publicado dia 5 de junho de 2018
Cais do Valongo é patrimônio sensível para que o Brasil não esqueça sua história escravocrata
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 5 de junho de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Em 2011, os maquinários que faziam escavações para as obras do Porto Maravilha, projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, esbarraram em pedras contadoras de uma história de genocídio. Emergiram depois de mais de dois séculos soterrados os vestígios do Cais do Valongo, maior porto escravagista do mundo, por onde se estima terem passado até 1830 cerca de um milhão de africanos escravizados.
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Em 1972, a UNESCO adotou a Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que tem por objetivo proteger os bens patrimoniais dotados de um valor universal excepcional. São 10 os guias estabelecidos no Guia Operacional para a Implementação da Convenção do Patrimônio Mundial, e o Cais do Valongo atende ao sexto, que diz de um sítio de memória sensível que conscientiza sobre eventos traumáticos e dolorosos que violaram os direitos humanos. Só há outros dois sítios no mundo de semelhante memória: a cidade de Hiroshima, no Japão, e os destroços de Auschwitz.
Cinco anos após o descobrimento do Cais, o Brasil celebrou o reconhecimento do sítio enquanto Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Ocorrido em 2017, o reconhecimento foi fruto da articulação que se iniciou em 2014, com um esforço conjunto entre governo federal – na gestão da presidenta Dilma Rousseff – mobilização de organizações sociais e ativistas do movimento negro e o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
O Brasil tem até 2020, segundo a UNESCO, para adequar o cais e seu entorno, melhorando sua sinalização e implementando um museu que dê conta do valor simbólico e educativo do patrimônio. Se não o fizer, pode correr o risco de perder o título de Patrimônio da Humanidade.
Ativistas e pesquisadores da história da diáspora africana têm se atentado, no entanto, para a demora do início dessas adequações e também denunciam que o sítio encontra-se em um estado de abandono.
“Em quase quatro séculos de tráfico negreiro, estima-se que tenham entrado pelo Rio de Janeiro 2 milhões e 400 mil pessoas escravizadas. Isso faz do Rio de Janeiro o maior porto escravagista da história da humanidade. Só pelo Cais do Valongo, entraram quase um milhão de pessoas”.
Quem detalha numericamente o sítio é Milton Guran, antropólogo e membro do comitê científico internacional do projeto Rota do Escravo, da UNESCO. O pesquisador fez parte do comitê que preparou o dossiê de candidatura do Cais do Valongo.
A história do Valongo é também a história da tentativa de apagá-lo. Soterrado entre escombros de obras de governos que tentaram escondê-lo após o fim da escravidão, está repleto de bens materiais e imateriais da cultura de matriz africana. Um dos sítios é o Cemitérios dos Pretos Novos, sítio arqueológico onde foram descobertas ossadas das muitas mulheres e homens escravizados que pereceram na travessia do atlântico. Hoje funciona ali o Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos (IPN).
Há no Valongo também monumentos de resistência. O Docas Dom Pedro II foi o primeiro edifício do Império construído sem mão de obra escrava e projetado pelo engenheiro negro André Rebouças. Metros dali, ainda resiste o Quilombo da Pedra do Sal, espaço que preserva os saberes que a matriz africana cedeu ao Brasil.
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Em um país onde mais da metade da população se declara negra ou parda (55,3%), segundo pesquisa do IBGE, reconhecer a história da escravidão do Brasil e como suas consequências nefastas ricocheteiam no presente como violência e racismo torna a preservação do Cais importante não somente enquanto patrimônio, mas enquanto elemento central da reconstrução da memória e da história afro-brasileira.
“A exposição ao público da materialidade do Valongo funciona como uma denúncia, nos leva a lidar abertamente, a sentir e a reviver os horrores da escravidão de africanos. Esta é uma história que não pode ser esquecida. Deve ser lembrada, lembrada sempre, para que nunca mais se repita”, afirma Tânia Andrade Lima, uma das arqueólogas coordenadoras da escavação no início do projeto Porto Maravilha. “O racismo está aí, à espreita, recrudescente de forma impressionante aqui e agora. Por essa razão, a memória do que ocorreu no Valongo deve ser mantida viva. E sua exibição permanente ao público contribui fortemente para isso”, acrescenta.
Neste entendimento, não só a descoberta, mas a preservação e a construção de um espaço educativo é a única maneira do patrimônio cumprir sua função social de educar por meio da memória e do território. Cláudio Honorato, coordenador de pesquisa do Instituto Pretos Novos, acredita que uma das ferramentas para combater o racismo estrutural está justamente na educação:
“A redescoberta desse patrimônio e sua valorização como Patrimônio da Humanidade pode fazer com que o racismo seja debatido em espaços formais e não formais da sociedade. Pode fazer com esse jovem da população negra e mestiça conheça a sua história. O Brasil ainda não fez de forma responsável esse debate de reconhecimento do legado cultural afro-brasileiro”, diz.
O Iphan foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, em articulação intensa com instâncias federais, municipais e organizações da sociedade civil, no preparo do dossiê da candidatura apresentado em 2016.
Marcelo Brito, diretor do Departamento de Cooperação e Fomento do Iphan, relata que quando a UNESCO reconheceu o Cais do Valongo enquanto patrimônio, propôs em contrapartida que o Estado se comprometesse a adequá-lo fisicamente: “Essa adequação tem a ver com sinalização do sítio; um trabalho ligado a uma ação educativa, para fortalecer a compreensão do que é o sítio arqueológico; implantação de um centro de interpretação para o sítio, para que visitantes e residentes possam ir ao bem e compreender do que se trata; finalmente um trabalho voltado aos estudos arqueológicos”.
