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publicado dia 21 de junho de 2024

PL do Estupro pode aprofundar violações dos direitos de meninas no Brasil

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🗒️Resumo: A Câmara dos Deputados avançou em junho com o Projeto de Lei 1904/2024. Conhecido como PL do Estupro, a iniciativa propõe equiparar o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio simples, com pena prevista inclusive para vítimas de estupro. Especialistas em direitos das crianças e adolescentes apontam como a proposta pode aprofundar as violações em uma realidade já marcada por dificuldades no acesso ao procedimento de forma legal.

Apelidado de PL do Estupro, o Projeto de Lei 1904/2024, que propõe equiparar o aborto legal após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, viola principalmente os direitos de meninas de até 14 anos que são vítimas de violência sexual. É o que apontam especialistas que atuam na proteção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil.

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A iniciativa ganhou destaque após aprovação da votação em regime de urgência na Câmara dos Deputados no dia 12 de junho. Isso significa que o projeto pode ser apreciado em plenário a qualquer momento, sem depender da análise de comissões onde os debates sobre o tema poderiam ser ampliados com a presença de especialistas.

Após repercussão negativa, ecoada nas ruas e nas redes sociais, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), recuou e anunciou que a matéria será tratada pelos parlamentares no segundo semestre.

O que diz o PL do Estupro 

PL do Estupro: manifestações contrárias foram registradas em diferentes cidades
PL do Estupro, também conhecido como PL da Gravidez Infantil, é inversão absurda e perigosa, afirmam especialistas.

O texto que tramita na Câmara altera o Código Penal de 1940 e equipara ao delito de homicídio simples a interrupção legal de gravidez realizada após a 22ª semana. Atualmente, a legislação brasileira permite realizar o aborto quando a gravidez representa risco de vida para a gestante e em caso de gestação decorrente de estupro. Em 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) estendeu o direito para gestantes de feto anencefálico. Não há um limite de tempo estabelecido para a realização do procedimento nesses casos.

Desde 1940, a legislação brasileira autoriza a realização do aborto em caso de estupro

Caso entre em vigor, a punição para a vítima de violência sexual que engravidou e decidiu interromper a gestação poderá ser de até 20 anos de prisão. A pena é maior do que a aplicada para o estuprador, prevista em até 12 anos.

“Meninas ou mulheres que sofreram uma violência sexual que resultou em uma gravidez e que não conseguiram o acesso ao aborto antes das 22 semanas serão enquadradas no crime de homicídio e equiparadas a ‘assassinas’. Estamos falando em transformar vítimas de uma sociedade que foi ineficaz na proteção a elas em criminosas. Uma absurda e perigosa inversão”, analisa Cynthia Betti, CEO da Plan International Brasil, organização da sociedade civil que atua na promoção dos direitos de crianças, adolescentes e jovens.

Barreiras para o acesso a um direito

PL do Estupro
Meninas menores de 14 anos são as maiores vítimas de estupro no Brasil.

Segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2023 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o país registrou em 2022 o maior número de estupros da história, com 74.930 vítimas, sendo 75,8% casos de estupro de vulnerável, ou seja, quando ocorre com crianças com menos de 14 anos, pessoas com deficiência intelectual, enfermidade ou que, por alguma razão, estejam incapacitadas de consentir com o ato sexual.

Para Irene Rizzini, docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI) do Rio de Janeiro, o PL 1904/2024 representa risco em um cenário onde meninas vítimas de estupro já enfrentam barreiras para o acesso ao aborto legal, como desinformação, medo da estigmatização, falta de serviços de saúde especializados e burocracias que atrasam o processo.

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“Uma vez que a menina ultrapasse todas essas barreiras, existem profissionais de saúde que, por razões pessoais, religiosas ou éticas, se recusam a realizar abortos, mesmo quando legalmente permitidos e após decisões judiciais. Essa recusa pode complicar ainda mais o acesso ao aborto legal, forçando-as a buscar outros profissionais ou instituições, muitas vezes a longas distâncias, o que prolonga seu sofrimento e aumenta os riscos associados à gravidez indesejada decorrente de estupro”, descreve Irene.

A especialista chama atenção ainda para o fato de a violência sexual contra crianças e adolescentes carregar “repercussões graves e duradouras para o seu desenvolvimento”. Segundo ela, “as consequências dependerão de vários fatores, como a idade ou momento do ciclo de vida, em que condições ocorreu a violência, bem como fatores da subjetividade de cada pessoa. Alguns dos principais impactos registrados são ansiedade, depressão, síndrome do pânico, comportamentos autodestrutivos, entre outros”.

