publicado dia 15 de julho de 2022
Comida no prato e livro na mão: a importância da leitura para o futuro da educação no Brasil
Reportagem: André Nicolau
publicado dia 15 de julho de 2022
Reportagem: André Nicolau
Nos últimos dois anos, a pandemia descortinou ainda mais as desigualdades profundas e históricas de um Brasil que, entre múltiplas violações, sobrevive à pobreza em seus diversos aspectos.
Da falta de comida à mesa à ausência de um livro na mão, o brasileiro vive uma rotina de negligência de direitos básicos diante do desmonte de políticas públicas, a exemplo do sucateamento do Plano Nacional do Livro e da Leitura, que não conta com subsídios federais destinados à sua manutenção.
O que é o PNLL ?
O Plano Nacional do Livro e Leitura foi instituído em 2005 pelo Ministério da Cultura, visando assegurar e democratizar o acesso à leitura e ao livro a toda a sociedade, com base na compreensão de que a leitura e a escrita são instrumentos indispensáveis para o desenvolvimento do ser humano.
O cenário, no entanto, é de resistência, afirma José Castilho, um dos mais importantes especialistas em políticas públicas de incentivo à leitura no país e Secretário Executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) vinculado aos Ministérios da Cultura e da Educação entre 2006 e 2011.
Castilho é um dos signatários da carta-manifesto “Comida no Prato e livro na mão!”, lançada recentemente, que sugere 10 propostas em defesa pela defesa do livro e direito à leitura no Brasil, destinada aos candidatos das eleições de outubro.
“Nossa luta é pela resistência e preservação das bibliotecas públicas e escolares, das atividades de mediadores da leitura da cultura e educação vinculados ao setor público. Buscamos uma ação contínua com os formadores de leitores que atuam na sociedade, com as bibliotecas comunitárias, agentes culturais e ativistas em geral que, inclusive, face ao abandono e tentativa de destruição do Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL, seguem construindo os Planos Municipais e Estaduais de Livro e Leitura”, destaca Castilho.
Em meio às consequências proporcionadas pelos últimos dois anos de pandemia, Castilho destaca a atuação propositiva de ativistas e sociedade civil nas periferias de todo o país, regiões mais afetadas pela falta de recursos, desde a alimentação ao acesso à educação. “Contingentes significativos de apoiadores garantiram a esses territórios cuidados com a saúde, com a alimentação que faltava e os livros que preenchem o coração e a mente. A carta aberta termina com um chamado: ‘Comida no prato e livro na mão!’. Isto diz tudo sobre o que queremos e precisamos para o Brasil”, diz.
A educadora Bel Mayer, gestora da Rede Literasampa e integrante da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, ressalta o trabalho empreendido por livrarias, editoras, bibliotecas comunitárias, contadores de histórias e mediadores de leitura que, há décadas, contribuem diretamente para a formação educacional no país.
“São ações que contam, e muito, para a sociedade, mas a questão é que somente a política pública tem escola para atingir a totalidade da da população brasileira. Por isso, um dos alicerces do PNLL é ressaltar o papel do Estado e sociedade como responsáveis pela criação de políticas para o setor”, reflete Bel.
Essa complementaridade entre Estado e sociedade, explica Bel, é o que pode incentivar a criação de novas iniciativas que privilegiam, sobretudo, as demandas de territórios mais vulneráveis. “Tudo isso é democracia viva, construção democrática onde o Estado expressa, incentiva e ajuda a dar suporte às ações e programas culturais criados pela sociedade, verdadeira responsável pela criatividade cultural e educacional de um território em um país.”
Para Castilho, embora o atual governo simule uma possível retomada do PNLL, a ação visa apenas o processo eleitoral em disputa. “O Governo Federal só empreende ações destrutivas, mas a verdade é que não há qualquer espaço para o livro, leitura, literatura e bibliotecas neste desgoverno marcado pela bala e pela violência, que só atua contra os direitos humanos.”
Diante da possibilidade de renovação do pleito eleitoral, o especialista reforça que o objetivo da carta visa alertar e chamar todos os candidatos do campo democrático à retomada do debate sobre políticas públicas. “Lutamos para dar a essas políticas a prioridade e a urgência que ela necessita após todos esses anos de destruição e desprezo pela cultura e educação.”
A falta de subsídios federais destinados à fomentação da leitura contrasta com um cenário de educação popular protagonizado pelas bibliotecas comunitárias, que há décadas se faz presente na rotina de milhares de brasileiros. Bel Mayer chama atenção para a presença dessas iniciativas nos extremos do país. “As bibliotecas comunitárias geralmente estão nas áreas em que as bibliotecas de acesso público mantidas pelo estado não chegaram e se tornaram ainda mais essenciais durante a pandemia, levando pão, poesia e proteção a um Brasil profundo, onde muitas vezes as políticas públicas não alcançam.”
Ela aponta ainda que, fatores como o acesso gratuito às publicações, mediações de leituras e outras ações culturais desenvolvidas nesses territórios, transformaram as bibliotecas comunitárias em grandes incentivadoras não apenas da compra de livros, mas da produção literária no Brasil. “Basta olhar quantos escritores periféricos têm conseguido publicar em editoras pequenas, independentes e até esse crescimento das livrarias de rua pode estar conectado às bibliotecas comunitárias, que não deixaram o livro morrer.”
Questionada sobre a contribuição das bibliotecas comunitárias para o futuro da educação, Bel enfatiza que a única saída para a educação é que ela seja feita com envolvimento dos próprios educandos.
Construir uma educação que não seja bancária, não parta de saberes que podem ser entregues e vendidos, mas que se coloque no lugar reflexão crítica sobre a realidade, como os movimentos literários e bibliotecas têm feito, trazendo para o debate toda a comunidade na defesa à leitura, da palavra e da escrita. “O crescimento desses movimentos mostra que a educação escolar precisa ter sentido, que é preciso conversar sobre aquilo que a gente lê e, por meio da literatura, desenvolver a mediação dos textos, construir coletivamente os processos de leitura.”
A Carta em Defesa do Livro, da Leitura, Literatura e das Bibliotecas, que também está coletando assinaturas em formato de petição online, reúne mais de 10 mil participações em apenas duas semanas e retomou o debate sobre os rumos da educação e cultura em um país que tenta se reerguer do obscurantismo político.
“Ninguém é dono exclusivo da palavra, mas cada um precisa encontrar sua palavra também, da crítica, de não aceitar que a realidade está pronta, mas em constante construção e que o destino não está dado e precisa ser construído com a nossa participação” – Bel Mayer
Para Bel, o levante coletivo acena a um momento de ressignificação de propostas ao país, às vésperas de mais uma eleição. “É um movimento conectado diretamente, em poucos dias reunimos milhares assinaturas de pessoas que estão defendendo comida no prato e livro na mão, que cultura e literatura não sejam privilégios, mas que façam parte do nosso cotidiano. Tão importante como dormir e sonhar, como diria Antonio Candido, é que a gente consiga defender esse direito humano à fabulação, à pausa para a leitura e a escrita.”