Ainda segundo Marcelo, tanto o IPHAN quanto a prefeitura têm responsabilidade na implementação dessas quatro medidas, dividindo o protagonismo das ações a depender da natureza que ela exige. “O compromisso do governo brasileiro foi de que essas medidas deveriam estar todas em execução ou executadas em três anos após o reconhecimento. Temos até 2020 para cumprir essa exigência. Somente se não forem cumpridas até esta data a discussão se o Cais do Valongo pode perder o título de Patrimônio da Humanidade começa”, afirma o superintendente.
Mas para os ativistas e militantes pela preservação do cais, o prazo não justifica o abandono ao qual o sítio está submetido. “O cais está correndo risco de perder a sua titulação porque ele está sendo abandonado. Menosprezado, vilipendiado por um governo que não lhe respeita, que não tem a menor consideração pela matriz africana. Nem quer que essa matriz africana tenha visibilidade”, relata Milton.
Na matéria O Porto Maravilha é Negro, o jornalista Rogério Daflon investigou como a região tratava o patrimônio nela soterrado, comparando sua inércia à velocidade e investimento nas obras do Museu do Amanhã, que começaram a serem feitas na mesma época da descoberta do Cais.
Para o antropólogo, isso está evidente na deterioração do espaço. “Tem filmagem de morador de rua morando lá dentro, dormindo na grama, fazendo suas necessidades em cima da pedra tombada. O local que foi considerado Patrimônio Mundial, um sítio de memória sensível no mesmo patamar que Hiroshima e Auschwitz, sagrado pelo sofrimento e pela morte das pessoas que pereceram naquele lugar, está abandonado, sem luz, sem guarda, sem fiscalização ou sinalização”.
Cláudio Honorato corrobora a visão de Milton, complementando: “O Monumento do Cais do Valongo, que está com orçamento aprovado desde 2012, não foi completado. O cais está cercado por cabos de aço provisórios, e o projeto orçado, que incluía um portal, mármore e granitos negros, mapas da África e elementos africanos, não foi realizado. Isso é negligência da gestão anterior e também da gestão atual”, afirma. “Se fosse um espaço de representação da cultura europeia, teria um guarda 24 horas”.
Procurada pelo Portal Aprendiz, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), responsável pela manutenção do Porto Maravilha e por consequência do Cais do Valongo, afirmou que embora ocorrências já tenham acontecido o local está sendo protegido. “Durante o dia, a guarda municipal fica com uma equipe fixa até às 10h da noite. Depois, existe uma ronda da guarda municipal. Tem todo um grupo de monitoramento, e não há ocorrência de entrar alguém”. A companhia ainda afirmou que há limpeza periódica do Cais.
Um museu sobre a diáspora africana
Ante o ensejo de titulação do Cais do Valongo a Patrimônio Cultural da Humanidade, houve mobilização de pesquisadores e ativistas de diversas organizações civis, em principal dos que pesquisam e trabalham com a diáspora negra, para que fosse criado um Museu Nacional do Valongo. Esse memorial da diáspora africana, cuja proposta inicial era de instalação no prédio Docas Dom Pedro II, atenderia a uma das adequações propostas pela UNESCO, que era a criação de um equipamento de interpretação do patrimônio.
“O Estado Brasileiro deve à matriz africana um museu que reconte sua história, ressignifique as realizações e sua presença na nacionalidade e dialogue com o resto da diáspora. Que produza reconhecimento nesse campo, refletindo sobre o racismo, discriminação e auxiliando na criação de políticas inclusivas”, relata Milton.
Quando a candidatura foi postulada, a proposta original foi que esse museu fosse responsabilidade do Governo Federal. Milton afirma, entretanto, que com a mudança de governo, a Secretaria de Cultura assumiu o compromisso de criar o Museu da Escravidão e da Liberdade.
“O Governo Federal abriu mão de sua responsabilidade dizendo que a prefeitura ia fazer o museu. A Secretaria de Cultura insiste que o fará. Você acredita que Crivella vai fazer um museu para dar visibilidade à matriz africana?”, questiona Milton.
A secretária de cultura do Rio de Janeiro, Nilcemar Nogueira, rebateu as críticas afirmando que a prefeitura está aguardando o término de uma reintegração de posse das Docas Dom Pedro II para dar início às obras do Museu da Escravidão e da Liberdade que, segundo ela, “tem como premissa contar a história não contada, o que a historiografia deixou de fora. É importante mostrar como a sociedade brasileira foi construída e como a herança africana tem forte presença na nossa diversidade cultural”. Ela ainda relatou que a sede administrativa do museu já está funcionando no Centro Cultural José Bonifácio.
Enquanto o Iphan afirma estar avançando na criação de um comitê gestor para discutir com diversas instâncias como deve funcionar a experiência do patrimônio e a prefeitura aguarda a reintegração de posse, o Cais continua como um lembrete doloroso do que não é olhado. Ao seu lado, o moderno Museu do Amanhã oferta um futuro aos seus muitos visitantes. Enquanto o Cais, que é a memória de um passado que precisa ser revirado, sofre com a precariedade de obras, até agora existentes somente no papel.
“Se não forem tomadas providências emergenciais para a sua conservação, antes mesmo da criação de um espaço de exibição do que foi encontrado, todo o esforço feito será perdido. Caso o poder público não assuma de fato essa responsabilidade e não tenha um efetivo comprometimento com um patrimônio dessa magnitude, essa grande conquista da comunidade negra, da cidade do Rio de Janeiro, e, em última instância do Brasil, se perderá”, arremata Tânia