publicado dia 21 de setembro de 2016
O olhar das crianças para o território: como ampliar escutas
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 21 de setembro de 2016
Reportagem: Danilo Mekari
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), uma cidade amigável para as crianças deve fornecer muito mais do que serviços básicos – como educação, saúde e saneamento – e proteção perante a exploração, violência e abuso. A iniciativa Child Friendly City (CFC) defende que as crianças possam influenciar decisões acerca do território onde vivem e expressar sua opinião sobre a cidade que desejam.
Tais premissas pretendem ampliar a participação social para todos os segmentos da sociedade civil, independentemente da faixa etária, radicalizando os canais de comunicação entre cidadãos e autoridades públicas em busca de uma cidade que acolha as vontades de seus moradores.
“A perspectiva de formular políticas públicas de forma participativa, levando em consideração os desejos e necessidades daqueles que serão atingidos por elas, é praticamente um consenso no meio acadêmico e no terceiro setor, apesar de ainda enfrentar resistência do poder público”, afirmam Raquel Ribeiro e Mariana Koury, do Projeto Criança Pequena em Foco (vinculado ao Centro de Criação de Imagem Popular – CECIP), que desde 2011 atua pela redução da violência contra a infância através da promoção da participação infantil na formulação de políticas públicas.
“A possibilidade das crianças serem escutadas e terem suas opiniões, hipóteses, soluções e reflexões incorporadas nas pautas das políticas públicas, trazendo um olhar específico sobre a cidade, abre uma nova possibilidade de relação com o poder público, permitindo que elas se vejam como sujeitos atuantes, cuja cidadania é respeitada e garantida”, observam. Ainda que as questões apresentadas pelas crianças não possam ser totalmente viabilizadas pela gestão pública, esse movimento de escuta “permite que elas participem de um processo no qual podem viver, de forma relevante, sua participação na ação pública, o que colabora com o desenvolvimento da autonomia, senso crítico e reflexão”.
Realizado pelo CECIP, o 2º Prêmio Nacional de Projetos com Participação Infantil já recebeu 50% a mais de inscrições se comparado à primeira edição, realizada em 2014. “A discussão sobre participação infantil no Brasil cresceu bastante nos últimos anos. Apesar de ainda ser um tema muito novo e desconhecido para a maioria das pessoas, já vemos muitos eventos que discutem esse assunto direta ou indiretamente e a proliferação de projetos que incluem a escuta e a participação dos pequenos no seu desenvolvimento”, observam Raquel e Mariana.
Em 2014, o projeto iniciou uma ação-piloto na comunidade de Manguinhos, na zona norte da capital fluminense, onde chamava atenção o alto índice de acidentes envolvendo veículos e crianças. Em parceria com a prefeitura do Rio de Janeiro, a ação buscou promover uma circulação mais segura no local e mais espaços de lazer para a infância.
Durante o processo de escuta dos moradores da comunidade sobre a mobilidade local, a iniciativa identificou que, em determinados temas, as crianças tinham uma visão mais abrangente do que a dos adultos. “Elas levam em consideração detalhes que muitas vezes já estão naturalizados na lógica de observação dos adultos”, revelam. “As crianças levaram em consideração fatores como o lixo acumulado nas ruas do território, a falta de calçadas ou a ocupação das mesmas por comerciantes e moto táxis, além dos demais fatores como sinalização, educação dos motoristas e pedestres, enquanto os adultos focaram na questão do trânsito de veículos, carros e poucas pistas.”
Em 2013, o Criança Pequena em Foco desenvolveu a publicação Vamos ouvir as crianças? Caderno de Metodologias Participativas, que possui dez propostas de oficina para a escuta das crianças. “Valorizamos a importância de preservar a criança na sua existência enquanto criança que brinca, que está no processo de descoberta de novos saberes e que precisa compartilhar suas vivências”, argumentam. “Como metodologia, buscamos ouvir as crianças sobre os assuntos propostos por nós, mas sem limitar a espontaneidade das mesmas, pois muitas vezes os pequenos não responderão objetivamente o que lhes foi perguntado – mas através dos seus relatos ou das suas ações torna-se possível identificar sua visão sobre o assunto.”
Durante o ano de 2015, o bairro do Glicério, na região central de São Paulo, foi palco para o projeto Criança Fala na Comunidade – Escuta Glicério, realizado pela iniciativa CriaCidade. Toda semana, educadores, urbanistas e psicólogos entravam e saiam de cortiços da região para ouvir das crianças o que elas achavam do lugar onde viviam – tanto da porta de casa para dentro como para fora.
Segundo Cristiane Lima, psicóloga que atua com educação popular, esse processo resultou na produção de uma maquete que continha os desejos das crianças para a Praça Malheiros. “Muitas crianças da região moram em pensões e cortiços. A falta de espaços para brincar sempre esteve muito presente em suas falas”, aponta Cris. O projeto buscou ampliar a participação da criança promovendo pequenas melhorias no bairro e em seu entorno, promovendo cortejos e encontros no espaço público, criando locais para brincadeira e convivência, dialogando com profissionais da região.
“Quando a criança ocupa a cidade, com seu encantamento e olhar colorido, o adulto passa a olhar para esse espaço de outra forma”
Para ela, uma metodologia de escuta da infância deve criar oportunidades para que a criança se expresse – seja verbalmente ou não – em diferentes linguagens, como fotografia e desenho, contando com a flexibilidade e criatividade do adulto. “O movimento corporal da criança é muito livre e pode se configurar em uma brecha para entendermos os seus desejos”, acredita.
