publicado dia 17 de fevereiro de 2016
Marco histórico e cultural de Perus, terreno da Fábrica de Cimento pode virar moradia popular
Reportagem: Redação
publicado dia 17 de fevereiro de 2016
Reportagem: Redação
Por Jéssica Moreira, com a colaboração de Pedro Ribeiro Nogueira
Apartado por duas rodovias da mancha urbana de São Paulo, o bairro de Perus, o último no extremo noroeste da capital paulista, abriga um importante patrimônio histórico: a Fábrica de Cimento Portland Perus. Localizada em um terreno de mais de 100.000m², ladeado por árvores e rios, a fábrica foi palco de importantes movimentos de resistência. A greve dos “queixadas”, entre 1962 e 1969, desafiou a ditadura militar e saiu vitoriosa após sete anos de luta ininterrupta. Foi lá, também, que as mulheres do bairro se insurgiram contra a poluição ambiental da primeira fábrica de cimento do país, em um dos mais antigos episódios de luta ecológica que se tem notícia no Brasil.
A falta de infraestrutura e péssimas condições de trabalho levaram ao fechamento definitivo da fábrica em 1986. Dezesseis anos depois, no ano de 2002, foi considerada patrimônio histórico da capital paulista, mas foi abandonada pelo poder público e trancada por seus proprietários. Por isso, desde seu fechamento, moradores e movimentos sociais lutam para transformar o espaço em um centro cultural, parque e universidade.
Atualmente, no entanto, a população não pode colocar nem se aproximar do portão. E a chegada de um projeto habitacional – um loteamento chamado Nova Perus Dois, proposto pela família Abdalla, proprietária da fábrica – nos arredores da antiga indústria, promete piorar ainda mais esse cenário.
Preocupado, o Movimento pela Reapropriação da Fábrica, convocou no último sábado (13/2) uma audiência pública com secretários, vereadores e órgãos públicos responsáveis pela patrimônio da cidade, no Centro Educacional Unificado (CEU) de Perus.
Além da presença das autoridades oficiais, a audiência contou com ampla participação popular, com a presença de mães carregando os filhos nos braços, agentes culturais e tradicionais lideranças das áreas de moradia e saúde da região, todos tentando entender a proposta habitacional desenhada para o bairro, que prevê a construção de mais de 5 mil apartamentos nos arredores da fábrica, abrigando até 20 mil pessoas.
O distrito de Perus possui hoje mais de 160 mil habitantes, nenhum hospital e, segundo a Rede Nossa São Paulo, nenhum teatro, cinema ou qualquer tipo de aparelho cultural oficial. “Para fazer cultura, nós precisamos ainda ocupar espaços abandonados. Enquanto isso, assistimos ao genocídio da nossa população negra. Somos a favor de moradia, mas não temos nada nem para nós que aqui já estamos”, apontou Cleber Ferreira, fundador da Comunidade Cultural Quilombaque, projeto independente que discute a cultura afro-brasileira com atividades gratuitas na região.
Fábrica tombada
As dúvidas dos moradores foram encaminhadas diretamente aos secretários do Verde e do Meio Ambiente (Rodrigo Pimentel Pinto Ravena), da Cultura (Nabil Bonduki) e da Habitação (João Sette Whitaker), todos presentes na audiência. O evento recebeu também a diretora do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Cultura e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), Nadia Somekh, dos vereadores Toninho Vespoli (PSOL), Police Neto (DEM) e do representante do Movimento, Mario Bortoto.
Parque dos Bufálos
Na zona sul de São Paulo, outra área também enfrenta a mesma disputa. Em Cidade Adhemar, o Parque dos Bufálos, pretendido pela população como parque e sede de equipamentos públicos, pode abrigar um amplo conjunto habitacional. Entenda a disputa na matéria Búfalos: o dilema de um parque para a periferia de São Paulo, do Portal Aprendiz.
“Tombada como patrimônio histórico da cidade de São Paulo e primeira do setor cimenteiro do Brasil, a Fábrica correrá grande risco se o projeto habitacional for aprovado como está, pois o mesmo prevê a construção de cinco mil unidades de moradia, com prédios que variam de cinco a dezessete andares, no entorno dela, gerando grande impacto no bem tombado, mas principalmente no bairro”, protesta o Movimento pela Fábrica de Cimento em Perus.
Além dessa questão, em 2014, a antiga indústria e seus arredores foram inseridos como Território de Interesse da Cultura e da Paisagem Jaraguá – Perus, no Plano Diretor Estratégico (PDE- Lei 16.050/2014) de São Paulo. O documento previa, entre outras medidas, a criação de um parque chamado A Luta dos Queixadas no mesmo espaço onde o projeto habitacional será instalado.
