publicado dia 7 de junho de 2019
Conheça a educadora que usa saberes dos terreiros em suas contações de histórias
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 7 de junho de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
Nos terreiros, as crianças nunca ficam paradas. Correm entre saias rendadas, aprendem a tocar atabaque e escutam os saberes de uma ialorixá (mãe de santo). Nesse território de resistência, desvela-se uma potência educativa oriunda de saberes afro-brasileiros e africanos, onde toda comunidade é responsável pela educação dos mais jovens.
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“Nos terreiros de candomblé, as crianças aprendem línguas, danças e culinária. É um território educativo, cheios de inteligências múltiplas e culturas afetivas”, relata a arte-educadora Kemla Baptista, que realiza atividades em terreiros de Pernambuco e Rio de Janeiro.
Foi da sua vivência nesses espaços sagrados que surgiu a inspiração para o Caçando Estórias, projeto que usa a contação de histórias para promover a leitura e literatura afro-brasileira no fortalecimento de uma educação antirracista.
“O Estórias é com E de propósito, porque História com H sempre foi a história oficial, dominante, a de quem fez as regras do jogo. Com o E, remonto a um modo antigo de falar. Resgato assim um lugar mais afetivo, da história de boca em boca, que veio do terreiro mas na verdade veio mesmo é da África”, explica a arte-educadora.
Caçadora de histórias orais
Nascida e criada em uma família de contadores de histórias, candomblecistas e educadores, Kemla sempre foi cercada pela oralidade. O valor da palavra é sensível para culturas oriundas de países africanos e atravessou os continentes nas diásporas e migrações compulsórias.
“De geração em geração a oralidade vem perpetuando as experiências e conhecimentos dos povos africanos e dessa forma construiu e propagou sua cultura. As sociedades africanas valorizam a fala com tal intensidade que a tornam sagrada, logo, esse instrumento comunicativo se faz primordial, pois está diretamente ligado ao Ser Divino da criação”
Eudaldo Francisco dos Santos Filho e Janaina Bastos Alves no artigo Tradição Oral para Povos Africanos e Afro-Brasileiros.
No seu percurso como educadora, entretanto, Kemla encontrava pouca valorização dessa oralidade: “A história oral é colocada sempre como informal, e suas fontes raramente legitimadas. É uma longa história de privilégios e narrativas brancas, que negam possibilidades a outras culturas.”
Se havia escassez da oralidade nos espaços formais de educação, no terreiro ela estava em todos os cantos, desde as práticas religiosas até as comunitárias.
“Eu me dei conta que poderia reinterpretar essas histórias contadas nos terreiros, sem perder o sentido dos ensinamentos e sempre referenciando as pessoas que transmitiram seus saberes.”
A contação de histórias de Kemla, que acontece em escolas, centros culturais, organizações sociais e nos próprios terreiros, propõe um novo terreno de referenciais não europeus para crianças e jovens. Muitos, pela primeira vez, se identificam com os protagonistas de contos sobre orixás ou personalidades da história afro-brasileira.
“Crianças negras que muitas vezes passam por situações de racismo ou intolerância religiosa se fortalecem. Elas se veem na história de guerreiros, intelectuais e personalidades que mudaram o curso da humanidade. E as crianças não pretas têm a oportunidade de conhecer outros heróis que não aqueles de padrão europeu.”
Práticas antirracistas e interdisciplinares
Ao lembrar da contação de história do orixá Ossaim – orixá das folhas e da cura – para uma turma de crianças, Kemla sintetiza como se dá a interação entre ela, a história e seu público juvenil:
“Uma criança escreveu palavras em folhas de árvores para mostrar para a avó, outra fez um pequeno Ossaim de folhas. São resultados plásticos e simbólicos, que se convertem em canais de expressividade e confiança dessas crianças.”
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As práticas do Caçando Estórias, que incluem também um canal de youtube, são carregadas de interdisciplinaridade:
“Sempre dialogo com conhecimentos matemáticos, artísticos e filosóficos. Quando eu trago um orixá para a roda de conversa, por exemplo o próprio Ossaim, falo de ciências naturais, do autocuidado e da medicina natural.”
Ao longo de 15 anos de estudo tanto dentro das casas de axé como em contato com educadores como Paulo Freire e Sueli Carneiro, Kemla compreendeu que a construção de uma educação antirracista só é possível quando se mistura a educação formal com os saberes do território.
“O símbolo do Caçando Estórias é um ofá, um arco e flecha, símbolo do caçador. Na cultura africana, caçador não é só referência de proteção. Ele saia da sua comunidade e voltava com histórias, tecnologias, novas práticas de gestão política nascidas da convivência com outros povos. Se adequarmos essa referência cultural, impregnada de oralidade, para as crianças, elas também vão perceber a importância da palavra e da cultura dos seus ancestrais”.
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