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publicado dia 12 de dezembro de 2022

“Ocupar um palácio, acima de tudo, é um momento de reparação histórica”, ressalta porta-voz do Museu das Favelas

Reportagem:

Inaugurado em novembro no centro de São Paulo (SP), o Museu das Favelas reverencia a memória, a potência e a herança das lutas de mulheres e homens que, por viverem em favelas, foram historicamente marginalizados e invisibilizados pelo poder público no Brasil.

O termo “favela”, popularizado no início do século XX, batizou os primeiros aglomerados urbanos de habitações populares no Rio de Janeiro (RJ).

O nome é emprestado da planta Jatropha phyllacantha, conhecida no sertão nordestino como favela, faveleira ou mandioca-brava, endêmica na região da Bahia que foi palco da Guerra de Canudos (1896-1897).

Esculturas feitas em crochê levam assinatura da artista Lidia Lisbôa em parceria com outras sete mulheres do Coletivo Tem Sentimento e da Cooperativa Sin Fronteras – Carlos Pires

Ao fim do conflito, muitos soldados regressaram ao Rio de Janeiro sem a assistência prometida pelo governo acabaram por ocupar o Morro da Providência em barracões improvisados e com pouca infra-estrutura. Ali surgiu a primeira favela brasileira, em 1897, na então capital imperial do Brasil. Hoje, 17 milhões de pessoas vivem em cerca de 13 mil favelas em todo o país, somando um potencial de consumo de 187 bilhões.

Mais de um século depois, a inauguração do Museu das Favelas em São Paulo ocupa um espaço importante na região central da cidade: o Palácio dos Campos Elíseos, historicamente associado às elites cafeicultoras e escravistas paulistas.

Com a proposta de ser um ponto de encontro, acolhimento e potencialização das memórias e produções presentes nessas comunidades, o museu deseja se conectar diretamente com elas, ao mesmo tempo em que simboliza reparações históricas. O museu é projeto do governo do estado de São Paulo em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA).

No espaço de 8 mil metros quadrados do palacete, o museu já recebeu o encontro Ser Favela, que promoveu troca de experiências e estratégias de resistência. Estão em cartaz também as exposições Favela-Raiz, com cinco instalações sobre ancestralidade e identidade, e Identidade Preta, sobre os 20 anos do Festival Feira Preta, maior evento de cultura negra da América Latina. Além dos espaços expositivos, o museu terá biblioteca, auditório e centro de empreendedorismo.

Educação e Território conversou com a coordenadora de relações institucionais do Museu das Favelas, Carla Zulu, que também é ativista de causas raciais, sociais e do movimento hip-hop. Confira a entrevista:

Ed&T: O Museu das Favelas está no Palácio Campos Elíseos, no centro de São Paulo. Qual a importância de ocupar este endereço?

Carla Zulu: O Museu das Favelas está localizado no centro e faz um hub de entretenimento, comunicação de memórias e potencialidades. A intenção é comunicar para as periferias, mas também ser essa central onde as periferias se comunicam para o museu. É importante dizer que o Museu não vai inventar nenhuma roda, ou reinventar neste caso, mas sim potencializar as coisas que a favela produz.

E por que ele tá no centro e não em uma periferia? Vamos pensar primeiro na geografia. Se o Estado coloca o Museu na Zona Sul, muito menor será a frequência e possibilidade para a Zona Leste conseguir visitar esse museu. E estando no Centro como a palavra mesmo diz, todas as periferias conseguem chegar com mais facilidade.

Ocupar [o Palácio Campos Elíseos], acima de tudo, é um momento de reparação histórica, porque esse palácio foi construído por mãos negras, precarizadas, subalternas e essas pessoas nunca tiveram a possibilidade de adentrar esse espaço. Agora, promovemos essa retomada de poder, essa alternância, fazendo com que estas pessoas periféricas sejam protagonistas e se vejam como pessoas especiais dentro de uma construção que outrora foi feita pelos seus pais, seus avós e que invisibilizou essa passagem por lá.

Ed&T: Diante da histórica criminalização da manifestação artística e cultural das favelas, qual a contribuição do acervo e proposta do Museu ?

CZ: A proposta é comunicar, preservar e acima de tudo potencializar essas manifestações artísticas, mostrando inclusive para o centro de São Paulo e para todo o Brasil o quanto a favela é criminalizada e estigmatizada.

