Como criar uma biblioteca comunitária no território?
Publicado dia 8 de novembro de 2018
Publicado dia 8 de novembro de 2018
Para se chegar na Biblioteca Caminhos da Leitura, é preciso subir uma rua ladeada pelo cemitério de Colônia, na região de Parelheiros (SP). Na antiga casa do coveiro, livros lotam prateleiras baixas para que qualquer mão possa alcançá-los. Grafites adornam as paredes exteriores, criando um ponto colorido em um lugar que sem a presença da biblioteca comunitária seria somente cinza.
A antiga casa do coveiro não é o primeiro lugar incomum que essa biblioteca comunitária, fundada em 2008, ocupou. Ela já esteve dentro da UBS (Unidade Básica de Saúde) do bairro, onde os livros eram receitados como remédio junto aos medicamentos. Antes de sua existência, não havia nenhum equipamento de cultura na região, tão rica em saberes locais.
Foi o desejo de 27 jovens que fez a biblioteca nascer e perseverar. São ainda eles, hoje adultos, que a coordenam. Sidneia Aparecida Chagas, sua irmã Silvani Aparecida Chaga e Rafael Simões são alguns dos responsáveis pelo espaço, que além de possuir um acervo diverso, funciona como espaço cultural para outras expressões artísticas.
A biblioteca também catalisa processos culturais da escola e outros equipamentos locais: sua equipe, de maneira fluída, coordena atividades para fazer valer “a literatura enquanto direito humano e, principalmente, enquanto ato prazeroso e não um ação forçada”, conforme detalha Rafael.
O desafio de aproximar literatura e população é grande. De acordo com a pesquisa Hábitos de Leitura, de 2016, 44% dos brasileiros não têm o hábito da leitura e 30% nunca compraram um livro. Em regiões descentralizadas, onde há uma escassez de equipamentos culturais, essa relação ainda é mais rara. O jeito que as bibliotecas comunitárias encontram para tangenciar a situação é sendo diferentes das municipais ou universitárias: tornam o acesso ao livro mais simples e lúdico, mediando a tríade literatura, comunidade e território.
Em parceria com a plataforma Cidades Educadoras, a biblioteca Caminho da Leitura desenhou uma metodologia que pode servir de inspiração para que os outros territórios também criem as suas a partir das demandas locais.
Para que uma biblioteca comunitária emerja, é preciso uma mobilização coletiva de quem a deseja. No caso da Caminhos da Leitura, essa mobilização se deu pela junção de três frentes, que encontraram na outra a possibilidade de construir juntos: havia uma comunidade jovem e em idade escolar, ávida por um espaço de leitura; moradores da região que careciam de equipamentos públicos de cultura como museus ou bibliotecas públicas; e, por fim, o IBEAC (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário), cuja gestora de projetos, Bel Santos Mayer, via em Parelheiros um terreno de possibilidades para se pensar no direito à literatura.
Sidineia e Rafael, os mais antigos participantes desse processo, se lembram dos malabarismos geográficos para conseguir o espaço: desde alocar-se no hospital até a casa do coveiro, a mobilização envolveu toda a comunidade: “Partiu muito da iniciativa das parcerias que foram construídas em Parelheiros e da vontade dos jovens daqui e da escola. Esta, na ausência de outros aparelhos, era o lugar onde a gente passava o fim de semana promovendo ou participando de alguma atividade”, recorda Sidineia.
Uma das sugestões do grupo é a aproximação com quem pode ter interesse em começar o projeto: caminhar pelas ruas, parar nos comércios locais e envolver-se com a comunidade jovem, que muitas vezes anseia por esses espaços mas não tem ideia de por onde começar a reivindicá-lo. É também nas conversas locais que se pode descobrir um espaço desabitado para servir de sede.
Na primeira reunião entre o IBEAC e a comunidade, os jovens foram presença massiva. Não à toa foram eles, junto com o resto da comunidade, que escolheram o nome da biblioteca. “Caminhos da Leitura” simboliza o trajeto pouco ortodoxo mas sempre coletivo do nascimento e assentamento de uma biblioteca comunitária.
Quando se começou a desenhar a biblioteca, havia o desejo genuíno por uma arquitetura convidativa, nunca encontrada quando os jovens da região se aventuravam pelos pontos de culturas de regiões próximas, como Santo Amaro.
“A maioria dos jovens aqui nunca tinha ido para uma biblioteca pública, e quando iam, era pedido o RG deles, comprovante de residência, uma série de burocracias. De pedir RG na periferia já basta a polícia!”, recorda Bruno Souza de Santos, articulador e mediador da biblioteca há cinco anos. “As crianças também reclamavam que os livros mais legais estavam nas prateleiras mais altas, então tinha sempre um adulto entre elas e o mundo.”
Na Caminhos de Leitura, os articuladores se esforçaram para erguer um espaço com mais possibilidades e menos entraves. O senso de pertencimento está nos livros ao alcance de todos, com prateleiras baixas e compartimentos lúdicos. Para se pegar um livro, não é necessário apresentar nenhum comprovante. Cada entrada na biblioteca é acompanhada por um mediador, que se aproxima do visitante, oferece café, escuta sua história, e o guia por um labirinto literário marcado com cores para facilitar a procura. Não há nenhuma placa de silêncio, pelo contrário: é incentivado que se fale sobre o que se lê.
