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publicado dia 5 de julho de 2019

Samba da 13 e as disputas pelo espaço público no território do Bixiga (SP)

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No Bixiga, bairro de tradições afro-brasileiras e italianas que fende o centro da capital paulistana, convivem múltiplas manifestações culturais: há a tradicional escola de samba Vai-Vai, cantinas italianas, a sede do jornal abolicionista Clarim da Alvorada, a Paróquia Nossa Senhora Achiropita e também o Samba da 13, realizado pelo grupo Madeira de Lei, que acontece todas sextas-feiras na rua Treze de Maio.

Leia +: Memória e resistência nos bairros negros da cidade de São Paulo 

É nesse território retalhado de culturas que ocorre uma disputa pela ocupação da rua – uma das mais famosas do bairro. Está em andamento, no Ministério Público, um inquérito civil com reclamações contra o Samba da 13. 

As denúncias foram protocoladas em 2018 pela Coordenadoria Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEG), a Associação de Moradores Viva a 13!, a paróquia, a Polícia Militar e a Prefeitura Regional da Sé. Entre as acusações, o samba é responsabilizado por barulho excessivo e atração de um público maior do que o comportado na rua, o que facilitaria tráfico de drogas, violência e prejuízos para os comerciantes e moradores.

“Na visão deles, todos os problemas sociais sempre foram arrastados pelo samba”, relata Namur Scaldaferri, percussionista e fundador do Grupo Madeira de Lei, que há dez anos toca na rua. “Dizem que o samba é culpado do tráfico, da pobreza, só que é o contrário: o samba é a voz da liberdade contra isso. As músicas dos sambistas retratam a realidade do povo. O samba é porta-voz da miséria e da perseguição que a classe desfavorecida sofre e sempre sofreu no Brasil”. 

As reclamações contra o samba são antigas, mas os ânimos se acirraram em 2018,  quando no dia 1 de junho, o grupo fechou a rua com uma autorização da CET, atraindo cerca de 3 mil pessoas. Devido ao grande fluxo em via estreita, tanto o grupo quanto a coordenadoria, acharam mais seguro limitar o acesso de carros no local e a autorização se manteve até o final do ano

Entretanto, dias antes do evento, se descobriu que corriam diversas reclamações contra o Samba da 13 no Ministério Público, e que autorização não tinha ocorrido em todas as instâncias. Enquanto o samba alega confusão burocrática com a autorização, os agentes de acusação encontraram no evento um motivo para justificar as denúncias de algazarra. 

Desde então, o grupo Madeira de Lei alega o aumento de policiamento na região, intimidação ao comércio local que apoia o samba e também dificuldade de diálogo para pensar soluções coletivas. Já os proponentes da denúncia afirmam que não estão perseguindo o samba, e sim, querem legalizar sua estrutura de forma a não causar prejuízos no local.


Na tentativa de proteger o samba de uma possível remoção e adicionar peso ao processo que ocorre no Ministério Público, o vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP) entrou com um pedido de projeto de lei para tornar o Samba do Bixiga Patrimônio Imaterial de São Paulo.

“Ninguém quer que o sambe acabe”, alega Patrícia Vilanova, presidente do CONSEG. “Mas o samba não precisa ser necessariamente na Treze de Maio. O Bixiga é grande e, de repente, pode ser em um canto que não atrapalhe tanto, não incomode, não prejudique as pessoas, o comércio e os moradores”. 

“O Bixiga é um bairro culturalmente formado pelo samba, ritmo de raízes africanas. Temos que dar valor a esse patrimônio do bairro. Sempre tem alguma coisa a melhorar, mas o samba não pode ser tratado como uma coisa ruim, coisa de bandido ou que traz sujeira e prejuízo”, afirma o vereador.

Enquanto o processo corre no Ministério Público e os atores do território se articulam, o Portal Aprendiz ouviu alguns dos envolvidos na disputa.

Grupo Madeira de Lei, representado por Namur Scaldaferri, percussionista e fundador e Carla Borges, produtora.

Namur: Tivemos acesso aos processos de um auto onde nós nunca fomos chamados. O Ministério Público ouviu só um lado da história, tem que ouvir os dois, e nós nunca fomos procurados pela procuradoria para nos defender. Se em dois minutos pudéssemos falar, vocês veriam que a nossa responsabilidade é o Samba da 13 naquele quarteirão, e que não há como sermos responsáveis por todos os problemas do bairro.