Ansiedade, depressão, síndrome de pânico e comportamento autodestrutivo são impactos da violência sexual em crianças e adolescentes 

A Childhood Brasil, instituição de atua na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, com foco na prevenção e no enfrentamento da violência sexual, aponta que o transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo, que causa sofrimento intenso e afeta várias áreas da rotina, como relacionamentos e trabalho, é desenvolvido por 57% das vítimas.

Além disso, meninas de até 14 anos vítimas de estupro tendem a demorar a identificar a gravidez. “O estupro de vulnerável no Brasil tem característica de ser intrafamiliar, portanto, além da violência que sofreu, essa menina vive uma pressão para não revelar o que está acontecendo”, descreve Cristina Cordeiro, diretora do Instituto Liberta, organização que desenvolve estratégias para quebrar o silêncio em torno da violência sexual contra crianças e adolescentes.

“Uma pesquisa do Hospital Pérola Byington [em São Paulo] mostra que as meninas chegam cada vez mais jovens e após a 23ª semana para iniciar o processo de aborto legal e ainda enfrentarão uma longa jornada burocrática que desestimula o processo”, afirma Cristina. 

Leis já existentes não protegem meninas vítimas de violência 

O Brasil dispõe de diversos mecanismos legais para proteger mulheres, crianças e adolescentes da violência sexual, como a Lei Maria da Penha, que além de criar formas de coibir a violência doméstica e familiar, estabelece medidas de assistência e proteção às vítimas. Há também a  Lei do Minuto Seguinte, que oferece garantias imediatas a vítimas de violência sexual, como atendimento pelo SUS, amparo médico, psicológico e social, exames preventivos e informações sobre seus direitos. 

A proteção de crianças e adolescentes consta ainda no artigo 227 da Constituição Brasileira, que determina que os direitos dessa população devem ser prioridade e que o Estado deve punir “severamente” o abuso, a violência e exploração sexual dessa população. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reafirma que esses entendimentos devem ser soberanos na aplicação da legislação.

Em 2017, o Brasil sancionou a Lei 13.431 que normatiza e organiza o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente vítima ou testemunha de violência. O dispositivo, além de definir as formas de violência existentes, estabelece a escuta especializada e o depoimento especial como direitos a serem observados perante a rede de proteção.

A efetivação desses direitos no Brasil, entretanto, ainda enfrenta desafios para assegurar uma infância livre de violências. “Há leis, sim, mas elas ainda não se configuram eficazes e os entraves no trabalho das redes e dos serviços de proteção do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente ainda são muitos, desde os protocolos de prevenção e acolhimento em nível intersetorial, com o envolvimento principalmente dos setores da educação, saúde e assistência social, ao encaminhamento das denúncias aos órgãos da segurança pública e às decisões em processos judiciais”, explica Cynthia Betti, CEO da Plan International Brasil.

Outro problema apontado pelas especialistas é a falta de ações do poder público para as estratégias de prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes, como é o caso da educação sexual e reprodutiva dentro das escolas. “Temos sempre que pensar na prevenção para que a violência não aconteça, por meio de projetos de educação e conscientização. Para as crianças vítimas de violência, o acolhimento, o encaminhamento para atendimento e todo o apoio profissional é necessário, além, lógico, da separação imediata da vítima da pessoa que cometeu a violência. Mas é importante destacar o ensino sobre educação sexual nas escolas, desde a infância, para que as crianças possam atuar também na sua autoproteção e terem insumos para reconhecer e denunciar uma situação de violência”, defende Cynthia. 

PL do Estupro: nova violência contra crianças e adolescentes

Mulher participa de manifestação contra o PL do Estupro
Sociedade civil critica a medida e organizações manifestaram preocupação com retrocesso nos direitos e na proteção de crianças e adolescentes.

Diante do avanço do tema na Câmara, uma série de instituições e movimentos sociais se posicionaram contrárias ao PL do Estupro. Em comunicado, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) se referiu à proposta como uma “nova violência” e um processo de “revitimização” imposto pelo Estado, além de “retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual”.

A discussão acerca do aborto legal ganhou força no Congresso Nacional após uma resolução do Conselho Federal de Medicina proibir médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal, necessário para interrupções de gravidez acima da 22ª semana. Em 24 de maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, suspendeu todos os processos judiciais, procedimentos administrativos e disciplinares motivados pela resolução do CFM por considerar que a resolução violava direitos constitucionais.

Para Cristina Cordeiro, do Instituto Liberta, “o que está em jogo não é se as pessoas são a favor ou contra o aborto, o que hoje a sociedade se mobiliza para mostrar é a grave perda de um direito constitucional. É a retirada de um direito de pessoas que são vítimas e que terão esse direito cerceado”.

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