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publicado dia 9 de janeiro de 2023

Educação política é um dos caminhos para superar a crise política e evitar novos ataques à democracia brasileira

Reportagem:

Neste domingo, 8 de janeiro, o Brasil assistiu aos ataques terroristas de extrema-direita em Brasília (DF) com a invasão e depredação do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal por bolsonaristas que pedem intervenção militar e recusam o resultado do processo eleitoral democrático. A educação política e cidadã é uma das dimensões que podem compor a saída desta crise. 

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Isso é o que defende Maurício Piragino, mais conhecido como Xixo, que é psicólogo, ex-Diretor Presidente da Escola de Gestão e Contas do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP), membro do Colegiado da Rede Nossa São Paulo, professor convidado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduando na Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretor da Escola de Governo de São Paulo.

“O Brasil não tem um histórico democrático e diria até que precisamos proclamar a República no Brasil, no sentido das pessoas entenderem que o bem comum é superior ao bem particular”, disse o especialista ao Educação e Território em entrevista que pode ser conferida a seguir:

Educação e Território: Diante dos acontecimentos de ontem na praça dos Três Poderes, mas também do histórico recente de desprezo pela democracia que tomou parte da sociedade brasileira, como restaurar o pacto social que caracteriza a Constituição de 88?

Maurício Piragino: O mais importante é as pessoas conhecerem a Constituição, e infelizmente observamos que em geral isso não acontece. Então precisamos pensar formas das pessoas, e também das forças de segurança do Brasil, terem uma formação cidadã e em direitos humanos tanto na educação formal quanto na não formal. 

O Brasil não tem um histórico democrático e diria até que precisamos proclamar a República no Brasil, no sentido das pessoas entenderem que o bem comum é superior ao bem particular, privado. O que a gente observa nesse grupo terrorista é que as pessoas estão lá para defender não um país, mas a sua casa, sua fazenda, seu privilégio, além de um desvirtuamento na compreensão da Constituição. 

Vimos muitas pessoas desse grupo de terroristas com uma camiseta que dizia “o meu partido é o Brasil”. Elas nem refletiram sobre o que está sendo dito ali, porque partido vem de parte, então a parte nunca pode ser o todo, senão, não é parte. Isso já é uma proposta autoritária, porque não cabe diversidade, então é uma camiseta que defende a ditadura. 

Outra frase recorrente era “Supremo é o povo”. O povo não é supremo e o Supremo é um dos Poderes do país. As Forças Armadas não são um Poder, são uma Força Armada que está a serviço dos Três Poderes. 

Nós estamos enfrentando esse desvirtuamento grave da Constituição porque há uma tentativa coordenada nacional e até internacionalmente de embaralhar os conceitos e manter a superficialidade das ideias, o que faz com que todas as questões que são de uma sociedade, que são complexas, não sejam abordadas devidamente. 

Mobiliário danificado após ato antidemocrático
Móveis e janelas danificadas no Palácio do Planalto, após atos antidemocráticos bolsonaristas que ocorreram em 8 de janeiro em Brasília (DF). Foto: Marcello Camargo/Agência Brasil

É muito comum eu perguntar para simpatizantes e membros desse grupo o que é comunismo, o que é o socialismo de que estão com medo e qual é a liberdade que estão defendendo. As pessoas não sabem dizer, não sabem explicar. Liberdade virou sinônimo de poder fazer qualquer coisa, mas há um regramento disso, porque viver em sociedade significa se submeter à Constituição.

Quando se participa como cidadão de um Estado, entregamos o poder da força ao Estado. Essa ideia de todo mundo armado é a barbárie, não é uma sociedade. E as pessoas que estão defendendo que as Forças Armadas tomem conta do Brasil, não estão olhando para a realidade. O que vimos no governo que acabou de sair foi uma grande ocupação de cargos pelas Forças Armadas e as políticas públicas simplesmente não aconteceram. O que tivemos com o general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde foram centenas de milhares de mortes, porque historicamente as Forças Armadas sabem fazer guerra, não sabem sobre Saúde profundamente, por exemplo, e para isso tem gente mais qualificada.

ET: A destruição deixada ontem no patrimônio brasileiro é material, mas também imaterial. Quais marcas o senhor avalia que este episódio pode deixar para a democracia brasileira?

MP: Uma semana atrás, quem subiu a rampa, além de um presidente de origem popular, foi um indígena, uma mulher negra, uma pessoa com deficiência, pessoas que tem que ter seus direitos garantidos, e essa revolta de ontem também foi em torno disso. 

Foi um ataque a toda essa diversidade brasileira, foi uma defesa de que só pode existir um tipo de pessoa: o branco de origem europeia que tem acesso aos privilégios por ser branco. 