Cris Lima enxerga no olhar da criança uma transgressão que pode provocar os adultos – em um movimento que se assemelha ao “despertar cívico”. “A presença da infância e da brincadeira no espaço público, no meio da cidade, em lugares que já estão estigmatizados e sofrem cotidianamente com a violência, a ausência e o abandono, é por si só um ato de resistência a essa forma do medo, do enclausuramento e institucionalização, de trancar a infância em condomínios e escolas”, argumenta.
“Quando a criança ocupa a cidade, com seu encantamento e olhar colorido, o adulto passa a olhar para esse espaço de outra forma, e a comunidade também. A criança provoca esse respeito e chacoalha as nossas certezas, podemos aprender muito com elas de um jeito simples.”
Além de influenciar as políticas públicas direcionadas à primeira infância, as crianças também são uma fonte inesgotável de inspiração para processos artísticos. O espetáculo Minhoca da Cabeça, do reconhecido e premiado Grupo Esparrama, utilizou a imagem de uma menina que supera o medo da rua construindo um barco para navegar pela cidade. “Tentamos entender e revelar os mecanismos que nos fazem acreditar que o espaço público é assustador e hostil e que, portanto, nos afastam dele – principalmente as crianças”, afirma Iarlei Rangel, diretor da trupe paulistana.
“Mas que cidade é esta por onde ela navegará? Essa cidade está preparada para receber uma criança? Qual é a cidade com que sonha uma criança?” foram algumas das questões que surgiram durante o processo de criação do novo projeto do grupo, intitulado Navegar, no qual os integrantes da trupe vão se reunir com diversos grupos de crianças para, junto com elas, “sonhar uma cidade”, de acordo com Rangel.
Os encontros serão acompanhados por artistas especialistas em linguagens diferentes (Sissy Eiko – fotógrafa, Daniel Viana – escritor e Marina Faria – ilustradora), que irão criar registros poéticos dos encontros entre o Esparrama e as crianças que ampliem as possibilidades de leitura desta ação.
”Acreditamos que a infância não é apenas um período de formação e de preparação para a vida adulta e produtiva. Acreditamos que existe uma apreensão do mundo vivido por elas e que elas falam sobre isto. Queremos construir este processo de escuta sincera que permita um diálogo efetivo com algumas destas infâncias.”
Sob a coordenação de Laila Sala, arte-educadora e coordenadora de Ação Educacional do CEU Heliópolis, o Navegar pretende desenvolver estratégias de ação específicas para cada um dos três grupos de crianças com quem trabalhará, respeitando suas dinâmicas internas, suas características de faixa etária e as especificidades pedagógicas do local onde estará atuando. As ações terão formato de oficinas de teatro e artes plásticas.
Segundo o diretor, a coordenação pedagógica dará suporte na interpretação destes encontros e nas questões éticas decorrentes do processo de escuta das crianças. “Este artifício de imaginar uma nova urbanidade, uma nova cidade, a partir do olhar da infância, será o estímulo principal para a construção do novo espetáculo”, aponta Rangel. “Acreditamos que a construção deste lugar utópico é potente para nos revelar poeticamente as contradições dos espaços urbanos, a constante disputa por seus territórios e uma possibilidade para aquilo que é novo.”
No final de agosto, após a realização do Seminário Se essa rua fosse minha… Vamos ouvir as crianças?, onde reuniram-se diversos atores sociais e iniciativas da área da infância para pensar e articular ações em conjunto, foi criado em São Paulo o Grupo de Ação e Escuta de Crianças.
Ouvir o que elas vivem, desejam ou aquilo de que sentem falta inaugura novas possibilidades de inseri-las no debate e nas decisões
Nas palavras de Adriana Friedmann, coordenadora do Mapa da Infância Brasileira, a criação do Grupo partiu da consciência da importância de se ouvir as crianças de diversas regiões da cidade sobre o que elas sonham e desejam para seus territórios, influenciada pela oportunidade que surge com as eleições municipais e a possibilidade de criar uma interlocução com o novo governo para que ele acolha as mensagens das crianças no seu direito de viver a cidade de forma integral.
“Crianças são atores sociais, autores das suas vidas e sujeitos de direitos. Ouvir o que elas vivem, desejam ou aquilo de que sentem falta inaugura novas possibilidades de inseri-las no debate e nas decisões de urbanistas, políticos e outros importantes atores no desenvolvimento de projetos e políticas públicas”, acredita Adriana. “Elas falam e se expressam através de linguagens próprias – brincadeiras, desenhos, maquetes e outras formas expressivas – e suas vozes revelam outros pontos de vista e saberes diferentes dos dos adultos. A possibilidade de dar-lhes espaços de voz e expressão é vital, tanto para o seu desenvolvimento saudável, quanto para transformar as cidades em espaços mais humanos, amigáveis e adequados para todos seus moradores.”
No início de setembro, o Grupo de Ação e Escuta de Crianças divulgou os princípios norteadores para os processos de escuta. Até o dia 12/10 serão recebidos registros e produções das crianças que participam das diversas iniciativas presentes no encontro. Estes materiais serão entregues ao futuro prefeito ou prefeita de São Paulo.
Segundo a coordenadora do MIB, uma das premissas do Grupo é entender que as crianças, “naturalmente e de forma espontânea”, dizem e se manifestam com relação ao que vivem, desejam, sofrem e vivem nas suas casas, bairros, escolas, ruas, comunidades, centros de saúde e espaços públicos.
Adriana crê que não há uma única maneira de realizar essas escutas. “Trata-se de entender, antes de tudo, quais são os canais de expressão de cada grupo de crianças – conforme a idade, o local, as condições de vida – e, a partir desta compreensão e sempre pedindo licença, poder adentrar nessas realidades através de propostas em que as crianças possam dizer o que sonham para seus territórios.”