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publicado dia 12 de novembro de 2014

A cidade como currículo: pesquisador espanhol desafia escola a olhar a rua

Reportagem:

Por Ana Luiza Basilio

A rua é uma aula, uma lousa, um lugar onde se escreve. Não é apenas parte do caminho percorrido até o museu, o centro cultural ou a escola. A rua também ensina e precisamos aprender a ler as mensagens que ela emite. Essa é a provocação feita pelo pesquisador Jaume Martínez Bonafé aos educadores brasileiros durante sua passagem por Belo Horizonte (MG). O espanhol, docente na Universidade de Valencia, defende que é preciso superar a concepção de uma escola articulada com seu entorno e adotar a cidade toda como currículo.

“Proponho que exploremos a ideia da cidade fazendo currículo. Há milhares de situações construindo constantemente significados. Creio que a cidade junto aos meios de comunicação são elementos que estão nos fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, são currículo e devem ser estudados como tal.”

Segundo ele, para colocar em prática essa visão, é preciso admitir que há um currículo fora da escola, que pode ser construído a partir das diferentes experiências e práticas culturais, e levando em conta as inúmeras formas de entender e vivenciar o mundo. “Se nos ensinassem a ler a rua de outra maneira, muito provavelmente, seríamos cidadãos diferentes, saberíamos valorizar as praças e as cidades a partir de um outro olhar.”

Além de deslocar a aprendizagem para fora das instituições de ensino, a proposta de Bonafé convoca urbanistas, engenheiros, prefeitos, secretários, comunicadores, a sociedade como um todo, a refletir sobre quais mensagens as cidades que projetamos e vivemos passam para as crianças desde a mais tenra idade. É o chamado “texto da cidade” que, em sua opinião, urge ser transformado.

jaume-martinez-bonafe“É necessário intervir nesse texto da cidade, a partir de uma outra pedagogia – que não cabe só aos educadores, mas também aos prefeitos, às pessoas que têm responsabilidade na gestão municipal.”

Para entender como a cidade pode ser tomada pela educação enquanto currículo, o Portal Aprendiz conversou com Bonafé, após sua palestra no I Seminário Internacional de Educação Integral, realizado pelo Territórios, Educação Integral e Cidadania (TEIA) da UFMG, entre 5 e 7 de novembro.

Portal Aprendiz: Como se dá a construção do currículo na rua?

Jaume Martínez Bonafé: Minha hipótese de trabalho é que agora estamos pensando o currículo apenas dentro da escola. O currículo é o conjunto de significados que a escola articula, dentro de seus objetivos específicos, para dizer ‘isto é o que você tem que aprender, assim você vai ser uma pessoa útil’. Este é um pouco o seu discurso institucional.

Eu creio que também há um currículo fora dela. Há uma prática cultural que gera significados, formas de subjetivação e formas de entender o mundo e de compreender-se nele que têm a ver com as experiências vividas na cidade. Minha proposta de trabalho parte da cidade como currículo. Portanto, teríamos que analisá-la como formadora de práticas, experiências, relações e materialidades que vão articulando uma forma de entender a cultura e de se entender como parte dela.

A questão é: quem escreve o texto na cidade? Minha hipótese é que hoje o texto da cidade é a pedagogia do capitalismo, mas há também outras linguagens, outros significados, outras práticas sociais que têm a ver com os movimentos sociais e com um currículo contra-hegemônico.

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Há um currículo fora da escola e é preciso investigá-lo.

Aprendiz: E como crê que a escola pode dialogar com estes elementos?

Bonafé: São coisas diferentes. Na minha conferência, eu quis diferenciar de uma proposta pedagógica bastante antiga e vinculada aos projetos de inovação, que diz que a escola tem que sair para o entorno, pesquisá-lo, explorá-lo. Portanto, suas matemáticas, histórias e geografias devem contemplar o entorno no trabalho pedagógico, mas eu não falo disso. Acho que, com isso, a escola não rompe com o currículo tradicional. O que faz é oxigená-lo, não para discutir a rua, e sim para que as matemáticas, histórias e geografias possam se fazer mais próximas ao sujeito, aproximando-as da rua.

O que eu digo é que  o currículo está na rua e devemos investigá-lo. Vamos entender o que significam as grandes avenidas, os centros comerciais e as praças; qual o significado para as crianças ou para as pessoas mais velhas, para os homens ou mulheres, para negros e para os brancos. Vamos ver quais significados se constroem na cidade e nos dar conta de que em uma cidade há muitas cidades, interpretadas segundo o mundo de cada um.

