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Como registrar afetivamente um patrimônio arquitetônico

Publicado dia 29 de março de 2018

Igrejas com características barrocas no alto de cumes com vista para o mar; casas ombro a ombro, de amplas janelas e coloridas paredes, para receber e também conter o sol nordestino; sobrados coloniais com salas que dão de frente para as ruas de paralelepípedo.

A arquitetura de Olinda (PE), cidade fundada em 1553 e que por muito foi capital de Pernambuco, é uma amálgama de influências europeias, africanas, indígenas e mouras, tecida para se ajustar à ondulação de sua topografia. Suas construções dão corpo a uma história de colonização e conflitos, mas também a um imenso patrimônio cultural.

Hoje, o sítio histórico de Olinda, que perfaz cerca de um quilômetro do centro da cidade, é patrimônio histórico tombado tanto pela UNESCO como pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Os mais de 300 mil habitantes da cidade habitam uma herança histórica palpável – estão dentro dela, a testemunham nos seus trajetos de trabalho e lazer, mas nem por isso compreendem sua importância e necessidade de preservação.

frentedacasa
Casarão em Olinda (PE) / Foto por Thiago Duarte

Isso porque a arquitetura nem sempre é acompanhada de sensação de pertencimento. Como a geógrafa Maria Gravari-Barbas descreve, “o patrimônio deriva do valor humano das pessoas, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados.

Torna-se então vital a simbiose entre pessoas e o patrimônio habitado por elas. Isso pode acontecer tanto em espaços formais – museus, escolas, centros culturais – como também em ações informais. Na definição do IPHAN, a educação patrimonial é composta por processos “que têm como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e preservação.”

foto de maracatu
Maracatu de Baque Santo, manifestação cultural declarada patrimônio imaterial do IPHAN / Foto por Arquimedes Santos

E acrescenta que, neste entendimento, os “processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais.”

Um novo olhar para o mesmo

Quando a designer Renata Paes começou a registrar afetivamente elementos arquitetônicos de Olinda, ela percebeu quão potente podia ser o envolvimento das pessoas com um território já desbravado, exaustivamente cotidiano, mas nem por isso conhecido.

O resultado do registro foi o trabalho Memória Gráfica da Arquitetura de Olinda, um compêndio estético que abriga entre imagens e vetores toda a carga de afeto que se pode desenvolver pelo espaço público quando alguém se dispõe a registrá-lo intimamente.

A designer, cujo trabalho foi relatado em matéria do Portal Aprendiz, juntou-se à plataforma Cidades Educadoras para elaborar uma metodologia de registro afetivo da arquitetura das cidades.

O intuito é promover o reconhecimento e qualificar a relação entre registrador e objeto registrado, tornando mais estreitos os laços entre indivíduo e território.

1#Defina o local de registro

“Cresci escutando as histórias da cidade. Meu pai e minha mãe, ambos arquitetos, sempre falaram sobre importância de preservar o patrimônio arquitetônico, incentivando um olhar não somente de carinho, mas também de cuidado, de querer contribuir de alguma forma para preservá-lo”, explica Renata.

Enxergar o potencial educativo dos espaços por onde sempre transitou foi importante para que a designer soubesse por onde começar os registros. O primeiro passo é, portanto, escolher um local que desperte a curiosidade e o desejo de conhecê-lo melhor.

É claro que o processo é facilitado quando a relação é estabelecida entre um morador e seu território, por exemplo, o registro do Mercado Ver-o-Peso por um habitante de Belém (PA). Mas Renata alerta que não é preciso registrar necessariamente o lugar onde se vive.

“Nada impede que você, no meio de uma viagem para outra cidade, parta para o mesmo processo. O importante é registrar algo que te mova e que te toque. Eu, por exemplo registrei elementos arquitetônicos em Olinda, mas tenho muita vontade de partir para uma pesquisa similar em Recife”, relata. Logo, a curiosidade é o princípio motor para a documentação.

fachada de casa branca e de portas azuis
Fachada de casa em Olinda (PE) / Foto por Thiago Duarte

2#À deriva: flane pela cidade

No livro Apologia à Deriva, o grupo Internacional Situacionista – movimento criado na Itália que reúne poetas, escritores e arquitetos que preconizam a crença de que indivíduos devem ser livres para encontrar suas próprias formas de prazer e assim romper sistemas de alienação – define estar à deriva como “o modo de comportamento ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar um exercício contínuo dessa experiência (…) O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos da natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio.”

