publicado dia 30 de setembro de 2019
Comunidades caiçaras e quilombolas cartografam seus territórios no Projeto Povos
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 30 de setembro de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
A larga cartolina se estendia em duas mesas juntadas no Espaço Cultural Caiçara; pendulava sobre ela um esqueleto de golfinho envelhecido pelo mormaço da Praia da Almada, no norte de Ubatuba (SP).
Diversas mãos caiçaras se revezavam no uso das canetas: verde para pintar as matas e serras; azul para o mar que ladeia a costa; marrom para pintar as casas dos moradores locais – tanto as que existem quanto as que não existem mais. É um território em transformação, e cartografá-lo só é possível se feito porque quem o ocupa e protege há uma centena de anos.
A cartografia social é uma das etapas do Projeto Povos, iniciativa executada pelo Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), em parceria com o Fórum de Comunidades Tradicionais – uma liga de comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas de Paraty (RJ), Ubatuba (SP) e Angra dos Reis (RJ) – e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Durante cinco anos, territórios, tradições e culturas locais de 64 comunidades serão identificados e mapeados por quem nelas vive.
Tencionando uma condicionante da exploração do pré-sal pela Petrobras que determina que se localize e se mapeie os possíveis impactos ambiental e social da produção de petróleo e gás, líderes dessas comunidades conseguiram, junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o direito de tecer os mapas de seus territórios.
Para fazer esse mapeamento, o processo utilizado é o da caracterização, como explica o coordenador de campo Cristiano Lafetá: “a caracterização visa tirar da invisibilidade comunidades que historicamente não são representadas nos documentos oficiais e nos mapas. A metodologia da cartografia social garante que as próprias comunidades sejam protagonistas desse processo de caracterização, dentro da lógica da autodeterminação dos povos.”
Cristiano é um dos poucos agentes do projeto que não pertence a uma das comunidades tradicionais. Os pesquisadores comunitários que atuam no mapeamento são em sua maioria quilombolas, indígenas e caiçaras moradores locais.
“Não é um antropólogo que vai chegar de fora e dizer: ‘você é indígena, você é quilombola, caiçara’. As populações que vão dizer o que são e quais são suas práticas, suas ancestralidades, religiosidades, enfim, as características formam a sua cultura.”
“É para colocar a realidade? Ou o que era antes? Porque tudo mudou”, afirmou o pescador de apelido Russo na oficina que aconteceu na Praia da Almada na última semana de setembro.
A pergunta da liderança local vocalizou a preocupação de uma comunidade caiçara que desde a construção da estrada SP-171 viu seu território ser catalogado, desfigurado e até classificado como parque em processos sem participação. À sua revelia, mapas e territórios foram traçados desconsiderando roçados quilombolas, práticas de pesca artesanal ou deslocamentos cotidianos dessas populações.
Na oficina do micro território da Almada, que também incluía vilas e praias próximas como a do Estaleiro, era notável a diferença que se fazia a presença dos pesquisadores comunitários da região. O pesquisador comunitário Guilherme Euler nasceu e foi criado no Quilombo da Fazenda, região próxima, e sabia articular com os locais a melhor maneira de desenhar uma trilha ou de relembrar onde ficava a casa ou roça de algum vizinho.
“Pessoas de fora chegariam e fariam perguntas sem sentido os locais”, conta Guilherme. “Faz muito mais sentido a própria comunidade se reunir em torno do seu microterritório e me contar que ali tinha uma roça antiga, porque eu também tenho o conhecimento do território. Isso que dá a cara da nossa comunidade.”
Como contraponto, o agente relata, por exemplo, que os mapas definidores do que é o hoje o Parque Estadual da Serra do Mar não levaram em consideração as comunidades que ocupavam o território e foram responsáveis por sua proteção:
“Querendo ou não o parque foi feito assim, fotos tiradas por cima de helicóptero. Aí é claro que não haveria comunidade, porque eles não entraram lá, não esmiuçaram como que se vivia ali dentro, a maneira que a comunidade se colocava dentro do seu território, os usos, as práticas que eles tinham com a relação à mata, à caça e à pesca.”
É no reparo dessa injustiça cartográfica e dos impactos que isso pode ter dentro comunidades que o Projeto Povos baseia toda sua metodologia no princípio da ecologia dos saberes: o conhecimento de um quilombola sobre o roçado de mandioca, de um caiçara sobre os fandangos que levantam areia da praia são tão válidos quanto qualquer conhecimento acadêmico.
“Bastante trabalhado por Boaventura dos Santos, a ecologia dos saberes diz que epistemologicamente não existe uma distinção hierárquica entre o conhecimento empírico, vivo e o saber acadêmico. O observatório já surge sobre esse princípio e na ideia de ter uma paridade entre técnicos formados graduados da academia e técnicos não necessariamente graduados, mas formados dentro das próprias comunidades.”
As três oficinas que aconteceram na última semana de setembro são as primeiras de um processo de nove meses com essas comunidades tradicionais. Depois de desenhadas as primeiras versões do mapa junto à comunidade, eles serão digitalizados, em um processo de participação onde a palavra final é sempre do local.
“A riqueza que meu pai tinha, e que eu não consegui ver, ele passou para mim pela memória. O que a gente não conhece dentro da nossa comunidade? Tem local dentro do nosso território que as pessoas que se dizem protetoras não conhecem, e precisam do quilombola para levar lá”, sentencia Guilherme.
*Essa matéria partiu de um convite do Projeto Povos ao Portal Aprendiz, que acompanhou duas oficinas realizadas no litoral norte de Ubatuba (SP). A segunda parte da reportagem irá contar como foi a feitura dos mapas a partir da perspectiva dos moradores das comunidades caiçaras e quilombolas.
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