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publicado dia 8 de agosto de 2019

Muito além das bibliotecas: como os diferentes territórios leem

Reportagem:

Quando se reflete sobre os hábitos de leitura e literatura, é comum pensar em bibliotecas urbanas ou livros de grossas lombadas. Não se pensa comumente que uma biblioteca pode ser um cordão de cordéis em um quintal no interior da Paraíba. Ou em gibis sendo folheados por milhares de pessoas em uma feira geek na periferia de São Paulo. 

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Foi para discutir a leitura e sua intersecção com educação e território em suas amplas formas que aconteceu o 11º Seminário Internacional Biblioteca Viva – Conhecimento, Leitura e Literatura: Novas Trilhas, uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo e da Secretaria de Cultura e Economia Criativa. 

Uma das mesas do seminário, Vozes da Diversidade, convidou a escritora Maria Valéria Rezende e duas das produtoras do PerifaCon – primeira Comic Con realizada em periferias no Brasil – Andreza Delgado e Gabrielly Oliveira para debater a leitura para além de estereótipos, atravessando a discussão com saberes de diferentes territórios. 

Para sumariar a mesa, que teve uma hora de debate, a vencedora do prêmio Jabuti, Maria Valéria, pediu aos presentes para que, ao pensar em biblioteca e leitura, não se fechassem no ideário da biblioteca hermética ou da leitura como hábito inacessível: “Abram o olhos, saíam para a rua e vão se encontrar com o povo para entender como o Brasil lê.”

escritoras se reúnem em painel do seminário biblioteca viva
Da esquerda para a direita, escritora Maria Valéria Rezende, a produtora Andreza Delgado e a também produtora Gabrielly Oliveira / Crédito: Divulgação seminário

“O brasileiro é um povo que lê” 

Os dados de pesquisas sobre leitura no Brasil trazem números alarmantes para profissionais que militam com literatura e leitura. Segundo a última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil realizada em 2016, 44% dos brasileiros não lê como hábito e 30% nunca leu um livro. 

Maria Valéria Rezende oferece, entretanto, um relato de contrapelo à essa informação. Para ela, que mora há mais de 40 anos no sertão da Paraíba, e viaja pelos rincões do Nordeste em projetos de educação popular, o brasileiro é definitivamente um povo que lê: 

“Para o intelectual urbano, leitura é uma atividade solitária: sentar na poltrona, um belo abajur, uma paisagem na janela. Para nosso povo, no brejo da Paraíba, nos assentamentos da reforma agrária, na comunidade de pescadores, leitura é uma atividade coletiva e oral. O nosso povo sempre leu.” 

A desconstrução desse povo que não lê, para Maria Rezende, aconteceu principalmente nas vezes em que ela se deparou com a literatura de cordel, um tipo de literatura oriunda do Nordeste que conta histórias em desenho e prosa. 

Maria Valéria Rezende é uma das escritoras que compõe o movimento Mulherio das Letras, uma iniciativa que reúne mais de sete mil mulheres e advoga por uma maior representatividade de gênero na literatura brasileira. 

“Quando chega um idoso segurando um exemplar de cordel com as bordas arredondadas e as páginas escuras de tanta mão, me acende uma luz na cabeça. Eu começo a perceber que o que nós urbanos fazemos não é certo. Por exemplo, ir nas bibliotecas e ter dificuldade de levar o livro para casa, ou medo de estragá-lo. Livro é para ser consumido.” 

Ainda oferecendo visões diferentes da leitura, a escritora recorre aos saberes populares, geralmente tão acurados com os da academia:

“Quando o agricultor pega um pouco de terra, bota na língua, diz ‘essa terra dá pra isso ou pra aquilo’, isso é uma forma de leitura. O sujeito faz biologia e estuda anos na universidade para determinar a mesma coisa. Existem outros saberes, outras leituras. É preciso considerá-las. O resto das coisas é reduzido a um mínimo, menos a palavra. E a palavra literária, o sabor da palavra, é algo que o brasileiro têm.”  

PerifaCon e a ampliação do consumo e produção de leitura nas bordas da cidade

“As periferias produzem cultura. As pessoas sempre falam, ‘vamos levar cultura para a periferia’, mas nela existe a produção de quadrinhos, literatura, gente vendendo livro e artista divulgando seu trabalho”, arremata Gabrielly, produtora da PerifaCon

Inspirada nas Comic Con, que são eventos que intersectam cultura nerd, geek e pop, a PerifaCon, realizada em março no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, reuniu quatro mil visitantes, 44 expositores e 230 palestrantes. 

Uma das propostas do evento, que também contou com venda de produção local de quadrinhos, concursos de cosplay e sala de jogos, era causar um movimento inverso: em uma cidade onde frequentemente quem mora fora do centro se desloca até ele para consumir cultura, a PerifaCon lotou ônibus e trens de pessoas que iam até a borda da cidade consumir o que é produzido ali. 

“A periferia é consumidora e produtora desse universo que parece tão distante dela”, afirmou Andreza. “Quando se pensa comumente em morador de favela, o que ele consome? Funk, samba? Tem isso também, mas também tem cultura nerd. Nossos colegas estão fazendo histórias em quadrinhos, produzindo games dentro da garagem.” 

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O evento, que caminha para uma segunda edição, foi também para suas fundadoras uma possibilidade de criação de novos significados para as leituras que acontecem em outros territórios: 

“O PerifaCon faz entender que, quando uma pessoa lê um HQ ou um livro, a leitura a faz um ser ativo e criador de sua própria história. E para a molecada da periferia, que se alfabetizou muitas vezes com um gibi na mão e uma bíblia na outra, isso ressignifica o que é a cultura nerd, geek e pop, te faz sentir parte e produtor dela também”, conclui Gabrielly. 

 

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