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publicado dia 17 de março de 2017

Jaume Bonafé: Cidade não pode ignorar escola que se entende como espaço de aprendizagem permanente

Reportagem:

Na década de 1970, na Espanha, conforme o regime de Francisco Franco começava a ruir após mais de trinta anos de ditadura, um movimento de educadores, inspirados por ideais libertários, começou a elaborar novas narrativas e literaturas para o que seria uma educação e uma escola preocupadas com a construção da democracia e de uma sociedade transformadora. Tratava-se da Renovação Pedagógica. Jaume Martínez Bonafé, professor titular do Departamento de Didática e Organização Escolar na Faculdade de Filosofia da Universidade de Valencia, foi um dos fundadores e militantes deste movimento, que ainda hoje ecoa nas escolas e cidades espanholas.

Autor de inúmeros artigos e livros sobre educação, formação docente, currículo escolar e inovação educativa, Jaume busca cada vez mais aprofundar a relação entre cidade e educação, propondo a noção da cidade como um texto que deve ser lido, interpretado e transformado pelos cidadãos.

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Bonafé acredita que a escola, ao se entender como espaço de experimentação radical, irá influenciar movimentos sociais e o tecido social.

“Quanto mais a escola se entenda como um laboratório de criação de conhecimento radicalmente democrático, mais essas estratégias de conhecimento vão se traduzir para o mundo de fora da escola. Um bairro e uma cidade não podem ignorar uma escola que se entenda como um espaço de aprendizagem permanente”, propôs Jaume em entrevista, por Skype, ao Educação e Território. Confira.

Há uma tendência global de ocupação do espaço público. As pessoas cada vez mais entendem seu direito à cidade e vão às ruas para as mais diversas atividades. Em mais de uma oportunidade, você tentou qualificar essa discussão propondo que há um currículo da cidade que precisa ser interpretado pela população. Como seria isso?

Jaume Martínez Bonafé: Eu acredito que muita gente ainda vive e pensa a cidade como um espaço de transição, um meio de chegar de um ponto ao outro e resolver questões. Ainda assim, eu defendo que a cidade deve ser um espaço de experiência e criação de identidade. Neste sentido, o currículo da cidade é a capacidade de aprender a ler o que se passa e o que acontece na cidade. Quais experiências nós vamos percorrer para nos constituir como sujeitos, qual a leitura crítica da experiência da cidade que conseguimos propor, como fomentar a capacidade para ler o texto da cidade? Afinal, a cidade é um texto, mas é um texto construído pelo capitalismo, então, temos que ler nos valendo de uma pedagogia crítica, ou seja, elaborar textos anticapitalistas e de crítica à cidade para transformar o espaço.  Este currículo tem que incorporar os movimentos sociais para conquistar este outro modelo de cidade.

O currículo da cidade é a capacidade de aprender a ler o que se passa e o que acontece na cidade

Que tipo de ferramentas podem ser usadas para a construção dessa leitura e dessa pedagogia crítica da cidade?

Jaume: Uma ferramenta fundamental da pedagogia crítica é, sem dúvida, a análise do discurso. As diferentes partes da cidade têm discursos distintos, um bairro de subúrbio tem texto, voz, significados e práticas sociais e creio que construir a análise do que é dito por aquele espaço ajuda a extrair verdades e sentidos. As ferramentas proporcionadas pela pedagogia crítica, pela psicanálise, pelo urbanismo, também podem ser úteis para decifrar este espaço no qual construímos identidade. Mais do que inventar novos métodos, é fundamental recuperar a tradição da crítica. Trabalho muito em classe com a noção de deriva, dos Situacionistas, com Walter Benjamin. A deriva traz algo fundamental que é a caminhada: andar é fundamental para entender a vida.

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Teoria da Deriva propõe aprendizagens psicogeográficas.

Você poderia detalhar melhor essa questão da deriva?