Os movimentos de samba de rua sempre travaram uma guerra em São Paulo, em particular no Bixiga. Eu nasci e cresci vendo os maiores artistas do Brasil passarem por essas ruas. Não fui que eu criei a resistência, ela é histórica. Brigamos pela sobrevivência de uma cultura e por um direito nosso que é o de ocupar um espaço público. E não podemos esquecer que o samba sempre foi perseguido. Toda hora que falam que o samba vai morrer, surgem diversos movimentos sociais e culturais para lutar contra isso. 

Carla: O samba do Madeira de Lei educou e provou que as pessoas podem ficar no meio da rua, saírem de suas casas, se sentirem seguras, irem para uma rua onde tem samba, cantina, teatro. Ele proporciona a oportunidade para quem tem ou não tem condições. Milionário, universitário, morador de rua. Ali não se paga nada para chegar e para escutar. Oferecemos uma cultura gratuita que seria obrigação do Estado fazer. 

O samba é um exemplo de cidadania, educação e segurança. Nunca ninguém foi preso, nunca precisou de atuação da Polícia Militar.*

*Segundo investigação conduzida por Toninho Vespoli para tornar o samba Patrimônio Imaterial, não há nenhum Boletim de Ocorrência relativo ao Samba da 13. Já no auto do processo, a Polícia Militar apresentou cópias das reclamações e indicadores criminais que revelariam aumento de violência na região.


Namur:
O samba acordou o Bixiga. Eu mudei de lá há cerca de dez anos, era um lugar que ninguém queria falar e ninguém queria ir. Estava jogado às traças, comércio falido, poucos bares, e hoje vários abriram em função do samba. Houve revitalização do bairro, o poder público começou a cuidar, fizeram ações na 14 bis, na praça Dom Orione, no escadão. Se o samba não acontecesse, ninguém lembraria que o bairro existia.  Nos mesmos dias de perseguição ao Samba do Bixiga, os bares do quarteirão de cima podem ficar com as mesas nas ruas. Então a lei lá é diferente? Não tem blitz na porta das cantinas? É que o nosso samba é de maloqueiro. E lá é da elite. É uma campanha conservadora que está invadindo o Brasil, mas a gente vai resistir.

grupo madeira de lei no bixiga
O percursionista Namur em apresentação do grupo Madeira de Lei no Bixiga / Crédito: Lucas Lima

Coordenadoria Estadual dos Conselhos Comunitário de Segurança (CONSEG): Patrícia Vilanova – presidente do conselho; Adaury Buna – vice-presidente; e Margharete Abussamra, comunicação.  

A gestão atual do CONSEG assumiu em maio deste ano. As denúncias protocoladas no Ministério Público provem de antes da atual gestão, que pediu para deixar claro  que ainda está se inteirando do processo. 


Margarethe:
Não temos a intenção de estar do lado de cá ou do lado de lá. A nossa função é fazer o melhor para os dois lados. Inclusive, foi determinado uma proposta para que, nessa nova gestão, em cada reunião do CONSEG seja levado um representante de cada um dos atores do bairro. O CONSEG é do povo, dos comerciantes e da comunidade.  Ninguém quer tirar o samba. Ainda vamos conversar muito, estamos abertos para fazer reunião com o Samba da 13, com o vereador [Toninho Vespoli], com os moradores, comerciantes e todo mundo. 

Patrícia: Assumimos a gestão faz 15 dias apenas. Estamos sabendo dos processos protocolados, mas ainda estamos nos inteirando do assunto. O samba é uma coisa de cultura, não pode parar de jeito nenhum, ele tem que existir. Mas ele não pode existir de qualquer jeito. A rua Treze de Maio tem vários restaurantes nos dois lados, que existem há 50 e 60 anos cada um, empregando uma dezena de funcionários. Não se pode numa sexta-feira simplesmente fechar a rua e esse comércio todo ficar parado. Olha o prejuízo disso, dos empresários, dos funcionários. 

Adaury: Há moradores que eu conheço que alegam que o samba é tradição do Bixiga, que ele respira samba. Mas esses moradores também alegam que esse samba que o Bixiga respira, que os moradores e comerciantes gostam e que fizeram a história do bairro, é um samba de mesa, é um samba pagode. Não é escola de samba, não é batucada no meio da rua. Isso é outra coisa, isso é carnaval. Não é o samba que o pessoal está querendo que permaneça no Bixiga. O samba que os moradores e comerciantes querem é o samba baixo tocado no violão, não o samba de rua. Precisamos levantar qual o tipo de samba que esse movimento [O Samba da 13] quer implantar periodicamente na Treze de Maio. Se for esse com desfile, vai ser mais difícil. 

Consta no processo do Ministério Público: “destaca-se a participação da Vai-vai no patrocínio dos eventos de rua, como o Grupo Madeira de Lei”. Namur, que já foi compositor campeão pela escola de samba, garante que a escola não patrocina o grupo e não tem relação com a realização do evento às sextas-feiras.


