O que a alimentação ensina sobre nossa cultura?
Publicado dia 6 de novembro de 2018
Publicado dia 6 de novembro de 2018
Por Claudia Ratti
Ingredientes, o modo de preparar os alimentos e os pratos que compõem a mesa dos brasileiros são muito mais que simples hábitos. A alimentação é também uma abordagem para conhecer e entender a cultura e história de nosso povo.
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Ao retomar a trajetória de um alimento, é possível pensar a história humana a partir de uma nova perspectiva, além de abordar questões sobre deslocamento, colonização e ocupação do território brasileiro.
Ao retomar a trajetória de um alimento, é possível pensar a história humana a partir de uma nova perspectiva, além de abordar questões sobre a ocupação do território brasileiro
Para André Luzzi, mestre em História Social pela FFLCH, doutor em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP e membro da Ação Cidadania, um olhar mais atento sobre a alimentação permite compreender formas de viver e de se comportar de diferentes grupos sociais.
João Luiz Maximo, doutor em História Social pela USP e professor de História da Gastronomia no Centro Universitário Senac, acrescenta: “Basicamente todos os aspectos da comida são culturais. Desde a escolha dos ingredientes até a forma como sentamos à mesa”.
Nesse sentido, um antigo caderno de receitas diz muito mais do que o passo a passo para a preparação de um prato. O material é também uma ponte para entender o contexto social e político de um tempo.
Maria Conceição Oliveira, pesquisadora da cozinha e cultura negra e integrante do projeto Comida de (I)migrante, conta que encontrou um livro da década de 1950 com uma receita de “Bala de Getúlio”. Depois de muita pesquisa, descobriu que o nome do doce era uma referência à morte do presidente Getúlio Vargas, ocorrida em 1954.
“É possível descobrir a forma como um povo vive analisando como ele se relaciona com os alimentos. É na comida que você tem a preservação da memória de um povo”, diz.
As receitas também são uma forma de transmissão de conhecimento e saberes entre gerações. Para Maria Conceição, o preparo de um prato típico da cultura negra também diz muito sobre a ancestralidade e a memória daquele povo.
De acordo com a pesquisadora, pratos considerados típicos hoje revelam fatos da ocupação da população negra no Brasil. “Quando as mulheres negras chegaram na Bahia, por exemplo, reconheceram ou trouxeram com elas o azeite de dendê e começaram a criar seus pratos. Estas comidas também têm proximidade com a portuguesa, já que a mulher negra, na cozinha, tinha a orientação da sinhá”, explica.
Maria Conceição destaca ainda como a presença africana em Minas Gerais marcou a culinária local. Pratos como ‘fufu’ e ‘pirão de fubá’ carregam a memória de países como Angola, Congo e Moçambique, onde são apreciados. Fazer receitas a partir da fermentação de mandioca e abacaxi também era uma tradição dos escravos.
“A grande questão da cozinha negra brasileira é que ela foi criada dentro do ambiente hostil da escravidão. É uma comida afro-brasileira, criada aqui, mas com memórias da África”, afirma.
A culinária como saber do território é o tema do livro “Sabores e Saberes: memórias que atravessam tempos e espaços”, disponível para download gratuito. A publicação é fruto de um projeto realizado em três escolas do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, com o intuito de resgatar a alimentação no processo pedagógico, ressaltando seus aspectos culturais e comportamentais. Para isso, reúne receitas e experiências coletadas a partir de um processo de escuta das famílias e crianças da região.
Levar esses pontos que envolvem a alimentação para a sala de aula é uma forma de aproximar os alunos de temas complexos que, muitas vezes, ficam apenas na teoria.
Com frequência, nos surpreendemos ao descobrir que algum alimento comum nas Américas também é comum na Europa ou na África. André Luzzi explica que esse fato evidencia os fluxos migratórios de diferentes povos pelo território, levando suas tradições e hábitos alimentares.
Assim como as pessoas caminham, por escolha ou de forma forçosa, os alimentos também estão em migração
“Assim como as pessoas caminham, por escolha ou de forma forçosa, os alimentos também estão em migração e isso faz com que alguns ingredientes fiquem mais dispersos”, diz.
Por exemplo, na África a presença da mandioca está relacionada à vinda dos portugueses ao Brasil. “Em um momento de ameaça de fome em alguns países africanos, foi levado esse alimento do dia a dia de alguns grupos indígenas”, conta André.
Sobre o mesmo ingrediente, João Luiz Maximo explica que ao recuperar a alimentação e a história de alguns grupos indígenas do Brasil é possível entender a importância da mandioca no norte e a presença do ingrediente no litoral do país. “No interior, no entanto, o milho terá mais força para se espalhar, já que para alguns grupos é um alimento mais fácil de manusear”, completa.
Além da discussão, colocar os alunos em contato direto com os alimentos é essencial. A construção de uma horta, por exemplo, permite abordar conceitos da Biologia e Química, assim como o debate sobre agrotóxicos e alimentos agroecológicos. Preparar uma receita a partir do que foi coletado também é interessante.
Desse modo, incorporar o alimento no projeto político pedagógico da escola é uma forma rica de articular várias áreas do conhecimento. “É interessante criar um olhar mais integral para o alimento e pensar como os ingredientes podem fazer parte de conteúdos de Matemática, Química e Geopolítica, por exemplo”, comenta André Luzzi.