Escolas Vivas conectam saberes ancestrais e Educação em territórios indígenas
Publicado dia 21 de outubro de 2025
Publicado dia 21 de outubro de 2025
🗒️Resumo: Liderado por educadores indígenas, projeto Escolas Vivas incentiva formas tradicionais de aprender e ensinar em espaços educativos e culturais localizados em territórios indígenas. A coordenadora, Cristine Takuá, explica como a iniciativa conecta gerações e reconhece o território como o principal espaço de aprendizagem.
Na beira do rio, sob as árvores ao som dos pássaros e das crianças, moldando o barro, a escola acontece. Entre o canto dos mais velhos, a contação de histórias e o aprendizado sobre as plantas da floresta, o ensino se mistura à vida cotidiana. Essa é a essência do projeto Escolas Vivas, uma iniciativa que propõe repensar o que significa aprender — e ensinar — dentro dos territórios indígenas.
Coordenado por Cristine Takuá, educadora, artesã, escritora, parteira e pensadora do povo Maxakali que vive na Terra Indígena Ribeirão Silveira, no litoral norte de São Paulo, o projeto busca fortalecer a transmissão dos saberes tradicionais, conectando gerações e reconhecendo o território como o principal espaço de aprendizagem.
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“Nas Escolas Vivas, isso significa um novo modo de fazer escola, de transmitir conhecimento que, na verdade, é um modo antigo”, resume.
Atualmente, o Escolas Vivas está presente nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Acre e Amazonas e apoia três escolas indígenas e dois projetos nas áreas da saúde e cultura: Shubu Hiwea (Escola Viva Huni Kuï), do povo Huni Kuï; Apne Ixkot Hâmhipak (Aldeia Escola Floresta), do povo Maxakali; Wanheke Ipanana Wha Walimanai (Escola Viva Baniwa), do povo Baniwa; Mbya Arandu Porã (Ponto de Cultura), do povo Guarani Mbya; Bahserikowi (Centro de Medicina Indígena), dos povos Tukano, Desana e Tuyuka.
A iniciativa é realizada em parceria com a Associação Selvagem, movimento criado por Anna Dantes e Ailton Krenak.
A semente do projeto surgiu da própria trajetória de Cristine. Durante doze anos, ela deu aulas na escola estadual de sua comunidade e percebeu as limitações de um modelo que não respeitava o tempo, o calendário e os saberes de seu povo.
“O sistema impõe um currículo que vem de fora e muitas vezes não atende às especificidades da nossa cultura. Eu percebia que, dentro desses moldes, não dava para praticar uma escola viva, uma escola verdadeira”, recorda.
Após deixar a escola em 2021, Cristine foi convidada pela Associação Selvagem para coordenar o projeto que viria a se chamar Escolas Vivas — um espaço de criação e retomada das formas indígenas de ensinar e aprender.
“Uma Escola Viva prioriza os antigos, os saberes que são respeitosos com todas as formas de vida”, destaca Cristine Takuá
Para Cristine e os educadores indígenas envolvidos, o território é o coração da escola viva. A floresta, o rio, a casa de reza, a beira do fogo ou a sombra de uma árvore são salas de aula onde o conhecimento é transmitido em diálogo com a natureza, com as crianças e os mais velhos.
“Uma Escola Viva é uma escola que prioriza os antigos, os saberes que são respeitosos com todas as formas de vida. Ela escuta os códigos da floresta, das formigas, das ondas do mar, da chuva e dos trovões. É uma escola que vê o mundo como uma grande rede de relações”, explica ela, que é também fundadora do Instituto Maracá, entidade voltada para a promoção da cultura, arte e literatura indígena.
As Escolas Vivas estão presentes em cinco territórios — três na Amazônia e dois na Mata Atlântica. Por conta dessa diversidade, cada povo organiza suas práticas de forma autônoma, valorizando o papel dos mestres e das mestras que guardam os conhecimentos tradicionais. Alguns trabalham com tecelagem, cerâmica ou plantas medicinais; outros com música, dança e contação de histórias.
