publicado dia 24 de agosto de 2016
Patrimônio cultural, tradições afro e comunidade sustentam ocupação da Casa de Cultura Fazenda Roseira
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 24 de agosto de 2016
Reportagem: Pedro Nogueira
A busca de Alessandra Ribeiro começou com uma inquietação antiga. Queria entender porque sua história foi apagada, escondida e invisibilizada. Neta de Benedito “Dito” Ribeiro, mineiro que trouxe seu jongo para Campinas – e que hoje batiza a Associação Comunidade Jongo Dito Ribeiro, que mantém a Casa de Cultura Fazenda Roseira -, ela começou a notar o sistemático escamoteamento de sua herança ancestral. Rumou para o curso de História, para o mestrado e o doutorado em Urbanismo, e começou a entender o que foi a escravidão, o pós-escravidão e como suas tradições foram sendo abandonados na procura de inclusão numa sociedade que a negava.
“O jongo foi um presente para a minha vida. Eu me reconectei com meu avô que nunca vi. A ancestralidade é sábia. Ela guarda estratégias, resistências, nos oferece caminhos e escolhe quem vai ser o guardião. Ele renasce comigo, que sou de uma geração posterior, e renasce com uma força ancestral. O jongo é para todo mundo, mas nem todo mundo vai cuidar dele”, reflete a jongueira, pesquisadora e gestora da Roseira.
A sede da antiga fazenda ficava próxima ao quintal da casa da mãe de Alessandra, onde o grupo, que se entende hoje como uma comunidade cultural negra urbana, começou a se reunir. De lá, enquanto costuravam seus caminhos individuais e coletivos, olhavam, das margens, o antigo casarão que, em vias de se tornar um equipamento público, ia sendo desmantelado aos poucos pelo antigo dono: os itens da casa iam sendo subtraídos e os terrenos viravam loteamento para novos empreendimentos imobiliários. Quando as árvores foram derrubadas, o grupo levantou a vista e decidiu agir.
“A ideia era registrar e denunciar para a prefeitura. Não imaginávamos que ali iria se tornar nossa casa, não era esse o nosso pensamento. A gente achava que a prefeitura ia cuidar e nós poderíamos usufruir. Mas quando vimos que dependia de nós, entramos com tudo: não só como denunciantes, mas como cuidadores daquele local”, relata Alessandra, que reforça: “Nossa história nasce de um desejo de cuidar e compartilhar”.
Quilombo urbano
Do sonho da ocupação, feita em 2008 e ativa até hoje, surge a necessidade de pensar o espaço. Segundo Alessandra, não era moradia que eles buscavam. Era sim preciso que a casa impactasse a vida “de cada um que chegasse naquele lugar”. Para consolidar esse sonho, era necessário se amparar em dispositivos legais para garantir a conquista. “Quando chegamos na Roseira, logo vimos que não fazia sentido ser apenas a sede do jongo. A gente entendia que ela tinha que ter a dimensão dos nossos antepassados, que ali viveram e trabalharam como escravizados. Do que nos foi imposto como senzala, queremos fazer casa grande. Nós estamos numa guerra cultural, social e política com a cidade e com sua estrutura racista e todo mundo quer tirar nossa legitimidade em qualquer oportunidade”, relembra.
Como amparo, buscaram o reconhecimento do jongo como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2005; em Campinas, foi criada a lei que reconhece o jongo como patrimônio imaterial de dentro da ocupação. Segundo Alessandra, para o CONDEPACC, órgão de preservação do patrimônio histórico de Campinas, não era interessante tombar a fazenda, mas a partir da construção “da dimensão do intangível, da prática do jongo, da comunidade negra” foi possível conquistar a gestão compartilhada do local.
“Todo o processo até chegar na oficialização formal da gestão foram aprendizados contínuos. O desafio é enorme por conta do racismo do Estado, que está acostumado a entender a cultura afro como vulnerável. Quando eles se deparam com um grupo que entende as estruturas e fala por si mesmo, a história muda. Tanto que somos o primeiro exemplo do estado de São Paulo no qual a discussão ampliada do patrimônio imaterial defende o material e sustenta uma comunidade”, atesta.
Educação afro
Para fortalecer ainda mais a ocupação, criaram um plano pedagógico baseado na Lei 10.639/03, que regulamenta a implementação do estudo da história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos escolares das redes de ensino do país. Por conta disso, a Casa de Cultura tem tratado e ensinado sobre cultura, história e mitologia desde uma perspectiva afrobrasileira.
“A lei estrutura toda nossa proposta pedagógica, da formação de professores à convivência dos alunos. Temos um trabalho permanente de receber estudantes e professores que é baseada nos pilares da cultura afro e africana, na educação formal e não formal, e na educação patrimonial, porque somos um bem registrado. Fazer com que os jovens compreendam que patrimônio é tanto o edifício quanto nossos saberes, os temperos das avós e suas rezas, nos ajuda muito politicamente”, afirma Alessandra.
Exemplos dessa união de patrimônios, culturas afro e meio ambiente são o projeto Ossaim, que trabalha com etnobotânica e ervas, preservando saberes ancestrais dos quilombolas; o projeto Oxóssi, que trabalha agricultura urbana e plantio de hortaliças; o projeto Ogum, de manejo ambiental; e o projeto Oxum, que trabalha na despoluição do riacho que atravessa a Área de Proteção Ambiental (APA) da Casa de Cultura.
O local mantém uma programação intensa, que se estende por toda semana. Aulas de capoeira com o grupo Ibeca, escola de Curimba (toque e cânticos de religiões de matrizes africana), aulas de Hip Hop, roteiro afro para escolas públicas e privadas (mediante agendamento), espaço Sabores das Marias – Cozinha Afro, Teatro do Oprimido, oficinas de jogos, contação de histórias, Cineafro e diversas celebrações – que vão das rodas de jongo ao Carnaroseira, o carnaval da comunidade.
Eles também mantém o laboratório Afrohacker, que recolhe e divulga o acervo da casa e realizaram, na cidade de Campinas, um roteiro afro, vinculado à Secretaria de Turismo, que marca a memória e a presença negra na cidade, partindo de 44 placas em praças, ruas e mobiliários urbanos como minibiografias de personalidades negras da cidade.
Tudo isso, relata Alessandra, é mantido por um coletivo de voluntários/as, uma grande família “que ama o que faz”. Boa parte do financiamento da casa vêm das atividades e da recepção de escolas particulares. Quem quiser conhecer e participar, é convidado por Alessandra, que ressalta que o “lugar é para todos e todas”.
A Casa de Cultura Fazenda Roseira fica na Rua Domingos Haddad, nº 1, Residencial Parque da Fazenda. CEP: 13060-563, em Campinas (SP). Acompanhe o blog da Fazenda Roseira e da Comunidade Jongo Dito Ribeiro e não perca nenhuma novidade pela página do Facebook do centro cultural.
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