No entanto, durante a tramitação da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei 13.885/2004), o PDE foi modificado. Popularmente conhecida como lei de zoneamento da cidade, a lei regula o que deve ou não ser construído em São Paulo, seja pelo Estado, ou por construtoras, incorporadoras ou proprietários de imóveis. Desconsiderando aquilo que diz o PDE – que considera o futuro Parque A Luta dos Queixadas zona especial de interesse social – a revisão da lei de zoneamento coloca essa área como zona de uso misto, onde está liberada a construção industrial ou habitacional, desconsiderando todo o valor histórico, social e cultural da área onde o prédio está situado.
“A Fábrica, para nós, é um potencial para artes, cultura, conhecimento, lazer e desenvolvimento sustentável da região; por isso, nosso apelo para participar do debate sobre esse ou qualquer outro projeto habitacional ou não, que resulte em impactos para o bem tombado, para seu entorno e, sobretudo, para o bairro, cuja vida já não é nada fácil para quem nele vive”, aponta o Movimento pela Fábrica de Cimento em Perus em posicionamento em seu site.
Menos concreto, mais urbanismo
“Ninguém pergunta o que queremos. Aqui o rio fede, está cheio de doença, mas ninguém fala de impacto ambiental. Para que mais concreto? Para que mais dinheiro? A gente quer poesia, arte, um pouco disso tudo aqui. Isso interessa pra quem?”, questionou Marins Godoy, professor de geografia, na audiência.
O principal desconforto gerado pela proposta é a já alarmante falta de estrutura na região, que poderá ser adensada sem adequado investimento em educação, saúde e cultura. Giselle Costa, moradora da região, reclama que desde o governo Erundina nunca mais houve preocupação com a habitação.
“Se formos pensar em crescimento, temos que pensar no lixo que está caótico, na falta de espaços culturais. Moradia é prioridade, claro que precisa, mas será que alguém irá pensar nas nossas outras necessidades? Ou acham que o pessoal daqui não gosta de cultura e verde?”, indagou.
A professora Sirlene Brandão ressaltou a luta das mães para conseguir vagas em creche e nas escolas municipais. “Eu vivi por 15 anos na região. Eu sei o que é essa luta. Será que há algum plano que poderá dar conta dessas 20 mil famílias e do que elas precisam para viver com dignidade?”
O professor Euler Sandeville, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), afirmou que a documentação entregue pelos proprietários é “genérica” e não leva em considerações as questões ambientais e culturais da região, sem estudos de impacto paisagístico e ambiental ou até a viabilidade daquelas terras para abrigar as moradias.
Conheça mais sobre a história de luta pela Fábrica de Perus na matéria Cultura e Educação no chão de fábrica, do Portal Aprendiz.
Ele considera que o momento é oportuno para pensar em um paradigma de desenvolvimento que não seja baseado no investimento imobiliário, mas que integre educação, cultura e meio ambiente. “Não é sobre ser contra o projeto do empreendedor, mas respeitar o interesse público que tem que ser muito maior que o ganho dele. Temos que considerar a luta dos Queixadas, a necessidade de se preservar a vegetação ciliar, os rios da região. É possível pensar em usos mistos, mas é essencial consolidar a ideia do parque”, analisa.
Habitação
Em resposta às intervenções da plateia, João Sette Whitaker, secretário de Habitação de São Paulo, declarou ter entendido as propostas e afirmou estar trabalhando na “equação de produzir cidade da melhor forma possível”. “Nós não podemos esquecer que a mobilização da população mais pobre da cidade por mais habitação sempre foi justa e aguerrida. Eles acamparam para negociar as ZEIs no PDE”, lembrou Whitaker, para quem o projeto “não é um empreendimento imobiliário e se insere no contexto dessas lutas.”
“Por mim, que 100% fosse destinado para pessoas da região, para mulheres que forem vítimas de violência doméstica, pessoas que vivem em área de risco, famílias com deficientes. Além disso, ele não necessariamente inviabiliza o centro cultural, o projeto de um museu. Ele pode ser equacionado dentro do processo. O anteprojeto não é perfeito, mas a discussão vai ser feita”, prometeu.
Para acompanhar a situação em Perus, acesse o site do Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus e acompanhe sua página no Facebook.
(A fotografia que ilustra esta matéria é de Humberto do Lago Müller, via Wikimedia Commons)
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