Jaume: Eu tive uma militância no situacionismo e nós tínhamos a ideia de que devemos experimentar nossa subjetividade desde uma relação não-alienada com o espaço. Isso significa que devemos caminhar muitas vezes sem um objetivo pré-fixado, sem nada concreto a achar, a visitar. Neste processo dialogamos, descobrimos, experimentamos, propomos e encontramos novas conversas com cada lugar. Após as derivas, os participantes podem se encontrar e intercambiar experiências e assim construímos outras cartografias da cidade, desenhadas a partir de pontos de partidas subjetivos. A deriva é psicogeográfica e oferece novas maneiras de percorrer a cidade. Meus alunos se surpreendem inclusive com o tanto de descobertas que podem ter após derivar por um espaço que lhes é rotineiro. É um exercício psicopedagógico e cultural.

A deriva traz algo fundamental que é a caminhada: andar é fundamental para entender a vida

Você escreveu diversos textos sobre formação docente e gostaria de saber, neste sentido, de que maneira essas noções podem incidir na educação dos professores?

Jaume: Há um problema essencial na formação de professores: ela é feita de maneira fragmentada e separada do conhecimento que, por sua vez, é separado da experiência. Dificilmente vamos conseguir um conhecimento sólido se ele não conseguir dialogar com a cidade. Tudo o que fazemos no magistério é separar a vida escolar da vida cotidiana. A cidade é fundamentalmente um espaço que integra experiência, conhecimento e disciplinas simultaneamente. Acho que trazer para a formação do magistério o trabalho em projetos, fortalecer a importância da investigação e da prática, podem ajudar a superar a fragmentação que a escola promove.

E o que a cidade tem a ganhar com isso?

Jaume: Conforme cresça e se desenvolva uma consciência crítica sobre os entornos em que vivemos, mais qualidade de vida poderemos ter. O sentido desta proposta é transformador para a educação também. Hoje as cidades são pensadas basicamente para que os carros circulem com fluidez. Uma proposta que entenda a cidade como um espaço educativo põe em crise esse tipo de projeto de cidade, porque a entende como um lugar de relação e construção de cidadania, colocando o planejamento urbano em função dos sujeitos que o habitam, frequentam e o tornam vivo.

E como a democracia e o entendimento da escola como espaço público urbano podem se beneficiar dessa concepção?

Jaume: A escola é um laboratório de cidadania e democracia radical, mas temos que desenvolver estratégias de transbordamento desta construção democrática da educação formal para outros campos, para aquilo que é construído por baixo. Quanto mais a escola se entenda como um laboratório de criação de conhecimento radicalmente democrático, mais essas estratégias de conhecimento vão se traduzir para o mundo fora da escola. Um bairro e uma cidade não podem ignorar uma escola que se entende como um espaço de aprendizagem permanente. Quanto mais incorporarmos e ensaiarmos a democracia na escola, mais possibilidade teremos de construir uma democracia verdadeira. Por outro lado, quanto mais a política cidadã, crítica e de movimentos sociais for ativa e se embrenhar na escola, mais difícil será para uma escola se fechar. O tecido social que faz uma comunidade têm que interpelar sempre o espaço escolar, transformá-lo em uma assembleia. É essencial que a escola possam ensaiar outros tipos de estratégias cidadãs críticas.

Você fez parte do movimento de Renovação Pedagógica, que ajudou a pensar uma educação libertária, que fosse capaz de elaborar e construir uma nova sociedade depois dos anos da ditadura de Francisco Franco (1936-1975). De que modo essa noção que você apresenta agora é tributária deste movimento?

A cidade é um espaço que integra experiência, conhecimento e disciplinas simultaneamente

Jaume:  Para nós, sempre foi muito clara a relação entre a escola e o entorno, com investigação e estudo do meio como forma de garantir a construção de experiências vitais nos espaços de identidade dos estudantes. Mas não de modo majoritário, eu diria. A pedagogia ainda é devedora de uma concepção muito escolástica.

Foi na Espanha também que surgiu a concepção de Cidades Educadoras.

Jaume: É um conceito, um avanço, mas não é suficiente. Temos que entender o espaço urbano como educador por completo, não apenas garantir que as instituições e equipamentos públicos estejam articulados com a escola. A cidade é mais que um lugar de oferta de museus. É um avanço, oferece novas possibilidades, mas acho que precisamos de uma concepção mais radical sobre educação e cidade.

(A imagem que ilustra essa matéria é de jeronimo sanz via Flickr/Creative Commons)

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