A partir desses momentos de celebração e potencialização, damos uma cara nova pra favela, mesmo que seja a mesma cara de sempre, porque é importante desmistificar. Quem não vai às favelas tem uma outra visão sobre o que ocorre dentro delas. E não estou dizendo que favelas não tenham pontos de escassez, abandono do estado, mas há também muita ação cultural efervescente, educação, pensamento criativo, escolas e museus comunitários.

É importante dizer que o Museu das Favelas não é o único museu de favela, há várias manifestações de museologia comunitária e social e queremos, inclusive, dar luz para essas pessoas, tirar o olhar de criminalização que a favela recebe.

Ed&T: Como relacionar a produção cultural dos territórios periféricos à educação ?

CZ: Para nós, uma coisa está totalmente ligada à outra, porque a produção cultural de um território incide diretamente na formação das pessoas periféricas. É importante saber que cultura é um conjunto de costumes, e dentro dos nossos costumes está também o letramento racial, o letramento periférico, os bons modos. Então, nós sabemos que educamos nossos filhos, que são favelados e periféricos, para um Brasil melhor. E dentro dessa educação despontam grandes ações culturais, porque os territórios pulsam essa efervescência. Estamos falando de cursinhos comunitários, cursos de inglês comunitários, bibliotecas, rodas de leituras e conversas, e tudo isso parte primeiro de uma produção cultural.

Porque às vezes a gente produz algo relacionado à música, por exemplo, sem saber que isso também é educação. Como eu vou falar de um baile se eu não souber o que está nas letras, como vou falar de dança se não souber a história da dança? Então, tudo está muito ligado à educação, porque toda produção periférica é antes de tudo educacional.

Ed&T: Ao reunir memórias, histórias, lutas e trajetórias de quem vive na favela, podemos considerar o Museu como um símbolo de resistência?

CZ: O Museu das Favelas nasce dessa demanda popular.Ele é, acima de tudo, um clamor para que as favelas não morram enquanto ideia, enquanto simbologia de resistência. É importante dizer também que nenhum favelado quer viver na favela, nós queremos uma sociedade melhor, moradia digna, justiça social, então é um símbolo gigante de resistência.

O ideal é que o mais breve tempo possível as favelas ocupem somente o museu e que as moradias sejam dignas e que a gente se orgulhe de onde a gente mora. Quando a gente diz: ‘Eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela em que eu nasci’ estamos falando de saneamento básico, infraestrutura adequada, educação, saúde, uma economia arrojada. Porque a favela produz: estamos falando de R $167 bilhões do PIB produzido pelas favelas. Ou seja, onde está o buraco? A gente sente mesmo é a ausência do Estado. Se o braço do Estado falta, estamos ali resistindo. E o Museu das Favelas é esse grande símbolo de resistência.

Ed&T: E qual a importância do samba, do rap, funk e outras manifestações culturais para a construção dos saberes populares ?

CZ: Quando a gente fala de saber popular, a gente vai longe. O samba foi criado pelos irmãos que vieram de África e trouxeram a ‘semba’, que é o ritmo que vai originar o samba, então, a gente fala sobre saberes populares. E a partir do momento em que a favela vai mudando – a favela de 1900 não é a mesma de 2022 e não será a de 2032 -, conforme vamos evoluindo, evoluímos também em cultura e buscamos novos sabores e novos saberes.

Então o rap, que é essa música de protesto, que fala das mazelas que ocorrem dentro da favela que atingem diretamente seus moradores, teve um peso muito grande dos anos 90, até 2010, 2015. Hoje, o funk tem um poder grande de atrair os jovens pela comunicação, pelo dançar, pelo movimentar dos seus corpos e continuam fazendo disso grandes saberes. Haja vista as batalhas de passinho, aulão de funk, tudo isso contribui muito para os saberes populares.

E é importante dizer que quem faz funk é acima de tudo um pesquisador das favelas, porque assim como o rap e o samba, é importante saber o momento de contemplar. Ao contemplar a sua favela, vão surgindo na cabeça desses grandes autores músicas, danças, manifestações, ideias, uma ebulição gigante Então, com certeza, todos esses saberes populares fazem parte e estão envolvidos nessas construções culturais. E pra nós é muito gratificante estar no cerne disso, ver tudo isso acontecer e poder comunicar o quanto a favela é rica de saberes.

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