publicado dia 22 de setembro de 2017
Carl Hart se une a jovens das periferias em defesa de uma nova política de drogas
por Nana Soares
publicado dia 22 de setembro de 2017
por Nana Soares
Neurocientista, professor da Universidade de Columbia (EUA), o americano Carl Hart não hesita em dizer que em seu país ele só é respeitado e tratado como cidadão após a apresentação de seu currículo acadêmico. Em situações cotidianas, por ser negro, Hart é alvo de preconceito e discriminação.
Em sua visão, essa realidade é consequência da política de combate às drogas majoritariamente adotada no mundo: um mecanismo de controle social que mantém as populações marginalizadas em posições de vulnerabilidade e sem acesso a direitos básicos.
“As políticas de drogas são seletivamente aplicadas para garantir que só alguns dos setores da sociedade sejam presos. Nos EUA, ela é usada para prender cidadãos negros”, expôs o professor. A realidade não é diferente no Brasil, como revela pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP). Segundo o estudo, 59% das pessoas presas sob acusação de tráfico em São Paulo são homens negros e jovens, com baixa escolaridade e sem antecedentes criminais.
O neurocientista defende que somos propositadamente mal informados sobre as substâncias e seu efeitos no corpo, e que conhecê-los é o primeiro passo para pensar em políticas mais eficazes na área. Ele diz ter escrito o livro “Um preço muito alto” com essa finalidade: “É importante que as pessoas desconstruam essa ideia de que quem usa drogas se comporta de maneira inadequada. A maioria das pessoas está buscando um alívio, uma forma de prazer. Quem pode se opor a isso?”. Por “drogas”, entende-se tanto compostos ilícitos (heroína, crack, maconha, etc) como aqueles legalizados (álcool e o cigarro).
Brasil e “Cracolândia”
Embora tenha realizado diversas visitas ao Brasil, a mais recente passagem de Carl Hart pela capital paulista integrou o evento de lançamento da Cartilha Sobre Política de Drogas, criada pelo coletivo Movimentos. Formado por jovens de favelas brasileiras, o grupo pretende discutir a política de drogas sob a perspectiva do jovem da periferia.
O debate foi realizado na Aparelha Luzia, um centro de resistência negra localizado na região dos Campos Elíseos, próximo à região conhecida como “Cracolândia”. No início do ano, a Prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado realizaram uma operação no local conhecido por abrigar pessoas em situação de rua e usuários de substâncias. Na ocasião, além de prender 28 pessoas, mandar fechar os hotéis e comércios locais, o prefeito João Doria Jr declarou ser o “fim da Cracolândia”.
Para Hart, é preciso parar de utilizar essa expressão para definir o território, alvo de ações repressivas do Estado desde a década de 80.“Ao usar o nome ‘Cracolândia’ fica entendido que a única coisa que aquelas pessoas fazem é usar crack. Esse termo permite que não precisemos lidar com elas e os reais problemas sociais que enfrentam”, argumenta.
Confrontado por um ativista do coletivo “A Craco Resiste”, que afirmou que o termo pejorativo havia sido ressignificado pela comunidade, Hart manteve seu posicionamento, avaliando que o fato do grupo estigmatizado usar a palavra não altera a marginalização e desinformação por trás dela.
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Forte opositor das atuais políticas de drogas, Hart defende a descriminalização das substâncias para uso pessoal como medida urgente para assegurar o direito à saúde de quem as consome. Segundo ele, enquanto permanecerem ilegais, não haverá controle sobre seus conteúdos, componentes e impurezas, considerados mais danosas ao corpo humano do que as drogas em si. “O único jeito de realmente lidar com a violência relacionada às drogas é legalizá-las e regular o mercado, assim como fazemos com o álcool.”
O professor reconhece que suas ideias ainda são de difícil aceitação, mas reitera a necessidade de se mudar a forma com que a sociedade se relaciona com as substâncias. “Mesmo que adotemos estes processos [descriminalização e legalização], ainda teremos pessoas discriminadas. Embora seja significativa, a guerra às drogas é só uma das ferramentas para marginalizar certos grupos sociais. Não há outro modo de mudar essa realidade a não ser dando oportunidade e facilitando o acesso à educação.”
Protagonismo das periferias
A busca por transformar essa realidade levou um grupo de jovens das periferias de diversas cidades brasileiras a lançar, em setembro, o coletivo Movimentos. Sua missão: discutir a política de drogas brasileira sob a perspectiva de quem sofre diariamente suas consequências. “Para nós, [a guerra às drogas] significa escolas fechadas, mudança na rotina, medo de sair de casa, preocupação extrema com o nosso bem-estar e o da nossa família. Em nome dessa guerra, o Estado justifica uma série de violações de direitos contra nós, jovens de favelas e periferias”, afirmam na Cartilha lançada durante o evento.
“Nós somos o Movimentos, um grupo de jovens de várias favelas e periferias do Brasil que acredita que uma nova política de drogas é urgente. Somos os mais impactados pela violência, pelo estigma e pelo racismo gerados em nome da guerra às drogas. Por isso, acreditamos que não é possível construir alternativas sem discutir os impactos dessa guerra nas nossas vidas e sem pensar em soluções que nos incluam e nos deem oportunidades para superar décadas de políticas fracassadas” – Movimentos
Thiago Vinicius, produtor cultural e morador do Campo Limpo (SP), defendeu que a discussão sobre a política de drogas precisa se descentralizar e chegar às periferias, pois embora seja uma questão que diga respeito às populações periféricas, as reflexões e debates acabam circunscritos ao centros das cidades. “Nossa luta é muito maior que a Marcha da Maconha, é sobre nossas famílias morrendo.”
O coletivo Movimentos é resultado de um projeto realizado em 2016 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/UCAM). Na ocasião, 10 jovens de favelas e áreas periféricas do Rio de Janeiro, de Salvador e de São Paulo participaram de uma oficina de três dias sobre política de drogas no Complexo da Maré.
Além de falar sobre o impacto da guerra às drogas no cotidiano, o Movimentos se propõe a pensar alternativas a partir do olhar das periferias e tendo a juventude como protagonista. Até o fim do ano, o coletivo pretende organizar um encontro nacional com jovens de favelas e periferias de todo o país a fim de elaborar propostas concretas nesse campo.
“O debate político é importantíssimo, mas se não falarmos com os nossos não vai adiantar. Leis que resguardam direitos nós já temos, e mesmo assim elas são desrespeitadas diariamente. Brigar apenas no âmbito político não resolve o problema”, apontou o membro do Movimentos e morador da Cidade de Deus (RJ), Ricardo Fernandes.