Proponho que exploremos a ideia da cidade fazendo currículo. Há milhares de situações que estão construindo constantemente significado. Creio que a cidade junto aos meios de comunicação são elementos que estão nos fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, são currículo e devem ser estudados como tal.

Aprendiz: Na Espanha, alguma experiência segue esse caminho?

Bonafé: Este é um conceito novo. Há algumas experiências, como na minha faculdade, onde trabalho com meus estudantes, mas o tema ainda é muito incipiente.

O currículo está na rua e devemos investigá-lo

Aprendiz: Como as políticas públicas podem dialogar com isso?

Bonafé: É preciso que haja tamanho comprometimento de uma prefeitura com a pedagogia política, pública e social que isso possa influenciar em sua gestão. Uma possibilidade, por exemplo, seria intervir sobre o modo por meio dos quais os cidadãos se convertem em machistas. Isso não pode depender só da vontade do comércio que vende a roupa ou do publicitário, entende? É preciso um debate político e pedagógico.

É necessário intervir nesse texto da cidade, a partir de uma outra pedagogia – que não cabe só aos educadores, mas também aos prefeitos, às pessoas que têm responsabilidade na gestão municipal.

Por exemplo, eu sei que uma cidade necessita da circulação rápida de automóveis, mas penso que quem desenha os entornos do urbanismo social deveria se dar conta de que com isso nos passam a seguinte mensagem: “você vive em um mundo de pressas e, além disso, é insignificante ao lado dos carros, posto que até os semáforos são todos pensados para eles”. Isso é um texto pedagógico. Estão nos dizendo, desde pequenos, que nas cidades em que vivemos a pressa é fundamental. Acredito que os urbanistas também têm a responsabilidade de propor que o desenho dos entornos urbanos contemple uma outra maneira de entender os sujeitos.

De modo geral, nós não fomos formados para as relações que se dão com os espaços. Tampouco a escola nos ajuda a nos pensar neles, pois também está distanciada do tempo e do espaço real, por estar concentrada em seus próprios arranjos de tempo e espaço.

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O que a cidade pensada para carros diz sobre onde se vive?

Aprendiz: A rua é então um espaço de socialização?

Bonafé: A rua é uma aula, uma lousa, um lugar onde se escreve. É o melhor lugar onde se dita as mensagens, é um texto pedagógico. É muito interessante analisá-la a partir da pedagogia que se propõe. Se nos ensinassem a ler a rua de outra maneira, muito provavelmente, seríamos cidadãos diferentes, saberíamos valorizar as praças e as cidades a partir de um outro olhar.

Por exemplo, me contaram de uma cidade em que na região onde os edifícios são mais altos, viviam as pessoas mais ricas. Pra mim, isso mostra o quão analfabetos podem ser os ricos, posto que sempre será mais cômodo, mais habitável, viver em um lugar mais horizontal, com pouca densidade habitacional, do que em um prédio de 30 andares. Se isso é valorizado como melhor, pior para os ricos, não? Tudo isso são mensagens culturais. É melhor viver num prédio de 30 andares? Pra mim, não. Eu quero ter um jardim, cultivar uma horta.

Aprendiz: Algumas cidades são reconhecidas como cidades educadoras. O que pensa sobre elas?

Bonafé: É um conceito interessante, mas tampouco é o que estou falando. A cidade é um veículo. Precisamos colocar os dispositivos culturais dela nas mãos dos projetos educativos das escolas, fazê-la educadora nesse sentido. A cidade passa a contemplar a ideia de que suas instituições, sobretudo culturais, cumpram seus objetivos. Que os museus tenham material didático; que os hospitais tenham um projeto pedagógico também para as crianças que se hospitalizam ou para as pessoas, etc.  Isso me parece bom, mas o que eu proponho é ir além dessa questão.

Aprendiz: Então, não basta ter o equipamento sem uma intenção pedagógica?

Bonafé: Claro. A cidade educadora não é só o museu, o teatro. A rua também educa. E este espaço é, digamos, “desproblematizado” do ponto de vista pedagógico. Mas, veja, é ele que o professor utiliza para conduzir a criança até o museu. Ou seja, é tão educativo quanto, mas passa uma outra educação, outro discurso, outra pedagogia.

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