Os antigos do bairro falam que o samba raiz do Bixiga é o samba do Adoniran Barbosa, do Demônios da Garoa, não é esse samba de batucada, desfile para lá e pra cá, que faz um barulho imenso e “atormenta” a vida dos moradores e impede o fluxo. 

Patrícia: Eles [o Grupo Madeira de Lei] falam que querem uma autorização de 200 pessoas, mas nunca na vida o número estipulado vai comparecer. Vai ter mil, três mil. Não tem controle disso. E aí nessas 3 mil pessoas tem mil problemas. Tem negócio de banheiro, de ambulância. Tem que ter toda uma estrutura. Já que é para ter um negócio, que seja um negócio bacana. 

O samba do Bixiga existe e sempre vai existir. Não é preciso uma coisa nova como essa que está querendo ser implantada para se chamar o Samba do Bixiga. O samba do Bixiga já existe há anos e anos. Esse samba e cultura, ninguém é contra. Se está querendo ser implantado uma outra coisa, é porque é novo e tem outro estilo. Precisa ser estudado e chamar as partes envolvidas para conversar. 

grupo madeira de lei
Samba do Bixiga ocupa a rua 13 de Maio / Crédito: Facebook do grupo Madeira de Lei

Igreja Nossa Senhora da Achiropita: Padre Pedro Bertolini, vigário paroquial. 

“Estão alegando que o movimento [os agentes do território que se uniram para fazer a denúncia] é contra o samba. Muito pelo contrário. Temos uma relação muito grande com a Vai-Vai. Nossa maior preocupação tem sido com a situação de degradação, a multidão de pessoas, lixo na rua, drogas e violência. Grande quantidade de menores, barulhos infernais na noite inteira. É algo assustador. O bairro têm se tornado um espaço de drogas e violência. Quem é que gostaria de ter isso em frente a sua casa? 

Nós não somos contrários a diversão, como também fazemos a festa da Achiropita. Mas sabemos que São Paulo está ficando uma cidade difícil. Precisa respeitar mais, conservar o que é bom. A rua tem um mística particular, de restaurantes, de bares, de mistura de culturas. Nós também temos uma missa afro, uma série de ações que implementamos para aumentar a diversidade. Tem que dialogar, tem que entrar num consenso. E eu acho que isso deveria ser feito de uma maneira bastante madura e profissional. 

Projeto de Lei para tornar o samba do Bixiga patrimônio imaterial: Vereador Toninho Vespoli (PSOL) e Netto Duarte, integrante do mandato. 

Toninho: Tornar o samba do Bixiga um Patrimônio Imaterial ajuda o Ministério Público a perceber que a Câmara – que é um receptor da sociedade – está colocando o samba com um grau de importância e que não pode ter uma tratativa desse jeito. Sempre tem alguma coisa a melhorar, mas os problemas de drogadição ou de violência tem em qualquer lugar da cidade, independente de ter samba ou não. 

A maioria dos governos que passaram pela prefeitura não conseguem perceber que o patrimônio, para além do arquitetônico, consiste também nas pessoas, nas culturas. O samba já virou um polo turístico e pode gerar muita riqueza para nossa cidade. 

O Ministério Público chamou os grupos envolvidos do Samba da 13 para escutar, ou já foram chamados para uma forma de pressão? Até agora o diálogo não existiu, o Ministério Público já tomou posição antes de escutar o outro lado. Os argumentos que eles usam são muito frágeis: se tirar o pessoal do samba de lá, as ruas vão ficar muito mais desertas, o que vai tornar tudo perigoso. Se você revitaliza e as pessoas ocupam o espaço público, todo mundo usa e a rua fica mais segura. 

Também é preciso ressaltar: o samba tem uma raiz na negritude. Reconhecer o samba como patrimônio imaterial é também valorizar uma cultura que tem peso significativo em nosso país, o país que mais escravizou e comprou escravizados. Então eu acho que essa perseguição tem muito a ver com o preconceito. 

Netto: É importante deixar registrado que um dos problemas alegados no processo contra o samba é o fluxo de gente que se concentra ali. Porém, estamos nos aproximando do mês em que aquele perímetro é fechado para uma das maiores festas da cidade, a Festa da Achiropita. Ela é importante, a gente apoia, só que, como é uma festa da cultura italiana, ninguém fala nada. É uma contradição porque a Achiropita também traz uma grande concentração de público e o samba é que está sofrendo essa perseguição. 

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Até o fechamento da matéria, reuniões entre as partes envolvidas foram realizadas, mas ainda não houve consenso. 

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