Renata propõe a deriva como a primeira experiência do registro. “Andar por aí, perambular, dominando ou não o roteiro da cidade, causa muitos despertares sobre o que parece bonito, tosco, esquisito, enfim, o que toca e nos torna curioso”.

Mesmo que o entorno seja familiar, a proposta é não se prender a roteiros, mas se conectar com os espaços de maneira diferente da usual.

3#Escolha suas ferramentas e objetos de registro

Quando Renata optou pela fotografia para fazer os registros, ela queria fidelidade imagética. Como precisava estudar minuciosamente os diferentes formatos de design de azulejos e cobogós, ter as fotos em mãos ampliava as possibilidades de compará-los.

A depender do objeto de estudo do projeto, outros critérios podem levar à escolha de diferentes ferramentas. A sugestão de Renata é que o pesquisador eleja aquela com a qual se sinta mais confortável. Entre os instrumentos estão: celular (para fotografias rápidas), lápis, papel e – se possível – uma câmera fotográfica.

Ela também indica o desenho e a escrita enquanto formas de registro. “Tente desenhar ou descrever como é o elemento que você está vendo, se ele é quadrado, se tem tantas cores, se parece uma flor, se carrega ou desperta outra referência simbólica”.

Dessas descrições podem derivar a ideia de se focar em determinados padrões, prédios ou objetos arquitetônicos, formando um linha narrativa a ser seguida durante as perambulações.

janelas azuis e azulejos
Fachada de casa em Olinda (PE) / Foto por Thiago Duarte

4#Crie um diário

Do enlace entre a deriva e os registros, é sugerido que se faça um diário de bordo. Mais do que reunir os registros, ele pode ser servir como orientador e organizador do processo, fazendo com que os próximos passeios tenham objetivos mais claros.

Renata exemplifica: “Quando eu entrava em uma rua, eu escrevia em um pedaço de papel seu nome e também fotografava. Também ajudou transpor os trajetos para uma plataforma digital: fui no Google Maps e coloquei as ruas por onde eu havia passado. Além de registrar meus passos, serviu para registrar minhas sensações e memórias, e saber como me portar nos próximos passos”.

5#Conheça a cidade pelos olhos do outro

Durante a formatação de seus registros – que tinham que seguir um rigor acadêmico por comporem um trabalho de conclusão de curso – Renata optou por seguir a bibliografia do filósofo francês Gilles Deleuze.

Junto ao também filósofo Félix Guattari, Deleuze foi um dos primeiros a cunhar a expressão cartografia afetiva, processo onde o pesquisador se envolve emocionalmente com o que é cartografado, produzindo conteúdos e esbarrando ombros constantemente com outros pesquisadores, isto é, qualquer pessoa que habite e/ou circule pela cidade.

“Uma vendedora de pipoca, que passa todos os seus dias num determinado local, tem muito acúmulo de conhecimento para dividir. A ideia de que só o conhecimento acadêmico é válido precisa ser abandonada”, argumenta Renata.

A troca é de mão dupla. Renata conta que não só aprendeu com as conversas com os outros sobre os ladrilhos no chão de uma casa, como também ajudou a despertar em pessoas apáticas à arquitetura local – por a habitarem, por vê-la cotidianamente – um sentimento de pertencimento e curiosidade.

“Fotografei o ladrilho de uma senhora em Olinda que já tinha substituído metade dele na casa. Quero mostrar para ela o catálogo, porque espero que assim ela sinta orgulho do que possui e seu valor”.

6#Elabore os efeitos do mapeamento

Não é possível mensurar quais efeitos afetivos serão causados ao fim de qualquer percurso de registro, porque cada pessoa desenvolve uma relação muito pessoal com seu objeto de pesquisa. Em Renata, os sentimentos foram intensamente mistos: enquanto se apaixonava pela arquitetura tradicional da sua cidade, também enraivecia-se com o quão pouco era preservada.  

E isso a fez perceber que um dos potenciais educativos do processo de registro é despertar a atenção para as políticas públicas da região e de que é responsabilidade da comunidade envolver-se com a preservação do patrimônio arquitetônico e cultura da sua região.

“A cidade [Olinda], apesar da fachada bonita, está lascada. As praças estão escuras, os ambientes abandonadas, e isso só piora quando se pensa nos locais habitados pelas populações mais vulneráveis. Quando você registra sua cidade e a abraça afetivamente, você automaticamente se engaja mais em participar da vida que ela comporta”.

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