há muita coisa interessante nesse fluxo de informação”.
Dentro dessa perspectiva, ela cita o Jogo do Afeto, onde é possível colocar diversas missões em papeizinhos em um saco e distribuir para o grupo. Alguém pode ficar responsável por descobrir cheiros, outro sons, pessoas, gírias, irregularidades, sombra, calor. Também é possível elencar desafios, como descobrir “Cinco talentos em duas horas” ou “Três histórias interessantes sobre a região.”
#3 Compartilhar
Após a expedição pelo território determinado, é hora de compartilhar os achados entre os mapeadores. Para isso, é importante ter um mapa do espaço explorado, que será preenchido coletivamente pelos participantes. A ideia é categorizar e distribuir pelo mapa, através do uso de tachinhas coloridas, por exemplo, “tudo que é sensação, cultura, um restaurante legal, comércios, enfim, o que você quiser: depende da lupa, depende do que se quer descobrir.”
Também é possível marcar onde vivem e o que fazem os moradores da região, chegando invariavelmente nas lideranças comunitárias. “Pessoas são pontos que despertam outras cinquenta pessoas novas, são atalhos.”
#4 Usos
Com o mapa pronto, é importante decidir o que fazer com ele. Inês afirma que é sempre mais rico quando é algo que retorna para a comunidade. É possível fazer feiras e shows de talentos ou uma mostra para celebrar os encontros. “Tem um marceneiro, um pintor, um que cozinha, mulheres empreendedoras que fazem bonecas. Como é um encontro dessas riquezas? É uma festa.”
Segundo ela, essas atividades são importantes para valorizar a estima e a memória de um lugar e aproximar comunidades. “Você se sente pertencente ao bairro e faz mais por ele. É um ciclo positivo.”
Sistematizar as ações de coleta e partilhá-las irá gerar novos “insights e possibilidades”, que poderão redundar em transformações e intervenções urbanas, ou em novas redes comunitárias. Também é possível, por exemplo, fazer um guia com oportunidades culturais, gastronômicas e pequenos serviços da região, montar uma rua de lazer, ou seja, “celebrar o que há no bairro para sonhar o que se quer dele. Todo bairro tem recursos. Toda criança quer um parque. Todo mundo consegue contribuir com algo.”
Segundo Inês, quem quiser se inspirar pode acessar os materiais do Instituto Elos, que elaborou a metodologia dos sete passos. Outra fonte importante é o Art of Hosting [Arte de Anfitriar], um movimento que tem como base criar conversas significativas para o ser humano e para o planeta.
#5 Exemplo
No Bairro de Perus, na região noroeste de São Paulo, o Acupuntura Urbana desenvolveu um projeto do Edital Redes e Ruas na Praça do Samba. Partindo do histórico de resistência da região e dos movimentos comunitários em defesa de direitos, foram gerando novas articulações.
Partindo de um mapeamento, conheceram diversos moradores da região e se conectaram com as escolas e movimentos locais. As “vibrações” geraram uma feira de talentos, com produtos, produções e oficinas de saberes, ativando o que já existia na região.
A partir do sonho das crianças, os muros receberam novos desenhos e um parquinho foi construído. Em outra parede, foi desenhado uma linha do tempo da história do bairro. Almoços comunitários eram preparados nas escolas das creches. E por fim, a praça ganhou um parquinho, uma academia de idosos, uma reforma da quadra e uma nova vida. “Depois de um tempo, era tanta riqueza que largamos o mapa e vivemos o presente dali. Foi muito especial.”
Confira um pouco deste trabalho no vídeo abaixo.
Acesse o site do Acupuntura Urbana para conhecer melhor suas experiências, trabalhos e afetos.