“A biblioteca é um espaço democrático, e pensar a democracia acontece quando nos comprometemos a criar um lugar seguro, acolhedor e reflexivo. Pensar no jeito que se coloca um livro e que conversas se dão na biblioteca é pensar como ela se relaciona com as pessoas e a comunidade”, adiciona Bruno.
O imaginário cristalizado de um biblioteca asséptica e pouco acessível pode fazer com que a aproximação com a população jovem seja um desafio. Para contorná-lo, o primeiro passo que os mediadores da biblioteca deram foi a escuta e observação de seu público-alvo: o que os jovens ouviam? Que espaços eles gostavam de frequentar em seu tempo livre? Qual era a literatura que os atraia, e se não os atraía, por quê?
Ketlin Santos, gestora do espaço e articuladora, explica que foi durante uma roda de conversa que surgiu a ideia de que, para aproximar o jovem da biblioteca e, por consequência, do livro, não necessariamente a literatura seria o primeiro passo: “Conversando com os jovens, percebemos a importância que a música tinha em suas vidas. Então começamos a perguntar: o que vocês escutam? Alguns escutavam música nordestina, outros escutavam funk, e queriam ir a mais eventos e atividades que envolvessem música.”
Assim nasceu uma das iniciativas mais bem-sucedidas da biblioteca: o cortejo de leitura. Esse evento mistura a tradição do cortejo, que é a de caminhar musicalmente pelas ruas, ao som de tambores, convidando os passantes a entrar na serpente do desfile. Nessas ocasiões, são entoados versos de livro, e em algum ponto secreto da caminhada, um tapete se abre e vários livros se esparramam, chamando os participantes a sentar e ler.
Geralmente, o primeiro contato que a criança tem com o objeto livro é na escola. É um momento definidor dessa relação: se o ambiente escolar não incentiva uma relação de cumplicidade entre infância e literatura, é difícil criar esse afeto depois. Por isso, desde que começaram a trabalhar na Caminhos da Leitura, os mediadores perceberam a necessidade de estar próximos das escolas da região.
Foi observando elementos que saiam das ações das escolas que eles chegaram a conclusão que atividades como oficinas de grafite, estêncil e batalhas de slam faziam parte do cotidiano dessa população jovem, e que promovê-las dentro do ambiente escolar, aliando-as à literatura, chamava-os também a se aproximar dos livros.
Os mediadores também cultivam o costume de compartilhar eventos entre a escola e a biblioteca. Saraus e slams, fenômenos culturais de particular expressão na região, começam a ser preparados dentro da sala de aula, e ocorrem finalmente entre os livros da biblioteca comunitária.
#Acervo vivo e uma literatura que se relaciona com o território
Parelheiros é um território de diversidade cultural: é cercado por oito aldeias indígenas e remanescentes de imigração japonesa e alemã. É também um bairro negro e jovem, com uma população que enfrenta a ausência de políticas públicas de cultura e educação.
Pensar o acervo de uma biblioteca comunitária é levar em conta onde ela se insere. Isso porque os livros têm que fazer sentido para a população leitora. Assim, construir o acervo da biblioteca comunitária implicou olhar para questões de raça, gênero e classe que perpassam a vida da população local.
“Criamos rodas de conversa para falar sobre os anseios, sonhos, frustrações da comunidade, para depois chegar à literatura. A literatura pode ser uma ferramenta que nos ajuda na reflexão e compreensão de temas tão complexos quando estes que a gente pensa no território de Parelheiros”, explica Bruno. Ele conta que em rodas de leitura de mulheres, por exemplo, embasam as discussões nomes como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Mel Duarte.
Outra ação indispensável da biblioteca comunitária é aproximar os leitores dos autores. Ou seja, que os escritores e escritoras vivos, do território ou de realidades similares, participem da vida ativa da biblioteca. “Temos um acervo catalogado de autores que vieram à biblioteca. Tem Mia Couto, Luiz Ruffato, Olívio Jekupé e Daniel Mundukuru. A biblioteca está viva e em todos lugares”, arremata Sidineia.
Todos os voluntários que trabalham na Caminhos da Leitura têm como parte de seu trabalho a mediação. Não somente a que acontece dentro da biblioteca, mas também a que se espraia para equipamentos da região. “Eu gosto muito de usar o sentido da própria palavra mediação, que vem de mediar a ação. O mediador media um ato e um livro, seja num processo de conflito, de conversa ou de incentivo à leitura”, conta Sidineia.
Para isso, os mediadores da biblioteca utilizam técnicas de mediação que tornam mais próxima a relação com o livro: eles são compartilhados em rodas de conversa sobre o cotidiano, são lidos em voz alta, e também são trabalhados em exercícios de imaginação.
Independentemente da tática, a mediação tem que ser uma ação que estabelece a relação afetiva entre o leitor, o não-leitor e o livro: “A leitura do mundo antecede a palavra, como dizia Paulo Freire. Então falar com a pessoa quando ela chega na biblioteca é regra: oferecer um copo de água, saber de onde ela vem e o que busca ali. A gente presa por saber a história daquela pessoa que está vindo no nosso espaço”, conta Bruno.