Também fala da nossa marca viva da forma como o Brasil foi constituído historicamente, com quase 400 anos de escravidão, e quando assume um ministro dos Direitos Humanos como Silvio Almeida, que fala de um lugar de quem sabe o que é racismo, há uma reação por parte desse grupo. 

ET: Em artigo publicado recentemente na Folha de S. Paulo, Frei Betto ressaltou a importância da educação política, cidadã e participativa da população brasileira como prioridade do terceiro mandato de Lula. Na sua opinião, como essa estratégia poderia contribuir para endereçar os desafios ligados à democracia que estamos enfrentando? Qual é o papel da escola pública e dos movimentos sociais nesse processo?

MP: Muitos educadores têm falado sobre como o desafio da educação no mundo hoje é transformar informação em formação, porque vemos um bando de informação que amedronta as pessoas e que então ficam vivendo em uma realidade paralela. Espaços para debate e formação podem ajudar a enfrentar isso.

Podemos pensar em criar formações que agreguem vários grupos, pode ter um núcleo que forneça materiais de debate, por exemplo, uma aula que o ministro Silvio Almeida grave e isso vai ser passado nesses espaços, seguido por um debate local entre as pessoas. 

Na Escola de Governo do Estado de São Paulo e na Escola de Gestão e Contas do TCMSP, por exemplo, que trazem a questão do aprendizado sobre a Constituição, sobre as políticas públicas, a primeira metade da aula é teoria e a outra é debate, para as pessoas poderem trocar e trazer sua experiência.

Então o que precisa acontecer dentro da política pública é construir, assim como os vários pontos de cultura pelo Brasil, os espaços de cidadania. As pessoas precisam ser acolhidas nas suas dores, precisam se encontrar, dialogar e ter acesso a informação e formação, e as escolas e os movimentos sociais podem ser parceiros na construção desses espaços.

Na semana passada, levei essa proposta ao ministro dos Direitos Humanos, para construir esses espaços de cidadania de forma participativa com cada cultura local, com uma liderança que seja horizontal, que tenha um estatuto de funcionamento vinculado à Constituição, aos direitos humanos e aos atos civilizatórios.

Atos antidemocráticos em Brasilia
Estrago patrimonial no prédio do Congresso Nacional, invadido em 8 de janeiro por golpistas bolsonaristas antidemocráticos. Já são ao menos 1.200 presos pela participação nos atos. Crédito: Pedro França/Agência Senado.

ET: Há experiências de educação política e cidadã recentes que poderiam ser referências para este trabalho?

MP: Essas formações em cidadania e direitos humanos são muito importantes porque há um desvirtuamento da sociedade sobre o que esses conceitos significam, e uma formação desse tipo marca muito as pessoas, faz diferença no olhar sobre sua vida. 

Na Escola de Governo tínhamos uma enquete que perguntava para os alunos quanto a Escola tinha mudado a ideia deles sobre a política e 85% dizia que muito ou que havia mudado. 

Em Brasília, encontrei o ministro [do STF] Dias Toffoli, que tinha sido aluno da Escola, e ele falou que essa formação marcou muito a vida dele. Tem pessoas das mais variadas áreas que foram estudar a importância dos direitos humanos: deputadas, prefeitos, gente que está em organizações da sociedade civil, trabalhando para o Ministério Público, a Guarda Civil Municipal e a Polícia Militar. 

Na experiência da Escola, os debates eram muito ricos porque às vezes sentavam juntos o empresário do ônibus e o sindicalista, e eles aprendiam a escutar o ponto de vista do outro e política é isso, é a criação de um acordo comum. O que assistimos ontem em Brasília foi a antipolítica, são pessoas que não querem debater, mas querem impor sua vontade, sua forma de pensar o que é a vida e o ser humano.

ET: Os atos de depredação e vandalismo de ontem foram organizados, mobilizados e registrados através de redes sociais e aplicativos de mensagens, por onde há alguns anos circula desinformação em massa. Na sua opinião, qual é o papel da desinformação na corrosão da democracia?

MP: Há uma elite mundial, cuja representação maior é o [ex-presidente dos EUA] Donald Trump, que quer manter privilégios, domínio e poder e, para tanto, patrocinam desinformação através das redes sociais e dos algoritmos, mundialmente dominados sobretudo pela extrema direita. Isso vai constituindo na cabeça das pessoas mais mal-informadas um medo constante que resulta no que vimos ontem e em outros ataques à democracia.

Então precisamos de uma ética digital e construir espaços de cidadania para acolher quem vive situações difíceis na sociedade e promover conversas. É preciso convidar as pessoas para se encontrarem novamente e isso deixar de ser uma ameaça, mas uma troca de informações reais.

Temos que ter a humildade de sempre estudar, aprender com quem tem mais conhecimento, e entender que o melhor caminho para uma civilização é seguir respeitando o pacto que está posto no nosso norte, na nossa lei maior, a Constituição. 

*Por Ingrid Matuoka

ESPECIAL: 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

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