publicado dia 8 de fevereiro de 2021
Projetos formativos resgatam olhar dos educadores para saberes afro-brasileiros
Reportagem: Da Redação
publicado dia 8 de fevereiro de 2021
Reportagem: Da Redação
Pensar uma educação antirracista envolve o reconhecimento das construções que começam fora da sala de aula. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie alerta sobre o perigo de uma história única, criada a partir de estereótipos incompletos narrados repetidas vezes. Para os estudantes, os educadores não deixam de ser contadores de histórias. Mas é preciso olhar com atenção para a narrativa que foi contada a eles durante suas trajetórias formativas.
O próprio quadro de professores ainda não reflete a população preta e parda que compõem a maior parcela da sociedade brasileira. Políticas afirmativas de cotas raciais, em concursos públicos e redes de ensino, buscam reverter esse cenário. Na prática, porém, essas conquistas não se aplicam sem resistência. Foi o caso de Carolina Chagas, educadora da rede municipal de ensino de Porto Alegre (RS) desde 2005.
Matéria publicada originalmente no site da Fundação Telefônica Vivo.
“Fui uma das primeiras professoras cotistas da rede. Um ano depois de começar a lecionar, eu e as nove pessoas que entraram comigo, recebemos uma carta da Secretaria nos avisando que a legalidade das cotas estava sendo contestada. A partir daí, nos mobilizamos para defender não só nossos empregos, mas toda a política de cotas do município.”, relembra a educadora, que trabalha com alfabetização dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Logo após partilharem essa vivência, as colegas passaram a trocar experiências e práticas para aplicar a Lei 10.639/03 em sala de aula. Em 2013, Carolina participou de uma formação continuada da Uniafro, que chamou a atenção para uma dúvida recorrente entre os educadores: como repensar o currículo para abordar a cultura e história afro-brasileira de forma significativa?
Foi assim que nasceu o grupo de estudos e formação Canjerê. “Percebemos que nós sabíamos como aplicar a lei na prática, pois já fazíamos isso há anos. A ideia era compartilhar as nossas experiências e os conceitos por trás das práticas com outros educadores, para seguirmos aprendendo juntos”, explica a educadora.
Todos os sábados, quinzenalmente, o grupo se reúne para discutir grandes referências e pensadores negros como Djamila Ribeiro, Sílvio de Almeida e Grada Quilombo. Em 2020, o Canjerê ampliou o número de participantes, formado por educadores e psicólogos. Além disso, o grupo realiza formações em escolas da rede de ensino, com o objetivo de auxiliar na implementação de um currículo mais representativo.
Depois de muito pensar sobre o assunto, os estudantes do 4º ano da EMEF Saint’Hillaire, localizada no bairro do Lomba do Pinheiro, região periférica de Porto Alegre, chegaram à conclusão de que “afrobetizar” significa passar a limpo o rascunho da história que foi contada sobre os povos negros e indígenas.
“Nós fomos ensinados a associar nossa ascendência ao processo de escravização, mas ignoramos completamente que, antes de terem suas trajetórias interrompidas, descendemos de rainhas e reis, príncipes e princesas africanos. Ignoramos que a África é um continente com mais de 50 países, múltiplas culturas e muito a ensinar”, reforça a professora Larisse Moraes, que iniciou um movimento de revisão curricular a partir das relações étnico-raciais.
O Afroativos reúne estudantes, educadores, ex-alunos e familiares para debater referências baseadas nos valores civilizatórios afro-brasileiros. A existência dessa mobilização se deu a partir de uma realidade conflituosa entre os estudantes. Eram as diferenças o motivo para tanto desentendimento, observou Larisse. Mesmo contando com o apoio da gestão da escola, que sempre deu autonomia aos professores, as marcas do racismo nas vivências dos jovens eram mais profundas.
“Quando falam do meu cabelo, eu fico com aperto no coração. Não consigo acreditar que isso me machuca muito. O que tem meu cabelo? Eu não sei mesmo”. O relato escrito pela estudante Ketlyn Vieira, na época com 10 anos, chegou às mãos da educadora e mobilizou não apenas ela, mas outros estudantes na tentativa de reverter esse cenário. A campanha Solte o cabelo, prenda o preconceito foi uma das muitas ações desenvolvidas pelo grupo em 2017.
A ancestralidade e a oralidade são só alguns dos valores que guiaram a construção de materiais como um calendário para resgatar a memória de conquistas dos movimentos negros, um guia antirracista produzido pelos estudantes, um livro de poesia publicado, debates e apresentações interescolares, e a página Afroativos no Facebook, dedicada a compartilhar referências para inspirar outros jovens e educadores brasileiros na descolonização dos saberes.
Da Educação Infantil até o EJA (Educação para Jovens e Adultos), o projeto que começou em 2017 com objetivo de unir um grupo, já alcançou cerca de 300 estudantes da EMEF. A iniciativa conquistou prêmios como Sim à Igualdade Racial e foi matéria no jornal Nova Gazeta, em Angola. Mas mais importante do que todo esse reconhecimento, ressalta a educadora, foi ter alcançado também a comunidade escolar. Avós, mães, pais e ex-alunos contribuem ativamente com o grupo, provando que a escola pública é um espaço de transformação social.
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