“A arte está em tudo. Ao fazer uma casa, preparar o barro, a criança está aprendendo com o corpo, com o tempo e com o território”, explica Cristine.
Ao contrário do modelo ocidental de ensino, as Escolas Vivas não seguem uma grade curricular. Cristine chama essa proposta de “constelação curricular”: um conjunto de saberes conectados, que respeitam o tempo e o processo de cada pessoa.
“Na Escola Viva, o tempo respeita o processo individual de cada criança e de cada jovem”, conta Cristine Takuá.
“A principal diferença está no tempo. Na Escola Viva, o tempo respeita o processo individual de cada criança e de cada jovem. Todos os conhecimentos estão interligados — o sonho, o modo de fazer, de falar, de lidar com as alegrias e com os problemas. Tudo faz parte do aprendizado.”
Para a educadora, essa é uma diferença muito fundamental em relação ao sistema escolar ocidental, que divide o conhecimento em áreas, como ciência, língua portuguesa, matemática, e tem dificuldade para estabelecer uma relação orgânicas entre os saberes.
“Na Escola Viva não, a gente vê a grande relação, como uma teia de saber onde tudo está conectado, tudo se relaciona e tudo busca um caminho de ampliar as consciências”, diz.
O projeto também se consolida como uma prática decolonial, ao romper com o modelo escolar imposto pela colonização e recuperar modos de aprender que sempre existiram nas comunidades indígenas.
“O colonialismo adormeceu nossas memórias e atravessou, profundamente, nossas histórias, corpos e territórios. As Escolas Vivas vêm para acordá-las. Elas rompem com a monocultura mental e reconhecem outras etimologias, outros modos de conceber o mundo, valorizando o conhecimento ancestral que sempre existiu e outras práticas de Educação.”
Entre os maiores desafios está a convivência entre o sistema educacional oficial e as práticas das Escolas Vivas, que seguem lógicas próprias.
“O sistema de ensino que já existe dentro dos territórios vem de fora, com metodologias que muitas vezes não respeitam o modo de ser de cada povo. Esse modelo acaba se confrontando com as iniciativas das Escolas Vivas, e o nosso desafio tem sido justamente encontrar caminhos para conciliar esses princípios com as escolas formais que já funcionam nas comunidades”, explica Cristine.
Ela conta que, muitas vezes, as lideranças e até as próprias comunidades acabam acostumadas com esse modelo de escola ‘quadrada’, com carteiras enfileiradas, lousa, caderno, livro — e passam a acreditar que a escola é apenas isso.
“São muitos conhecimentos que a Escola Viva busca acordar novamente dentro dos territórios”, explica Cristine Takuá
“Mas, ao mesmo tempo, há uma infinidade de saberes que deixam de ser praticados pelas crianças quando elas passam o dia todo dentro da sala: o saber pescar, fazer armadilhas, reconhecer as pegadas dos animais, conversar com os mais velhos. São muitos conhecimentos que a Escola Viva busca acordar novamente dentro dos territórios, para que as crianças não fiquem presas apenas ao aprendizado trazido pela cultura ocidental e pelos currículos impostos pelas secretarias de Educação.”
Apesar desses percalços, os resultados já são visíveis. Em comunidades Baniwa, jovens voltaram a tocar flautas tradicionais. Já entre os Maxakali, a cerâmica voltou a ser praticada por mulheres e jovens, que inclusive expuseram suas peças na Pinacoteca de São Paulo.
Com o apoio da Associação Selvagem, cada escola recebe um repasse mensal de R$ 8 mil, destinado ao apoio de mestres, compra de materiais e estruturação dos espaços. “O que vemos é um despertar das memórias e das práticas ancestrais. É um movimento de cura e fortalecimento que parte do próprio território”, diz Cristine.
A trajetória da educadora se entrelaça ao sonho que dá vida ao projeto. “Na Escola Viva tudo é verdade, porque não é só discurso — é prática. A gente ensina com o que faz, com o que vive. Meu sonho é ver mais escolas vivas florescendo nos territórios, fortalecendo as comunidades e curando as feridas coloniais que atravessaram nossos modos de vida.”
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